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Outro tipo de dança (interessada nas singularidades coletivas)

2.2 DANÇA CONTEMPORÂNEA: MOVIMENTO PARA A DES-ONTOLOGIA DA

2.2.2 Performatividade

2.2.2.4 Outro tipo de dança (interessada nas singularidades coletivas)

A condição política da performatividade opera na dança contemporânea não somente no modo de execução dos movimentos, libertos de qualquer codificação. Não só na mudança do entendimento do que seria virtuoso suficiente para ser exibido em cena, que deixa de ser uma questão puramente física, associadas às capacidades de um corpo executar coisas consideradas inalcançáveis pela maioria das pessoas, ou pelo menos deixa de ser exclusivamente isso. Não somente no foco da discussão das obras, agora bem mais voltadas para o corpo e as forças que se agenciam nele.

A condição política da performatividade não opera na dança contemporânea somente na compreensão da condição do agente da dança, visto hoje como um atravessamento de inúmeras e múltiplas subjetividades. Não apenas, também, no entendimento da constante transitoriedade dos desejos, e da força da atuação de outra qualidade do fazer política, uma micropolítica, um ativismo que atue diretamente no campo dos afetos, dos atravessamentos de outros que somos. Não apenas no entendimento da dança como o lugar de todas as diferenças, tal qual o mundo, onde cabe todos os corpos, cores, gêneros, identidades e orientações, onde cabe a erudição e a tradição.

A condição política da performatividade opera na dança para além de em todos os aspectos já citados, atuando neles e também na constituição de uma comunidade entre seus pares, uma que se sabe necessariamente fluxos, afluências, deslocamentos, contaminações, passagens; uma que sabe, porque se sabe muitos, lidar com a presença da diferença, que não pretende sua invalidade.

E para se trabalhar na diferença, há que se trabalhar praticando acordos e pactos sempre provisórios do/no corpo que dança. Isto quer dizer que as propostas daí nascidas não tendem a tratar as ações-movimentos como se eles fossem os mesmos, iguais aos de experiências anteriores. Em vez disso, buscam reconfigurá-los e expô-los de modo diferente a cada investigação. Essa compreensão serve para ressaltar outro aspecto importante da performatividade: a repetição, entendida aqui como alteridade, numa relação ato e identidade. Repetição como interação que produz nos enunciados performativos a eficiência produtiva. (SETENTA,

2008, p. 102).

Em outras palavras, na dança performativa a repetição também encontra espaço, ainda que sua presença sofra uma reconfiguração, passando a atuar como citação, como um deslocamento.

Passado este primeiro movimento, de encontrar a arte e a obra, este círculo de força indissociável, de encontrar a dança e sua capacidade de despertar agoras, de despertar presenças, de modelar as bordas do mundo das coisas. Passado esse momento inicial de encontrar a dança contemporânea e descortinarmos os fatos dados como fixos e imutáveis através do entendimento de como a arte atua em nossas vidas, em nosso olhar, em nossa textura sensível, em nossos corpos, de como os temas investidos corroboram com esta perspectiva outra que é absolutamente política ao resistir ao político como ele é determinado, seguimos para um segundo momento.

Neste ato seguinte, o segundo capítulo, examinaremos mais profundamente alguns dos pontos já levantados, especialmente aqueles que amparam e firmam o caráter político de uma obra de arte, de dança, a partir da relação entre estética e ética. E ainda como essa característica da dança une-se a paisagem que ergue os direitos humanos, aquela que alega a vida.

3 ARTE É POLÍTICA

O sentido de dançar é a própria dança. Diante do dito nesta dissertação até então, somos levados ao entendimento de que não há qualquer necessidade de respostas, de definições fixas em torno da dança. Lidar com a dança enquanto questão, enquanto pergunta, é tratar de um constante movimento que escapa relativamente à visibilidade. A experiência em dança aproxima-se daquilo a que Derrida (2012) se refere como uma “experiência do segredo”: não pertence inteiramente nem ao espaço público, das luzes, da razão, tão pouco pertence exclusivamente ao inacessível, impenetrável. Logo nos referimos à dança como uma prática do risco, um perigo, uma ameaça e uma política – questão ou pergunta que se sustenta em si mesma, sem esperar ou buscar respostas.

As consequências políticas disso são graves. Em toda parte onde há traçamento de différance, e isso vale também para o traço da escrita, para o traço musical, em toda parte onde há traço enquanto subtraído ou em retiro relativamente à visibilidade, alguma coisa resiste à publicidade política, ao phainesthai do espaço público. “ lguma coisa”, que não é nem uma coisa nem uma causa, se apresenta no espaço público mas ao mesmo tempo subtrai-se a ele, resiste a ele. Trata-se aí de um singular princípio de resistência ao político tal como ele é determinado desde Platão, desde o conceito grego de democracia até as Luzes. “ lguma coisa” aí resiste por si mesma sem que tenhamos que organizar uma resistência com partidos políticos. Isso resiste à politização mas, como toda resistência a uma politização, é também naturalmente uma força de repolitização, um deslocamento do político. (DERRIDA, 2012, p. 88).

Falar de dança, uma cujo compromisso situe-se unicamente no ato mesmo de dançar, é então falar de política. A arte é política, portanto a dança, porque não esgota a arte, não atribui a si uma função, um atributo no mundo das coisas. Diante da dança somos desterritorializados, contaminados, perturbados em nossas convicções, despertos do estado de anestesia em que somos mergulhados por uma cultura de massa que tem como papel fundamental a sustentação das ideias neoliberais – ideias estas que transformam as subjetividades em meros objetos de trabalho e consumo.

Neste capítulo refletiremos sobre os aspectos políticos da arte, logo da dança. Melhor dizendo, aprofundaremos a pesquisa no entendimento da dança como política em si. Para este fim, caminharemos por discussões que relacionam estética

à ética, indicando aproximações desses campos que indicam modos de sentir-se e sentir o mundo. Uma compreensão sobre a experiência estética, especialmente aquela provocada pela arte, também será construída, apontando para um modo de conhecimento de mundo que atua em nosso corpo vibrátil. Este conceito também será estudado, a fim de mostrar como esta dimensão do ser é o espaço de realização da experiência estética e da potente ação da micropolítica. Por fim, o modo de produção da obra também terá lugar para ser pensado, como um caminho possível para ampliar as possibilidades políticas de uma obra (alcançando o seu próprio modo de fazer e fazendo dele um aliado na resistência), assim como voltaremos à ética para, diante de tudo elucidado, desenhá-la como modo de existência, como partícipe na leitura da dança como política no mundo.