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CAPÍTULO 1 – OS CAMINHOS DE INVESTIGAÇÃO

1.3 O OUTRO NO UM: O SUJEITO EM BAKHTIN

Falar sobre uma teoria bakhtiniana de sujeito nos remete a um inevitável percurso pelo conjunto de obras do Círculo6 e do próprio Bakhtin, visto a não linearidade de suas produções, e seu modo particular de pensar. Não que seja possível encontrar, em qualquer de seus escritos, algum conceito acerca do assunto, mas há lugares privilegiados para alimentar nossas reflexões e próprias refrações.

Discorrer sobre este tema requer daqueles que se propõem a fazê-lo que encontrem, como nós, seus próprios vieses, de acordo com nossas próprias expectativas e o objetivo de estudo, em compasso com o seguinte comentário de Geraldi:

nenhum leitor comparece aos textos desnudado de suas contrapalavras de modo que participam da compreensão construída

6 Fazer referencia ao Círculo de Bakhtin é um modo de aproximação e convergência com debates

que já foram feitos por vários autores, mas que, segundo Sobral (2009), se refere à complexidade da noção de autoria no Círculo de Bakhtin, uma vez que muitos textos, anteriormente atribuídos apenas à figura desse pensador russo, pode e deve ser revisitado e visto como resultado de um pensamento coletivo dos membros de um grupo – conhecido como Círculo de Bakhtin. O pensamento bakhtiniano não é constituído apenas pelos escritos do filósofo da linguagem Mikhail Mikhalovich Bakhtin, mas pela "[...] produção de intelectuais de diferentes áreas que com ele participaram, nas Rússias compreendidas entre os anos 1920 e 1970, de vários e produtivos Círculos de discussão e construção de uma postura singular em relação à linguagem e seus estudos" (BRAIT, 2009, p.09).

tanto daquele que lê quanto daquele que escreveu, com predominância do primeiro porque no diálogo travado na leitura o autor se faz falante e se faz mudo nas muitas palavras cujos fios de significação reconhecidos são reorientados segundo diferentes direções impostas pelas contrapalavras da leitura (2010, p.279). Em diálogo com textos de Bakhtin e seu Círculo (1990, 1993, 2000, 2004, 2010a, 2010b), assim como de autores que têm contribuído sobremaneira, não apenas para ampliação, mas para aprofundar e divulgar as inquietações e os temas explorados por eles (GERALDI, 2004, 2008, 2010; MIOTELLO, 2012; PONZIO, 2008, 2010a), organizamos nossa discussão com base em alguns eixos e princípios sobre o sujeito que identificamos como fundamentais nas obras e para a compreensão da arquitetônica do pensamento bakhtiniano.

É importante dizer que, embora diversa e fragmentada, a obra de Bakhtin e do Círculo é marcada por uma unidade de sentido, que se expressa na concepção de que o mundo humano é um mundo de sentido e não um mundo pura e simplesmente material. E pensar e compreender o sujeito, a partir de uma perspectiva bakhtiniana, exige que olhemos, primeira ou prioritariamente, para a própria vida, percebendo-a em sua natureza concreta, dinâmica, sistêmica, [con]textual e relacional.

Nesta perspectiva, elegemos, como eixo condutor dos nossos pensares sobre os sujeitos, três conceitos: ENUNCIADO, DIALOGIA e ALTERIDADE, para então dar-lhes o contorno ético-estético. Este acabamento trata de uma dimensão mais universalizante, ou melhor, que nos faz semelhantes – nossa humanidade –, ao mesmo tempo em que, essencialmente, nos singulariza. Para sermos percebidos em nossa individualidade e inteireza, precisamos ser compreendidos como sujeitos únicos, responsivos, sociais, incompletos e datados.

Iniciando com a relação enunciado-sujeito, é essencial a percepção de que, como o sujeito, cada enunciado é único, singular e individual, uma “condição do/para o SER” que só se materializa na relação Eu/Outro – emaranhando-se, incondicionalmente, à condição alteritária e dialógica que constitui a todos/cada sujeito. Entretanto, esta singularidade não significa que os sujeitos (consciências), nem os enunciados, não sejam marcados por outros enunciados (palavras alheias) e

pela expressividade (intenção discursiva) de outros sujeitos. Nesse sentido, Sobral assevera:

A proposta do Círculo de não considerar os sujeitos apenas como biológicos, nem apenas como seres empíricos, implica ter sempre em vista a situação social e histórica concreta do sujeito, tanto em termos de atos não discursivos como em sua transfiguração discursiva, sua construção em texto/discurso (2005, p.23).

Segundo Bakhtin (2010b), o sujeito não é autônomo e depende, incondicionalmente, do Outro – ele se constitui na relação com outros indivíduos. O mesmo acontece no âmbito da linguagem, visto que o sujeito não cria sua linguagem, ele é atravessado por diferentes usos da linguagem, que variam de acordo com as esferas sociais nas quais ele se inscreve (processos que promovem a constituição da consciência de cada sujeito).

Isso significa dizer que, assim como os sujeitos, os enunciados (tudo que é dito/escrito) se remetem sempre a um outro sujeito/enunciado, o que evoca uma atitude responsiva, que, de qualquer forma, também é um enunciado. Isto nos mostra que, assim como os enunciados são dialógicos e não existem em si mesmos, os sujeitos dependem do Outro, para sua própria existência. Eles se constituem nas/pelas relações dialógicas com outros sujeitos, e a consciência, que é constituída ideologicamente, faz deles sujeitos sociais. Logo, aproveitando as palavras de Sobral,

A proposta é a de conceber um sujeito que, sendo um eu para-si, condição de formação da identidade subjetiva, é também um eu para-o-outro, condição de inserção dessa identidade no plano relacional responsável, que lhe dá sentido. (2005, p.22).

É importante ressaltar que os sujeitos são socialmente constituídos sem, contudo, estarem submetidos irremediavelmente às várias instituições sociais. Segundo Bakhtin e Volochinov (2010), eles se inscrevem em relações com elas e se afetam mutuamente, ou seja, os sujeitos são tanto ativos quanto passivos no processo de organização da sociedade. E, principalmente, devem responder responsavelmente pelo lugar singular (único tanto física quanto axiologicamente) que ocupam na sociedade. Segundo Holquist,

We are responsible in the sense that we are compelled to respond [...] Each one of us occupies a place in existence that is uniquely ours; but far from being a privilege [...] the uniqueness of the place I occupy in existence is, in the deepest sense of the word, an answerability [...] we must keep on forming responses as long as we are alive (1990, p.30).7

Embora o aprofundamento das discussões sobre dialogia e alteridade estejam mais adiante, é preciso antecipar que dialogia foi o termo mais utilizado por Bakhtin para traduzir seu modo de perceber a vida, o mundo, como lugar da produção e das trocas simbólicas (BAKHTIN, 2010a, 2010b; BAKHTIN, VOLOCHINOV, 2010). Para ele, tanto a língua quanto os sujeitos se constituem, tão somente, dentro de uma perspectiva dialógica, ou seja, povoados por discursos alheios em relações dinâmicas de confronto, aceitação, recusa, negação. Para Bakhtin,

Eu vivo em um mundo de palavras do outro. E toda a minha vida é uma orientação nesse mundo; é reação às palavras do outro (uma reação infinitamente diversificada), a começar pela assimilação delas (no processo de domínio inicial do discurso) e terminado na assimilação das riquezas da cultura humana [...] A palavra do outro coloca diante do indivíduo a tarefa especial de compreendê-la (2000, p.379).

Para Brait (1997), Bakhtin compreende o dialogismo a partir de duas instâncias: no diálogo entre os interlocutores (destaque para as falas e interações cotidianas, ocorridas nas camadas populares – para a qual dedicava particular e intenso interesse) e no diálogo entre discursos. Segundo a autora, "o dialogismo diz respeito às relações que se estabelecem entre o eu e o outro nos processos discursivos instaurados historicamente pelos sujeitos que, por sua vez, instauram-se e são instaurados por esses discursos" (BRAIT, 1997, p.98).

Entendendo o dialogismo como um tecido, enredado por muitas vozes, palavras que se entrecruzam, evocam e respondem umas às outras, percebemos, também, que se trata do princípio fundador da linguagem e da condição para a

7

"Nós somos responsáveis no sentido de que somos compelidos a responder […] Cada um de nós ocupa um lugar na existência que é unicamente nosso; mas, longe de ser um privilégio […] a singularidade do lugar que eu ocupo na existência é, no sentido mais profundo da palavra, uma responsabilidade (answerability) […] nós devemos continuar a elaborar respostas enquanto estivermos vivos" (tradução nossa).

emergência do sujeito e do Outro na inscrição da subjetividade. Afinal, a consciência de todo sujeito se constitui através dos Outros – das palavras dos Outros. Tanto que, para Bakhtin, “nosso próprio pensamento [...] nasce e forma-se em interação e em luta com o pensamento alheio, o que não pode deixar de refletir nas formas de expressão verbal do nosso pensamento” (1997, p.317).

Em última instância, o que não quer dizer menos importante, temos a alteridade como um conceito dos mais importantes para a compreensão de sujeito, em sua relação com a arquitetônica do pensamento bakhtiniano.

Discorrer sobre alteridade nos remete a pensar sobre um conceito, não como uma expressão sintática, tão pouco como um conceito teórico, mas como um pilar essencial ao modo de Bakhtin se relacionar e dar sentido às coisas da vida em seu sentido mais amplo e profundo – como um elemento constitutivo do viver do homem de modo ontológico (aquilo que faz com que as coisas sejam o que são), visto que, para Bakhtin (2010b), nos constituímos na relação alteritária com o Outro.

É na alteridade – no encontro – com o Outro que temos a possibilidade de ampliar nosso horizonte de sentidos sobre nós mesmos. O Outro – que nos vê – tem de nós um conceito, algo que só é possível ver de sua posição de fora de nós, e é a partir da visão que o Outro tem de nós que se abre a possibilidade, num processo de encontro, que cada um – Eu e o Outro – se reflita e se refrate, fato possível porque cada um ocupa um seu lugar exotópico8 em relação ao Outro.

E foi nesta imersão reflexiva sobre o sujeito, considerando a pesquisa um espaço de interação e encontro com o Outro, que orientamos nossa escuta nos diálogos e compreensão, sobre os dizeres e pensamentos de cada participante, quando compartilhamos, nas várias entrevistas, da oportunidade de dizerem de si mesmos, de como veem seu envolvimento com a Libras e com o contexto social e educacional nos quais atuam.

8 Para evitar má compreensão quanto ao uso do conceito de Exotopia, deixamos claro que nos

pautamos em Bakhtin (2010a), para quem a exotopia se refere ao lugar ocupado pelo eu na relação com o outro e que dá ao sujeito a possibilidade de complementaridade entre eles – "eu devo entrar em empatia com esse outro indivíduo, ver axiologicamente o mundo de dentro dele tal qual ele vê, colocar-me no lugar dele e, depois de ter retornado ao meu lugar, contemplar o horizonte dele com o excedente de visão que desse lugar se descortina fora dele” (p.23).