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4. Sociedade civil e Democracia

4.2. Outros clássicos

A concepção se Sociedade Regulada de Gramsci, ou de poder político da sociedade civil, incorporando e substituindo a atual sociedade política, é bem diferente das várias concepções atuais e clássicas de democracia.

Diferente da concepção de Claude Lefort, (1987, p. 23 a 36 e 1991, p. 15 a 36), para quem a marca da Democracia é a criação de novos direitos e o confronto com o instituído numa contínua recriação do político. A Democracia, na sua concepção, é a invenção de contra-poderes para enfrentar a onipotência do Estado e das burocracias estatais. Diz ele que o desejo de liberdade e de igualdade não pode ser destruído e só o será se aceitarmos a servidão. Numa perspectiva de democracia não se pode ter garantias quanto aos resultados da prática política. Marilena Chauí apresentando o livro de Lefort, A Invenção Democrática em 1983, faz a seguinte síntese:

Descoberta a criação dos direitos, invenção contínua do social e do político através das divisões e dos conflitos, a democracia não pode, escreve Lefort, ser considerada uma criação burguesa, pois, muito pelo contrário, nascida da luta de classes, dos movimentos populares e operários, sempre foi considerada pela burguesia um escândalo e “um perigo maior do que o socialismo”. Por outro lado, como instituição do social, não pode ser reduzida a mero complemento político de um socialismo concebido em termos econômicos. (CHAUÍ, 1983, p 12).

É também, no que diz respeito à Democracia Representativa, profundamente diferente das concepções de Bobbio e Macpherson. Bobbio, por exemplo, em vez de superação ou até de simples limites, prefere analisar

“promessas ainda não cumpridas”, “esperanças mal respondidas”, “obstáculos imprevistos”, “inevitável contaminação depois que a teoria passa à prática” e “desenvolvimento não existente”, mesmo reconhecendo que o poder

das oligarquias não foi derrotado e que nem as grandes corporações e nem a burocracia governamental mostram interesse pela democracia. (BOBBIO, 1986, p. 17 a 40).

Macpherson (1977, 1978, 1979, 1991), autor que goza de prestígio acadêmico parecido com o de Bobbio e que se define como teórico democrático liberal, considera que o elemento principal do conceito de democracia é a existência ou exigência de controle social ao nível dos fins e dos meios das

atividades que estejam sendo realizadas. Ele critica permanentemente outros liberais, para quem, no seu modo de vê-los, a democracia seria um mercado que busca equilíbrio entre as demandas dos eleitores e as ofertas dos políticos, esquecendo-se do principal, ou seja, do grande jogo de interesses, dos oligopólios e da intervenção estatal para salvaguardar os interesses do capital. E até sugere um modelo do que seria uma democracia participativa com as seguintes precondições: mudança da consciência popular a respeito dos limites e incompetência fundamental do capitalismo para realizar os direitos humanos e a respeito do seu próprio direito de participar das decisões; diminuição das atuais desigualdades sociais e econômicas; criação de mecanismos e procedimentos que garantam a participação popular na definição de seus destinos, como, por exemplo, associações de bairros e de vizinhança, lutas pela melhoria da qualidade de vida, liberdade de expressão, direitos das minorias e co-gestão de empresas. (MACPHERSON, 1978).

O seu modelo de democracia participativa seria piramidal com democracia direta na base e democracia por delegação em cada nível depois dessa base. Assim prosseguiria até ao vértice da pirâmide, que seria um Conselho nacional para assuntos de interesse nacional e Conselhos locais e regionais para setores próprios desses segmentos territoriais. (ibid., p.110).

Diferentemente de toda a tradição marxista, Bobbio e Macpherson gostariam de sair do âmbito da economia política, que relaciona e, às vezes até condiciona, as mudanças na sociedade ao modo de organizar a economia, ou seja, ao modo de organizar a produção, circulação e distribuição de bens, serviços e dinheiro. Ambos, liberais assumidos e individualistas democráticos, sustentam a autonomia do político em relação à economia e admitem, mesmo reconhecendo todos os limites e a quase impossibilidade de suas propostas, a realização dos direitos humanos por uma via que chamam democrática, que não é diferente da atual via parlamentar aperfeiçoada.

Um passeio rápido, começando no século XVI, tentando, entretanto, não descaracterizar e deturpar o pensamento de autores tão importantes, dá uma idéia de como aparecia e era tratada a sociedade. Hobbes, por exemplo, não poderia ir muito longe, já que de acordo com sua concepção, as pessoas para sair de um estado de natureza em que todos lutam contra todos, deveriam renunciar à liberdade e, para salvaguardar suas vidas e a paz social, teriam que entregar seus destinos a uma pessoa ou a uma assembléia, criando assim o Estado. Para ele, a sociedade nasce com o Estado e o poder do governante tem que ser ilimitado, sob pena de continuar a guerra geral de todos contra todos. O poder do governante só é limitado pela vida e pela paz. Não, há, portanto, em Hobbes, lugar para as pessoas, grupos ou seus representantes na gestão da sociedade e o que ele chama de sociedade civil, em contraposição à sociedade de natureza, inclui governo, sociedade e suas relações. (HOBBES, 1979). Nesta “Sociedade Civil” de Hobbes só os súditos assinam o contrato entregando seus destinos a um soberano que passa a existir a partir do contrato. E esse Leviatã não atemoriza, pois bem mais atemorizante do que ele é o Estado de Natureza.

Sobre o mesmo tema, a diferença entre Locke e Hobbes é que Locke torna bem mais complexo o aparelho governamental, criando a divisão dos poderes e fundamentando o poder nos direitos individuais e no respeito às leis. Contrapondo-se a Hobbes, defensor do totalitarismo, Locke será visto como o primeiro e ainda muito atual teórico do Estado Liberal. Ele admite que o poder é revogável, que os homens em geral, e não grupos específicos, devem instaurar a forma de governo que lhes for mais conveniente. Locke continua inspirando todos os autores, e são muitos, e quem mais conceba o Estado como uso legal da força e o indivíduo como base e destinatário do poder dos governantes. Locke é, portanto, um dos principais inspiradores do formato atual de Democracia Parlamentar Representativa. (LOCKE, 1966).

Grande diferença no que diz respeito ao poder da sociedade civil, na filosofia moderna será marcada por Rousseau (1954), que como Hobbes e Locke, teoriza sobre a passagem de um Estado de Natureza para um Estado de Sociedade e vê a origem do Estado num contrato, baseado no direito natural. Rousseau começa a fazer uma distinção entre vontade de todos ou da maioria e Vontade Geral ou Vontade Coletiva. Para ele, através do contrato, se poderia resgatar e conservar a liberdade e a igualdade vigentes no Estado de Natureza. Ele se distingue radicalmente de seus antecessores por afirmar que a soberania não está com os governantes e sim com o povo e faz uma distinção bem clara entre soberano, que é o povo, e o legislador e governo, sendo este mais um executor das decisões soberanas do povo. Rousseau é um crítico feroz do liberalismo que se apóia fundamentalmente na propriedade privada individual. Chega, na sua crítica, até a ser um defensor da completa estatização da sociedade. Entretanto, na sua teorização da soberania popular, ele fica bem mais próximo da democracia direta de Platão do que de um poder de grupos e corporações, poder que, aliás, ele vê como uma possível ameaça à soberania popular.