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Com direção de Marcelo Sena e coreografia coletiva, Os Superficiais estreia em Olinda dia 28 de novembro de 2015. Espetáculo que também pode ser realizado num prédio cênico tradicional ou espaço fechado, Os Superficiais é o primeiro trabalho em formato de espetáculo da Cia. Etc. que desde a sua criação foi também pensado para ser apresentado na rua. Ele acontece num tapete de grama sintética de 6 metros de largura por 2 metros de profundidade, sem utilização de recurso de iluminação (quando realizado na rua, é feito num horário que ainda incida luz solar) e que somente necessita de uma tomada elétrica para a conexão da mesa de som. Todo o equipamento sonoro também é próprio da companhia e faz parte do cenário do espetáculo, sendo montado e executado pelos artistas da dança em cena, juntamente com um quadro branco onde consta as informações sobre o espetáculo do dia (local e horário da apresentação) e os espaços virtuais da Cia. Etc. (redes sociais, site, canais). Não há profissionais específicos para a execução dessas funções: são os artistas que montam tudo, dançam, executam a trilha enquanto dançam, passam o chapéu (ação tradicional das obras realizadas na rua, que tem como finalidade recolher doações em dinheiro para manutenção do trabalho) e desmontam o cenário, além de serem responsáveis pela divulgação dessa ação nas redes sociais, particulares e também da companhia.

Optar por um espetáculo que pode ser apresentado tanto numa caixa cênica como na rua foi uma estratégia utilizada pela Cia. Etc. para manter uma rotina de apresentações diante do colapso dos espaços culturais públicos na cidade do Recife, e da insuficiência de incentivo por parte das últimas gestões municipais e estaduais. Os Superficiais, diferentemente da grande maioria dos espetáculos realizados pela Cia. Etc. no decorrer desses seus 16 anos de atividades (muitos dos quais não foram aqui citados), foi montado com verba pública pleiteada a partir do edital do FUNCULTURA, Fundo de Incentivo à Cultura do Governo do Estado de Pernambuco. A conjuntura do estado permite que ações pontuais dessa natureza ocorram, não sem prejuízos de várias ordens (como atrasos no repasse, burocracias injustificáveis e incoerências de naturezas diversas), mas não oferece estrutura para que as mesmas se mantenham. Espetáculos, grupos, companhias, coletivos e artistas independentes precisam valer-se de infinitas estratégias para superar tais condições e manter suas atuações, uma vez que teatros estão sendo fechados (nos últimos seis anos, dois dos seis teatros municipais que Recife possui fecharam para reforma, sendo que um deles, o centenário Teatro do Parque, assim continua sem

que qualquer previsão seja dada à população) e os que estão em atividade ou apresentam condições precárias de funcionamento (sem equipamentos de luz, de som, sem ar-condicionado, sem manutenção, sem técnicos) ou estão sendo utilizados indevidamente, ocupados por eventos de natureza outra que não cultural, promovidos ou permitidos pela própria gestão municipal. A estratégia da Cia. Etc., então, foi ocupar a rua. E mais: ocupar-se dela.

Na rua, os artistas assumem a vulnerabilidade e o acaso como partes constitutivas da obra, que é performativa. Tendo como ponta pé inicial de sua criação as memórias do seu elenco, memórias essas compartilhadas posto que a vida não é vivida na individualidade mas num meio coletivo, que as subjetivações que nos constituem como esse trânsito de desejos que somos são partilhas de um sensível comum (se não a todos, a alguns; se não completamente, parcialmente; se não de forma positiva, pela sua negação), Os Superficiais coloca o artista no lugar onde a vida acontece, no mesmo nível espacial que seu público, embaralhando, muitas vezes, os papéis. A cada cena, que não necessariamente tem começo ou fim, que algumas vezes se repete com músicas diferentes, a Cia. Etc. convoca o público a se aproximar com suas memórias – com seu corpo, com suas reações e emoções – ao assumir a fala improvisada de seus quatro artistas, levados sempre pelo estado do momento, pelo local onde a apresentação acontece e, sobretudo, por quem estiver presente no ato da apresentação.

Tanto as coreografias quanto a trilha sonora, construídas a partir de partituras existentes que são ora sobrepostas, ora recortadas, trocadas, modificadas em velocidade, misturadas, coladas, deslocadas, assumindo, assim, símbolos e significados outros inexistentes na sua “versão primeira”, discutem questões sobre o limite da originalidade, provocam a reflexão do que seria cópia, do que definiria algo como novo, instigando o pensamento crítico sobre o que nos é dado como verdade – inclusive, a construção de nossa própria memória. O que é mesmo lembrança e o que inventamos inconscientemente e atribuímos o status de lembrança?

A partir da natureza desses erros da memória, além de muitos outros incidentes documentados que estudou, Müstenberg elaborou uma teoria da memória. Ele acreditava que nenhum de nós pode reter na memória a vasta quantidade de detalhes com que nos confrontamos em qualquer momento da vida, e que nossos erros de memória têm uma origem comum – todos são artefatos das técnicas que nossa mente usa para preencher as inevitáveis lacunas. […] M stenberg publicou suas ideias sobre a memória num livro que se tornou campeão de vendas, On the Witness Stand: Essays

on Psychology and Crime. Aí, ele elaborava inúmeros conceitos chave que muitos pesquisadores agora acreditam corresponder à maneira como a memória realmente funciona: primeiro as pessoas têm uma boa lembrança dos aspectos principais dos eventos, mas uma má lembrança dos detalhes; segundo, quando pressionadas pelos detalhes não lembrados, mesmo pessoas bem-intencionadas, fazendo sinceros esforços para serem precisas, e sem quererem, preenchem os detalhes inventando coisas; terceiro, as pessoas acreditam nas lembranças que inventam. (MLODINOW, 2013, p. 74-75).

Trechos de coreografias do universo pop, de videoclipes, dublagens, assim como os oriundos de um campo mais apelativo, de cunho mercadológico, são apropriados pelos artistas que atuam em Os Superficiais, tais como combinações de movimentos realizadas no premiado vídeo musical Vogue (1990) (da canção homônima da cantora americana Madonna, dirigido por David Fincher), passando por trechos de coreografias diversas utilizadas por bandas baianas de axé music na década de 90 e nos anos 2000 (como É o Tchan!, Olodum, Timbalada, Daniela Mercury), e movimentações inspiradas nas divas americanas como Whitney Houston e Beyoncé, entre outras inspirações das mais diversas e contraditórias naturezas. A Cia. Etc. assume tais abordagens como campo fértil para a pesquisa de movimento e com atribuição de transmitir ao público o desejo de repensar a própria dança (e repensando a dança dançando, provocar-nos a todos o repensar – e modificar, se assim desejarmos – a vida vivendo), especialmente por tratar-se de um espetáculo assumidamente de dança contemporânea, dançado por quatro artistas de formações múltiplas mas, em sua maioria, de longa tradição clássica.

A virtuosidade também é colocada em questão, quando o cansaço e o erro são assumidos em cena, não são mascarados. E todo esse conjunto de questões revela-se como um grande repensar o discurso da própria dança, sua tradição, abalando os pilares formais sobre os quais ela se ergueu historicamente no mundo das artes, o que não deve ser compreendido como um desejo de destruição da dança, mas do contrário: pretende-se, sobretudo, questionar, decompor e reorganizar o seu discurso. Tal como propõe Derrida, com sua desconstrução.

Utilizado pela primeira vez por Jacques Derrida em 1967 na Gramatologia, o termo „desconstrução‟ foi tomado da arquitetura. Significa a deposição, decomposição de uma estrutura. Em sua definição derridiana, remete a um trabalho do pensamento inconsciente („isso se desconstrói‟), e que consiste em desfazer, sem nunca destruir, um sistema de pensamento hegemônico e dominante. Desconstruir é de certo modo resistir à tirania do Um, do logos, da metafísica (ocidental) na própria língua em que é enunciada, com a ajuda do próprio material deslocado, movido com fins de reconstruções

cambiantes. (DERRIDA & ROUDINESCO, 2004, p. 9).

Desconstruir é um convite a revelar as contradições e ambiguidades dos discursos que sustentam o pensamento metafísico ocidental por dentro deles mesmos, e com a promoção dessa desestabilidade conseguir subverter e alargar o campo de alcance desses discursos. Recusando o reducionismo das oposições binárias, a desconstrução proposta por Derrida atua sempre na ambivalência para propor oposições dialéticas numa perspectiva paritária e horizontal, sem escalas hierárquicas, o que provocou um verdadeiro abalo nos discursos hegemônicos de toda ordem no mundo, seja na filosofia, seja nas ciências humanas, na literatura, na história, na fenomenologia ou ainda na psicanálise.

Fazer justiça a essa necessidade significa reconhecer que, em uma oposição filosófica clássica, nós não estamos lidando com uma coexistência pacífica de um face a face, mas com uma hierarquia violenta. Um dos dois termos comanda (axiologicamente, logicamente etc.), ocupa o lugar mais alto. Desconstruir a oposição significa, primeiramente, em um momento dado, inverter a hierarquia. (DERRIDA, 2001, p. 48).