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CAPÍTULO 1: O CÁRCERE E SEU ENTORNO

2.2 Outras infâncias

Sem negar a contribuição dos estudos historiográficos de Philippe Ariès para a compreensão do que seja infância no decorrer dos séculos, especificamente na passagem da Idade Média para a Moderna, o delineamento cronológico quanto ao início do sentimento de amor pela infância foi muito criticado por outros autores. Segundo Corazza,

[...] há unanimidade em reconhecer que Ariès não somente abriu um novo caminho de pesquisa [...] como estabeleceu um grupo de categorias para trabalhar este novo objeto “infância – como as de „descoberta‟, „ invenção‟,„conceito‟, „natureza‟, „consciência‟, „sensibilidade‟, „sentimento‟ ‐, as quais, se foram e prosseguem sendo constatadas, refutadas, revisitadas, por isso mesmo, incitaram a produção discursiva que constitui esse novo campo epistemológico.

Uma das críticas mais contundentes sobre o trabalho de Ariès refere-se às fontes historiográficas por ele utilizadas. Para muitos autores, se extrapolarmos os documentos da intimidade dos quais Ariès lançou mão para compreender o surgimento da infância e do sentimento de amor por ela, e analisarmos os documentos públicos da época (legislação, relatórios, notícias na imprensa) – documentos estes que vão além das questões de foro individual, mas incidem sobre questões sociais, encontraremos outras infâncias.

Moysés Kuhlmann Jr., em sua obra Infância e Educação Infantil: uma abordagem histórica,167 aponta novas interpretações para a infância em períodos anteriores, contrapondo-se à proposição de Ariès. O autor critica a percepção generalizante e linear de Ariès acerca do assunto, uma vez que a pesquisa do historiador francês se fundamentaria em fontes de famílias abastadas, sem levar em consideração as fontes históricas populares, com poucos registros, devido à precariedade das condições econômicas.

Na perspectiva de Kuhlmann Jr, a história apontada por Ariès é uma história de meninos ricos, confirmando uma educação diferenciada às duas infâncias: a da criança

167 KUHMANN JR. Moysés. Infância e educação infantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre:

85 pobre e a da criança rica. Para este autor, a percepção da infância pelos adultos existia em idades mais remotas. Havia a preocupação com sua sobrevivência, sua educação, sua religiosidade, com os cuidados com o seu corpo, com sua alimentação, sua aprendizagem. Nos dizeres de Kuhlmannn Jr,

O sentimento de infância não seria inexistente em tempos antigos ou na Idade Média, como estudos posteriores mostraram. Em livros escritos pelos historiadores Pierre Riché e Daniele Alexandre-Bidon (...), fartamente ilustrados com pinturas e objetos, arrolam-se os mais variados testemunhos da existência de um sentimento da especificidade da infância

naquela época.168

Sarat também critica a historiografia de Ariès sobre o surgimento da infância com um marco definido – o século XVII. Para a autora, a infância sempre existiu, inclusive em algumas sociedades primitivas que já haviam iniciado os processos de separação de atividades de adultos e criança:

A infância, como uma fase da vida humana, tem sido discutida sob vários enfoques. Muito além de ser apenas um período definido biologicamente como parte do início da vida, a infância é uma construção cultural, social e histórica, definida em cada período por diferentes representações. Nesse sentido, podemos apontar que, desde Platão, que via na infância um período de ausência de racionalidade e considerava a criança “de todos os animais o mais intratável, na medida em que seu pensamento, ao mesmo tempo cheio de potencialidades e sem nenhuma orientação reta ainda, o tornava o mais ardiloso, o mais hábil e o mais atrevido de todos os bichos” (PLATÃO apud GAGNEBIN, 1997, p.85), passando por Santo Agostinho,

que via a infância como um “mal necessário”, até chegarmos

aos períodos em que ela passa a fazer parte das preocupações da

sociedade adulta, temos um longo caminho.169

Nesse sentido, apesar da contribuição da historiografia internacional para a história da infância, incluindo-se a de Philippe Ariès, não se pode negar que ela nos serve de inspiração, e não de bússola, como afirma Mary Del Priore na apresentação do livro Histórias da criança no Brasil170. Para a autora,

168 KUHLMANN, JR. M. Infância e educação infantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre:

Mediação, 1998, p.22.

169 Ibid. p.2.

86 Não poderíamos tampouco incorporar as teses de um epígono americano de Ariès, Lloyd de Mause, para quem a história dos pequenos seria apenas um catálogo de barbáries, maus tratos e horrores. No que diz respeito à história do Brasil, encontramos de fato, passagens de terrível sofrimento e violência. Mas não só. Os relatos de naufrágios da Carreira das Índias retratam dolorosas separações entre pais e filhos. Os testamentos feitos por jovens mães no século XVII não escondem a preocupação com o destino de seus “filhinhos do coração”. Os viajantes estrangeiros não cessaram de descrever o demasiado zelo com que, numa sociedade pobre e escravista, os adultos tratavam as crianças. As cartas desesperadas de mães, mesmo as escravas analfabetas, tentando impedir que seus rebentos partissem para a Guerra do Paraguai, sublinhavam a independência e os

sentimentos que se estabeleciam entre umas e outros. 171

Comparando a historiografia internacional com a do Brasil, é possível afirmar que não podemos compreender a infância no singular. Não existe uma única infância, universal, modelar. Existem infâncias, ainda que se considere o mesmo tempo-lugar. Não existe somente a infância rica e a infância pobre, pois as crianças não podem ser categorizadas apenas por sua condição social e econômica.

O livro organizado por Mary Del Priore – História das crianças no Brasil172- nos apresenta uma variedade de infâncias, com histórias bastante diversificadas sobre as crianças brasileiras: a da criança livre no Brasil entre a Colônia e o Império, a das crianças nas embarcações portuguesas no século XVI, da criança esquecida das Minas Gerais, das crianças de elite durante o Império, das crianças escravas, das aprendizes de guerra, das crianças criminosas, das crianças indígenas, das crianças operárias, das crianças carentes, das crianças trabalhadoras, das crianças dos canaviais, enfim, das crianças que estão em toda parte: “ (...) seu destino é variado. Há aquelas que estudam, as que trabalham, as que cheiram cola, as que brincam, as que roubam. Há aquelas que são armadas e, outras, simplesmente usadas. Seus rostinhos mulatos, brancos, negros e mestiços desfilam na televisão, nos anúncios da mídia, nos rótulos dos mais variados gêneros de consumo.”173

Mas, ainda que as categorizemos desta forma, são apenas crianças. Elas sonham, brincam, confabulam, sentem medos, têm esperanças, às vezes se entusiasmam, por hora desistem. Se pobres ou ricas, trabalhadoras ou criminosas, operárias ou indígenas, não se limitam aos rótulos que lhes damos. Nesse sentido,

171Ibid. p. 11. 172 Ibid.

87 apesar desta pesquisa lançar mão de uma categoria específica – crianças pobres cujos pais ou parentes próximos estão na prisão –, não se deve esquecer de que elas são, sobretudo, crianças.