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Capítulo III – O divino feminino na glíptica do Diyala (IV-II milénios a.C.)

3.6. Outras temáticas

O divino feminino foi representado em múltiplos contextos e sob as mais variadas expressões na glíptica do Diyala. No entanto, e como já referimos anteriormente, por vezes existe uma dificuldade em identificar o género e a identidade das figuras antropomórficas que compõem as cenas representadas nos selos cilíndricos. Posto isto, o presente subcapítulo foca-se

274 Veja-se, Anexo 11, Fig. 41. 275 Veja-se, Anexo 11, Fig. 42.

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em três temáticas distintas: as cenas de cariz sexual; a “deusa” nua e o casal “divino”. Estes motivos iconográficos são raros no contexto da glíptica do Diyala e, por isso, a sua representatividade é menor no total da amostragem276. Apesar de consideramos não ser possível identificar inequivocamente a presença de deusas nas três temáticas supracitadas, não devemos excluir esta hipótese.

No que respeita às cenas de cariz sexual, foram analisados os selos números 88, 89 e 90, provenientes de Khafajah, Tell Asmar e Tell Agrab, respetivamente. Em termos cronológicos, expressam uma tendência estilística típica da glíptica do período Dinástico Arcaico. Em termos estratigráficos, regista-se uma concordância com o estilo artístico, à exceção do selo nº 89, que foi encontrado num estrato mais recente. Tal como a denominação indica, nestes selos está representado um casal que parece consumar o ato sexual, cenas que FRANKFORT (1955)277 denominou de “casamento ritual/sagrado”, fruto do contexto académico da sua época. Como já referimos no primeiro capítulo evitaremos esta categorização, pois à luz de interpretações mais recentes, consideramos reduntor entender que todas as representações sexuais na Mesopotâmia se encontravam associadas à hierogamia.

Como já foi identificado anteriormente, a glíptica do período Dinástico Arcaico é marcada por uma forte estilização dos elementos antropomórficos. Ao considerarmos que nos selos números 88, 89 e 90 estamos perante um casal composto por um elemento masculino e outro feminino, então a figura feminina poderá representar uma deusa, uma sacerdotisa, ou então qualquer outra mulher da sociedade mesopotâmica. Parece-nos mais plausível associar a presença do divino feminino caso as cenas sejam acompanhadas da representação de símbolos. No selo nº 88, para além do casal, o campo temático é ainda composto por um cão, representado debaixo da cama, onde o ato sexual estaria a ser consumado. Relembramos que este elemento está associado à deusa Gula, ainda que em períodos posteriores. A sua representação neste contexto pode explicar-se segundo uma lógica de apoio/bênção da divindade perante a união (BLACK; GREEN, 1992: 101). Também no selo nº 89 está representado um animal, neste caso um escorpião, animal-símbolo de Išhara (BLACK; GREEN, 1992: 110). Ora, a representatividade de um símbolo evocativo desta(s) divindade(s) entraria em concordância com o ato sexual consumado, parecendo denunciar uma mesma lógica de legitimação divina perante a

276 Numa proporção de 6 em 62. 277 Veja-se FRANKFORT, 1955: 38.

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união sexual278. É ainda de notar que este último selo é composto por um vaso com palhinhas

para beber, remetendo para a ideia de banquete/celebração, quiçá evocando assim uma união matrimonial. Por outro lado, este suporte de consumo foi utilizado em elementos da cultura material do período Babilónico antigo, em cenas erótico-sexuais do tipo coitus a tergo279, podendo a ideia de sexualidade associada ao consumo de bebidas ter tido a sua génese nestes períodos mais remotos280.

Quanto aos contextos arqueológicos, os selos números 88 e 89 foram exumados em contextos habitacionais281, enquanto que o selo nº 90 foi identificado numa estrutura religiosa282. A presença de selos com motivos erótico-sexuais em habitações denota o caráter legitimador e civilizacional283 que os mesopotâmios conferiam ao ato sexual, independentemente da condição social. Por outro lado, tendo em conta os paralelos que podem ser estabelecidos com as placas de terracota com motivos eróticos do período Babilónico antigo, estes selos poderam ter desempenhado uma mesma função apotropaica, atuando no âmbito do culto doméstico ligado à magia popular284. Por outro lado, a presença do selo nº 90 no templo de Šara, no santuário principal do complexo religioso, poderá denotar a sua associação com o divino, talvez com Inanna/Ištar, não só devido às conceções amorosas e sexuais que a deusa evocaria, mas também devido à sua ligação com o deus Šara. Este selo poderá ter constituído uma oferenda cúltica de um devoto ao templo, ou ter pertencido a um sacerdote/sacerdotisa do mesmo. Neste último caso, teria sido utlizado em rituais de celebração ligados à fertilidade, ao amor e à sexualidade.

278 Veja-se Anexo 12, Fig. 43.

279 Veja-se ASSANTE, Julia (2002) “Style and Replication in ‘Old Babylonian’ Terracotta Plaques. Strategies for

Entrapping the Power of Images”, in Ex Mesopotamia et Syria Lux: Festschrift für Manfried Dietrich zu seinem 65. Münster, Ugarit-Verlag, pp. 1-29.

280 Veja-se Anexo 12, Fig. 44.

281 O selo nº 88 foi encontrado no locus: O 44:6; nível: Casas III (FRANKFORT, 1955: Plaque 34); o selo nº 89 foi

exumado no locus: H 19:3; nível: Casas Va (FRANKFORT, 1955: Plaque 53).

282 O selo nº 90 foi exumado no locus: M 14:2; nível: Templo Šara (FRANKFORT, 1955: Plaque 72).

283 O papel civilizacional conferido pelo homo religiosus mesopotâmio ao ato sexual encontra-se presente na

Epopeia de Gilgameš (Tab. I), no episódio que relata o encontro sexual entre Enkidu e Šamhat, do qual resulta o

processo civilizacional do homem primevo (Enkidu) (DALLEY: 1989: 53-54)

284 Veja-se ASSANTE, Julia (2002) “Sex, Magic and the liminal body in the Erotic Art and Texts of the Old

Babylonian period” in Sex and Gender in Ancient Near East, Vol. I. Helsinki, Rencontre Assyriologique Internationale, pp. 27-52.

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Relativamente à segunda temática, isto é, a “deusa” nua, foi analisado o selo nº 91, exumado em Ishchali, no templo de Kititum285. Embora FRAKFORT (1955) tenha identificado a

figura feminina nua representada no selo supracitado como sendo uma divindade feminina, colocamos o termo “deusa” entre aspas, uma vez que não consideramos haver indícios fortes que nos permitam fazer esta associação, nomeadamente a ausência da coroa chifrada. No que diz respeito à nudez, esta pode assumir múltiplas interpretações de acordo com o contexto. Isto é, a representação de figuras nuas pode estar associada à fertilidade, no domínio do erotismo; a ações rituais; enquanto símbolo de poder e distinção social, sobretudo na representação de deuses e heróis. Pode, pelo contrário, também ter uma conotação negativa, associada à morte ou à derrota, evocando uma ideia de despojamento material (BAHRANI, 1993: 13-18). Neste caso específico, o facto de o selo ter sido exumado numa estrutura cúltica, o complexo Kititum, parece apontar para uma nudez associada a um contexto cúltico286.

Na glíptica em análise, a figura feminina nua surge, normalmente, em posição frontal e pode ocupar várias posições no espaço do selo: enquanto figura central, flanqueada num dos lados pela deusa Lama e no outro por uma figura masculina (um atendente/orante); perdendo a sua centralidade e passando a ocupar um dos lados da cena, encontrando-se ladeando a deusa suplicante Lama; num dos lados da cena, geralmente junto a um orante que está a ser apresentado, geralmente, ao deus Utu/Šamaš ou a Nergal; enquanto um sujeito de adoração pelas figuras que compõem a cena. Geralmente, em todos os casos, ela é de reduzidas dimensões quando comparada com as restantes figuras antropomórficas estando associada a um símbolo de governança, o bastão (PIZZIMENTI, 2014: 137-138). De facto, a “deusa” nua representada no selo nº 91 parece segurar um objeto, talvez uma espada ou um bastão, elemento que poderá evocar a realeza mesopotâmica. Assim, talvez estejamos perante a figura da deusa Inanna/Ištar

285 FRANKFORT, 1955: Plaque 86. Os selos números 92 e 93 também evocam a presença de uma figura feminina

nua, em tudo semelhante à do selo nº 91. Contudo, uma vez que estes selos foram comprados, e, por isso, os seus contextos arqueológicos são desconhecidos, não os considerámos como amostragem principal. Para a descrição detalhada destes selos consulte-se as Fichas de Inventário (Anexo 13).

286 A representação de figuras femininas nuas é um dos motivos mais antigos da arte do Médio Oriente Antigo,

remetendo, pelo menos, para o VII/VI milénios a. C., e perdurando no tempo. Os estudos sobre a nudez, sobretudo associada ao feminino, realizados ao longo dos séculos XIX e XX, foram marcados por uma visão negativa, que associava automaticamente a representação do nu à sexualidade e ao erotismo. No entanto, a verdade é que a nudez na Mesopotâmia não encontra uma carga moralizante, podendo ser aplicada, na arte, a diversos contextos e não apenas evocando o erotismo ou a sexualidade (GREVE-ASHER; SWEENEY, 2006: 111-112; BAHRANI, 1993: 12).

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na sua vertente governativa – ou seja, a deusa enquanto outorgante das insígnias do poder real. Neste sentido, a nudez deve ser entendida como um símbolo de poder e de superioridade 287.

Para além da hipótese acima explicitada, também a entidade suplicante Lama foi reconhecida, no reinado de Ammiditana e de Samsuditan da Babilónia, como estando nua. De facto, a passagem patente no título do ano a que nos referimos onde se evoca a presença de Lama(s) nuas protetoras, parece evidenciar que a nudez poderia também ter conotações apotropaicas288. Ao corpo descoberto era, ao que nos parece, conferido então um caráter benfazejo (GREVE; SWEEDEY, 2006: 127-128).

Ainda sobre o selo nº 91, é de referir que este foi o único selo da amostragem do Diyala fabricado em cristal, matéria-prima nobre e rara na geografia do território mesopotâmico, o que manifesta o elevado poder económico do seu detentor.

A terceira temática (casal “divino”), compreende as cenas patentes nos selos números 94 e 95, exumados em Ishchali e Khafajah, respetivamente. A sua anáise apresenta o mesmo desafio quanto à identificação dos elementos antropomórficos como sendo divindades289 ou não. Neste sentido, o selo nº 94, datado do período de Isin-Larsa/Babilónico antigo, apresenta uma cena composta por um casal “divino” abraçado, encontrando-se ao lado deste um animal híbrido com cabeça de leão, que segura numa das mãos um punhal e, na outra, uma cabeça humana. Este motivo iconográfico, para além da sua raridade no que concerne à região do Diyala, é também incomum na glíptica de todos os períodos. FRANKFORT (1955) aponta a possibilidade de estarmos perante uma cena que evoca um episódio mitológico. Na sua perspetiva, o casal divino poderia corresponder ao par divino Ereškigal-Nergal, pois a presença da figura híbrida que segura o punhal e a cabeça humana foi por ele entendida como uma possível personificação da doença, da praga ou da pestilência. Ora, esta figura seria porventura tutelada pelo deus Nergal,

287 Esta mesma imagem governativa é representada no baixo-relevo normalmente intitulado “Queen of the Night”,

no qual a nudez se assume com um símbolo de poder e de superioridade da deusa, expressando a outorgadas insígnias do poder real ao rei terreno (British Museum,

https://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details.aspx?objectId=1355376&partI d=1, Janeiro 2019). Nesta perspetiva, o orante presente no selo nº 91 poderá evocar a figura do monarca terreno mesopotâmico.

288 «Year in which Ammiditana, the king, made and adorned with reddish gold and precious stones powerful naked

protective deities who pray for his life and brought the Lammas to Inanna the great Lady of Kish who raises the head of her king». Veja-se, https://cdli.ucla.edu/tools/yearnames/HTML/T12K9.htm [29a, (MCS 2 50, VAT 679)], Janeiro de 2019.

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consorte da deusa Ereškigal, sendo que a doença se interliga com a morte e, consequentemente, com o Inframundo, que este par divino governa (FRANKFORT, 1955: 46).

No entanto, muitas dúvidas prevalecem sobre o motivo iconográfico deste selo, uma vez que não são conhecidas na arte mesopotâmica representações do casal divino inframundano. De facto, a figura híbrida que acompanha o par transmite uma imagem de morte, noção reforçada pela adaga e pela cabeça humana que segura, um elemento que poderá corroborar a associação acima enunciada. Contudo, nenhum dos componentes do par dispõe de insígnias que permitam a sua identificação, quer no que diz respeito à coroa chifrada, quer a outra simbologia que os ligue a um domínio cósmico específico. Quanto aos outros motivos que compõem a cena, isto é, as duas cabeças de leão cruzadas e o anão290, estes são também elementos iconográficos atípicos, cujo significado é enigmático. A representação de dois seres antropomórficos abraçados surge sobretudo em placas de terracota do período Babilónico antigo, sendo o ato em si entendido como uma representação de hierogamia. As figuras são comummente consideradas como a deusa Inanna/Ištar e o governante mesopotâmico (GREVE-ASHER; WESTENHOLZ, 2013: 270-272). O facto de o selo ter sido exumado numa estrutura cúltica, no templo dedicado a Ištar de Kititum291, poderá elucidar-nos sobre o facto de estarmos perante um ex-voto ofertado ao templo, ou então de este ter sido pertença de um membro da elite sacerdotal do templo. Seria, talvez utilizado em rituais, tendo como intuito combater doenças e/ou pragas.

Quanto ao selo nº 95, a hipótese de as figuras antropomórficas serem identificadas como divindades foi levantada por AMIET; LAMBERT (1980). Os autores referem que este selo representaria a família divina, composta pelos progenitores e pelo seu filho (AMIET; LAMBERT, 1980: 169). Já FRANKFORT adiantou a hipótese de estarmos perante a representação de uma cena de caráter mitológico, evocativa da viagem de barco realizada por Gilgameš, acompanhado por Ut-Napistim, com o propósito de encontrar a planta que lhe conferiri-a a imortalidade (FRANKFORT, 1955: 37). Não obstante as hipóteses levantadas, a

290 O anão era entendido como uma figura ligada à dança e à música, estando, por isso, associado a rituais de

entretenimento. Para além desta sua vertente, foi percecionado como uma entidade benigna que atuava como uma espécie daemom. Esta conceção apotropaica encontra paralelos no Egipto, nomeadamente com o deus-anão Bes que estava associado à proteção dos bebés recém-nascidos e das mães, tendo esta divindade penetrado na Mesopotâmia e em outras regiões do Médio Oriente Antigo (BLACK; GREEN, 1992: 41; 73). Assim, esta noção benfazeja poderá ter sido uma das mais-valias do selo em análise.

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verdade é que o selo em análise se encontra em mau estado de conservação, acrescendo-se o facto de datar do período Dinástico Arcaico, momento marcado, como já referimos, por uma grande estilização292. A identificação do divino feminino no selo só é possível se tomarmos como ponto de partida a hipótese levantada por AMIET; LAMBERT. Nesta ótica, a deusa é representada enquanto esposa e mãe. O facto de a família se encontrar numa embarcação poderá expressar as constantes deslocações que os mesopotâmios efetuavam diariamente, por via marítima, para chegar a outros núcleos urbanos.

Por último, no que respeita ao contexto arqueológico, sabe-se apenas que o selo nº 95 foi exumado numa estrutura habitacional293, não existindo mais informações sobre o compartimento da casa onde foi identificado. A escolha deste motivo em concreto poderá então ter recaído no facto de este representar uma cena de caráter mitológico. Por outro lado, e uma vez que as deslocações através de embarcações eram comuns na Mesopotâmia, onde a geografia era marcada pelos rios, poderá porventura indicar uma ligação do proprietário do selo ao mar e à atividade marítima.

292 Sobre a glíptica do período Dinástico Arcaico, veja-se COLLON, 1987: 20-27. 293 Locus: N 51; nível: Casas II (FRANKFORT, 1955: Plaque 36).

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CONCLUSÃO

A análise cruzada entre a Arqueologia e a História, nomeadamente a História das Religiões, e os Estudos de Género permitiram colocar o objeto do passado em diálogo com os agentes históricos. O estudo que efetuamos a partir dos selos cilíndricos exumados nos quatro arqueossítios da região do Diyala (Tell Asmar, Khafajah, Ishchali e Tell Agrab), numa lógica diacrónica, entre os finais do IV milénio a.C. e os inícios do II milénio a.C., possibilitou uma visão mais integradora sobre a forma como o divino feminino foi conceptualizado na Mesopotâmia.

De facto, a multiplicidade de espaços identificados nos arqueossítios em análise, isto é, palacianos, cúlticos e domésticos, abriu caminho a uma análise, ainda que preliminar, sobre os múltiplos grupos sociais que compuseram a civilização mesopotâmica ea forma como os mesmos entenderão o seu divino feminino. Embora esta região fosse marcada por uma grande heterogeneidade cultural, dado os profundos contactos entre vários contextos conseguimos discernir uma certa unidade na pluralidade que carateriza o seu sistema religioso.

O estudo dos materiais de fabrico utilizados na produção dos selos cilíndricos do Diyala permitiu confirmar que o uso de matérias-primas respondia acima de tudo a questões económicas e não tanto a gostos, a modas ou a regionalismos próprios. Nesta lógica, a pedra enquanto matéria-prima preferencialmente utilizada no fabrico de selos cilíndricos era, naturalmente, a mais procurada pelas elites. Contudo, o simbolismo conferido aos selos ultrapassava em muito o valor económico que estes possuíam, pois eram acima de tudo um sinónimo de poder, fundamental na manutenção do estatuto. Esta dinâmica é apresentada na glíptica do Diyala sobretudo nos exemplares fabricados em lápis-lazúli, em ametista e em cornalina, pois estes estariam confinados a membros da elite palaciana e cúltica, ou até mesmo ao próprio governante. As inscrições, ainda que raras, confirmam esta relação entre o material de fabrico e o poder económico dos proprietários dos selos (exemplos disto são os selos números 3, 6, 10 12, 13, 15, 34, 49, 54 e 55). Paralelamente, a amostragem do Diyala regista uma percentagem elevada de selos produzidos em concha e em calcário. Os selos produzidos em matérias-primas mais baratas foram, na maioria dos casos, exumados em estruturas habitacionais, fora dos espaços do palácio e do templo, o que deverá evidenciar a sua utilização por parte de grupos sociais mais baixos.

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Neste sentido, o estudo dos materiais de fabrico em relação com os espaços onde estes selos cilíndricos foram identificados expressa uma lógica popular. Simultaneamente, as temáticas iconográficas presentes em selos deste tipo ostentam divindades femininas que não encontram uma expressão literária forte. Como tal, é neste conjunto que podemos identificar o papel destas deusas no culto mais íntimo e privado do homo religiosus (tomemos como exemplos os selos onde surgem representadas as deusas da fertilidade: 38, 39, 40, 47).

De igual modo, o estudo das várias temáticas da glíptica do Diyala, alicerçado aos possíveis usos e funções dos selos, confirmou a perceção dos mesmos como ferramentas de poder, sobretudo numa lógica de afirmação e legitimação da retórica governativa. Exemplo máximo desta conceptualização são as cenas de apresentação, motivo decorativo que proliferou na glíptica do período de Isin-Larsa/Babilónico antigo. As cenas de apresentação traduzem, sem dúvida, uma lógica mais pessoal e identitária, ainda que não possam ser dissociadas da retórica política. Como tal, estas cenas atestam a utilização dos selos cilíndricos como mecanismos de controlo administrativo e de poder ao longo da história da Mesopotâmia. Naturalmente, nas três categorias de funções dos selos cilíndricos que analisámos (político-administrativo, social- estética e religiosa) é indissociável o caráter cúltico-religioso conferido aos selos, quer enquanto

ex votos, quer enquanto amuletos. Numa civilização marcada por um pensamento claramente

teocêntrico, onde o divino era a força motriz da existência cósmica, seria fundamental fortalecer o vínculo de afeto e interdependência entre deuses e humanos estipulado no momento antropogónico. Aliás, esta manutenção do culto às divindades era fulcral para o equilíbrio cósmico procurado incessantemente pelo homo religiosus mesopotâmico. Em última análise, o estudo dos materiais de fabrico e dos usos e funções conferidos à glíptica do Diyala permitiu descortinar dinâmicas sociais distintas. Estas dinâmicas traduziram-se em múltiplas formas de conceber o divino feminino, pois a construção dos arquétipos de feminilidade foi realizada sob distintas óticas.

As cenas de apresentação acima referidas parecem afirmam a confluência entre a religiosidade oficial e o culto popular, não só devido à multiplicidade de contextos arqueológicos onde os selos com esta temática foram exumados, mas também, e sobretudo, pelo facto da deusa intercedente Lama mediar as relações entre os diferentes grupos sociais. De facto, a deusa Lama era a responsável pelo estabelecimento das hierarquias, quer entre o divino e a humanidade,

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numa lógica sintomática à ideologia real, quer entre pares humanos, numa perspetiva de vassalagem sociopolítica.

A presença da deusa Lama nestas representações prova que ao feminino foram atribuídos papéis e funções que extrapolavam os tradicionais domínios conferidos a este, no âmbito da