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Outros pressupostos sociolinguísticos

No documento UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (páginas 96-103)

3. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA: Ordem do clítico “se” em complexos verbais e

3.3 Pressupostos sociolinguísticos

3.3.2 Outros pressupostos sociolinguísticos

No que se refere aos dados para a análise linguística, a Teoria da Variação e Mudança prioriza a fala espontânea, que pode reproduzir fidedignamente a realidade de uma comunidade de fala, a partir da representação vernacular da língua, além de constituir material seguro para a análise da mudança. Levando-se em conta a prioridade na descrição dos usos nas diversas comunidades de fala, LABOV (1994) alerta para o cuidado que se deve ter na aplicação da noção de regra variável a outros dados, especialmente no que se refere ao trabalho com dados históricos.

Sabe-se que, dada a impossibilidade de trabalhar com um corpus oral em sincronias anteriores à invenção do gravador, não se dispõe de outro recurso, senão lidar com dados da modalidade escrita. Para o pesquisador (cf. LABOV, 1994), dados de sincronias passadas não permitem uma avaliação objetiva da realidade de determinada língua. Documentos do passado não seriam confiáveis por serem parte de resultados de acidentes históricos, além de refletirem os esforços dos escribas em reproduzir um padrão normativo distinto da língua nativa de um falante, com hipercorreções e mistura de dialetos. Por isso, todas as ressalvas sobre a dificuldade de se fazer linguística histórica representam o que Labov considera “a arte de fazer o melhor uso possível de dados deficientes” (1994, p. 11).

Para minimizar esse problema, propõe-se a observação dos processos atuais de mudança nos dados contemporâneos, de modo a inferir possíveis processos que possam ter operado no passado. Segundo os pressupostos da Sociolinguística Variacionista, constitui recurso valioso para a investigação de um procedimento histórico observar os processos de alternância das línguas do presente. Esse exercício de reconhecimento e comparação dos processos linguísticos antigos, a partir da observação dos atuais, foi denominado Princípio do Uniformitarismo. No que tange às diferenças sociais, tal princípio apresenta algumas limitações na constituição de inferências, já que a organização social de comunidades antigas era totalmente diferente da que se tem atualmente. Contudo, sugere-se que não se deve abandonar a intuição neogramática “de que tal princípio é condição preliminar necessária tanto para a reconstrução histórica como para o uso do presente para explicar o passado” (LABOV, 1994, p.24).

Entende-se, portanto, que a mudança é um resultado inevitável observado no presente de um processo gradual de variação que começa a se implementar no passado. É prudente lembrar, contudo, que nem toda variação implica necessariamente mudança,

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mas toda mudança pressupõe variação. Nos termos de DUARTE & PAIVA (2006, p. 139): “Na proposta de WLH, a mudança é entendida como uma consequência inevitável da dinâmica interna das línguas naturais. [...].” Passa-se, então, por um continuum em que, num mesmo intervalo temporal, variantes antigas e novas se apresentam em competição na comunidade de fala. A esse respeito, as autoras concluem:

Em confronto com perspectivas anteriores, WLH, ao destacar a estreita relação entre variação e mudança, abrem o caminho para a compreensão dos estágios intermediários entre dois momentos temporais, permitindo, assim, captar a instalação contínua e gradativa da mudança. Velhas e novas formas variantes rivalizam num mesmo momento de tempo e essa alternância pode representar uma transição para um outro estado de língua. (DUARTE & PAIVA, 2006, p. 139)

Para o estudo da variação, pressupõe-se que qualquer comunidade linguística se caracteriza pelas diferentes formas de uso da língua. As variantes de cada fenômeno ocorrem num plano geográfico e numa esfera social, e são motivadas também pelo próprio contexto linguístico. Desse modo, para o controle de possíveis influências linguísticas e/ou sociais no tratamento dos dados, pode-se utilizar uma ferramenta específica, o pacote de programas técnico-computacional Goldvarb-X. Com essa ferramenta, é possível identificar a distribuição dos dados em cada contexto controlado e, ainda, as variáveis condicionadoras do fenômeno, por ordem de relevância, com base na ponderação estatística que informa a influência específica de cada fator por meio de pesos relativos. Maior detalhamento relacionado ao assunto será apresentado na seção de metodologia, bem como a justificativa pelo fato de não se ter utilizado, nesta pesquisa, valores em pesos relativos.

Como variação e mudança se mantêm intimamente relacionados na Teoria variacionista laboviana, não se pode deixar de considerar, especialmente em um trabalho que contempla dados de outras sincronias, os “Princípios empíricos para a teoria da mudança linguística”, propostos por WLH (2006). Baseando-se em fundamentos empíricos de suma importância, os autores formularam cinco questões (problemas) para a teoria da mudança linguística, sem as quais não seria possível relacionar os dados variáveis aos pressupostos teóricos. Segue, abaixo, uma breve apresentação dos cinco problemas da mudança:

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A análise minuciosa de um fato linguístico variável depende da observação de possíveis condicionamentos para a variação. Dessa forma, é necessário estabelecer os fatores linguísticos e sociais, também chamados de variáveis independentes, que possam ser atuantes sobre a realização da variável dependente. Com isso, discute-se sobre as condições que favoreceriam ou restringiriam as mudanças, além de buscar investigar qual é o conjunto das mudanças possíveis. A questão conduz ao fato de que estas últimas seguem princípios universais e levam à simplificação e generalização de regras da gramática, mas não devem ser desvinculadas da estrutura social. Dessa forma, sugere-se que o problema das restrições seja atrelado ao problema do encaixamento, a ser discutido posteriormente. Aplicando-se ao contexto da presente pesquisa, é a partir do ‘problema da restrição’ que se investiga a influência dos grupos de fatores sobre a colocação do “se” em complexos verbais. Verifica-se qual restrição, sobretudo estrutural, atua na preferência por determinada variante.

(ii) O problema do encaixamento

Como complemento ao problema discutido anteriormente, tem-se que “as mudanças linguísticas sob investigação devem ser vistas como encaixadas no sistema linguístico como um todo.” WLH (2006, p. 122). A grande questão é que o encaixamento deve ser relacionado ao sistema interno da língua e deve ser estendido ao plano da interação entre sistema e estrutura social da comunidade de fala. Para a discussão, o tratamento sociolinguístico desmembra o problema do encaixamento em duas vertentes complementares, descritas a seguir: o encaixamento na estrutura linguística e o encaixamento na estrutura social.

(a) Encaixamento na estrutura linguística

Uma mudança ocorre em conjunto numa comunidade de fala e não se limita ao idioleto. Além disso, a língua apresenta “variáveis intrínsecas” ao sistema atreladas a fatores linguísticos e extralinguísticos que delimitam as possibilidades de mudança. Esse sistema caracteriza-se, portanto, por uma heterogeneidade estruturada e é diferenciado dentro da comunidade de fala.

O processo da mudança normalmente se dá por um movimento lento de um grupo limitado de variáveis de um sistema que se altera gradativamente de um extremo ao outro. A variação linguística é, dessa forma, uma característica inerente à competência linguística dos membros da comunidade de fala, levando-se em

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consideração a análise do grupo e não de um indivíduo isoladamente. Configura-se, então, um dos aspectos mais importantes da sociolinguística, em relação aos modelos anteriores de análise da mudança, que é o encaixamento na estrutura social, discutido abaixo.

(b) Encaixamento na estrutura social

Reconhece-se o avanço da proposta variacionista de que uma análise essencialmente linguística não daria conta do processo da mudança. Com isso, mostra- se a importância da união entre os fatores linguísticos e sociais por propiciarem uma visão mais adequada do processo histórico de constituição de uma língua. A variação é inerente ao sistema linguístico e intrínseca aos fatores sociais e geográficos.

Indaga-se, então, sobre como se devem correlacionar “o processo de estruturação da língua e o conjunto das relações sócio-históricas na comunidade de fala” LUCCHESI (2004, p. 177). Desse modo, o problema do encaixamento configura-se, ao mesmo tempo, a mais produtiva área de trabalho da sociolinguística e aquela que acumula as maiores dificuldades e desafios. No caso desta pesquisa, por se tratar de dados da modalidade escrita, a análise da variável gênero textual permite observar, do ponto de vista extralinguístico, a amplitude do encaixamento em diferentes manifestações sociais, por meio dos três gêneros textuais jornalísticos em questão.

(iii) O problema da transição

A questão da transição levanta a clássica discussão dos processos da mudança; seriam os seus estágios discretos ou um continuum? A questão da dinamicidade da língua rompe com a concepção estrutural da mudança e com a visão estruturalista da língua difundida por Saussure, cujos estudos a consideravam como parte de um sistema homogêneo e unitário, com alguns períodos de instabilidade. Sob uma perspectiva mais abrangente, em que os fatos sob análise não se limitam ao sistema interno da língua, o problema da transição propicia a instigante ideia de se estabelecer o percurso da mudança linguística vinculado à estrutura social.

Com o avançar dos estudos sociolinguísticos, pode-se observar que o fenômeno linguístico em mudança ocorre de forma lenta e gradual a partir de um continuum ininterrupto de variação, e passa por momentos intermediários, em que convivem, numa mesma época, formas alternantes conservadoras e inovadoras. O problema discutido associa-se, na pesquisa, ao problema da implementação, a ser apresentado a seguir.

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(iv) O problema da implementação

O principal questionamento a que o presente problema busca responder é: “Por que uma dada mudança ocorreu em um momento e em um lugar determinados, e não em outro momento e/ou outro lugar?” LUCCHESI (2004, p. 179). Pretende-se, então, investigar os estímulos e restrições da sociedade e da estrutura linguística para o processo global da mudança, que trazem à tona a dificuldade de decifrar por que a implementação não se deu em outro momento ou em outro lugar.

Partindo-se das exigências naturais deste trabalho, busca-se investigar em que estágio do período que compreende os séculos XIX e XX a mudança na escrita das duas variedades começa a se implementar, ou se apenas características da variação podem ser observadas. Pretende-se comparar se a escrita brasileira e a europeia apresentam o mesmo comportamento variável quanto às construções estudadas, para investigar se a implementação se deu do mesmo modo e ao mesmo tempo nas duas variedades.

(v) O problema da avaliação

A questão da avaliação incita um importante debate entre a função do indivíduo em face da mudança e da própria língua e o princípio saussuriano que prevê um indivíduo passivo frente às mudanças do processo de estruturação linguística. As etapas históricas desse processo pressupõem as reações conscientes do indivíduo quanto à mudança. Para WHL (2006, p. 124), “o nível de consciência social é uma propriedade importante da mudança linguística que tem de ser determinada diretamente”.

A avaliação subjetiva do indivíduo é correlacionada a alguns estágios por que passa a mudança. A primeira etapa encontra-se abaixo do nível da consciência social. Não é simples a descoberta da mudança pela comunidade nesse primeiro momento. Em estágios intermediários, desvios de estilo começam a aparecer. Com os testes de reação subjetiva, é possível observar a avaliação social. Nas etapas finais da mudança, há uma ampla percepção social sobre o fenômeno, com tendências ao estabelecimento de estereótipos. Evidencia-se a norma conservadora, considerada de prestígio, enquanto os estereótipos são relacionados a atributos sociais negativos.

A questão, portanto, é determinar em que medida a avaliação subjetiva pode interferir no processo de mudança.

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WHL (2006, p. 124) complementam que, se a mudança linguística representa mudança no comportamento de uma sociedade, há uma dificuldade natural em se postular hipóteses preditivas, questão comum a todos os estudos de cunho social. A respeito do assunto, concluem da seguinte forma:

Tais considerações não devem nos impedir de examinar tantos casos quanto pudermos em todo pormenor para responder os problemas levantados acima e reunir tais respostas numa visão abrangente do processo de mudança. (WHL, 2006, p. 124)

Observa-se, neste trabalho, a produtividade das variantes da colocação do “se” na escrita brasileira e na europeia. Direta ou indiretamente, alguns dos problemas da mudança linguística correlacionam-se ao presente estudo.

A questão do encaixamento, nos seus níveis linguístico e social, é perseguida na medida em que o estudo leva em consideração a variação inerente ao sistema linguístico atendendo também a alguns fatores sociais16. No que se refere ao encaixamento linguístico, não constitui propósito deste trabalho apresentar hipóteses acerca das possíveis mudanças correlacionadas ao fenômeno, como, por exemplo, as que se referem à representação do sujeito e do objeto direto, à ordem sujeito-verbo, à concordância, dentre outras.

O problema da transição é contemplado na pesquisa, tendo em vista as reflexões que os dados permitem acerca do percurso através do qual se dá a variação do fenômeno sob análise com o passar dos séculos XIX e XX.

O trabalho variacionista enseja colaborar, direta ou indiretamente, para a resolução do problema da implementação, tendo em vista a necessidade de explicar a instalação das mudanças, que pressupõe a observação de fatores sociais e linguísticos. A presente pesquisa analisa as questões sociais no que tange às diferentes variedades do Português analisadas, considerando épocas distintas de realização do clítico pronominal em complexos verbais e os diferentes gêneros textuais que geraram as ocorrências. O condicionamento linguístico também é avaliado para viabilizar a resposta à pergunta que norteia o problema da implementação, ou seja, por que a mudança ocorre em determinados momentos e lugares, e não em outros?

16 Saliente-se que a análise dos fatores sociais, nesta pesquisa, se limita à questão da época da publicação e ao gênero textual, já que se trata de corpus da modalidade escrita.

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Por fim, o problema da avaliação subjetiva é investigado nesta pesquisa, mas não por meio de seu modelo clássico de avaliação, que se refere mais especificamente aos valores – positivos ou negativos – atribuídos às variantes. Por meio da realização de questionários avaliativos entre falantes brasileiros e portugueses, busca-se comparar e atestar se há sobretudo diferenças de aceitação/interpretação de enunciados, por parte dos representantes do Brasil e de Portugal. Sublinha-se, aqui, que a análise dos resultados referentes às respostas aos questionários constitui estratégia fundamental para a consideração do estatuto da regra variável em cada conjunto de textos analisados.

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