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ABSTRAÇÃO DO TODO E ABSTRAÇÃO DA FORMA

1.2. Exposição textual: a teoria tomásica da abstração A teoria tomásica da abstração apóia-se em três textos principais:

1.2.4. Outros textos sobre abstração

Podemos observar uma evolução no pensamento de Tomás ao caracterizar a abstração como abstração do universal. Nos textos de juventude, ele apresentava uma

45 Id., Ib. “duplici modo abstractionis”. (ed. bras., 2006: 139). 46 Cf. ST, Iª q.85 a.1 ad1.

preocupação maior em caracterizar os tipos de distinção, as duas abstrações de um lado e a separação de outro lado. No De ente et essentia, datado entre 1252 e 125647, Tomás preocupa-se com a abstração do todo e a abstração precisiva, das quais tratamos acima. A seguir, em Super Boetium De Trinitate, datado entre 1257 e 1258, vimos surgir o conceito de abstração da forma, segundo a qual a forma acidental é obtida da matéria sensível.

Contudo, é na sua obra de maturidade que Tomás de Aquino utiliza os termos “universal” e “ente matemático” para explicitar o produto obtido pelas duas abstrações, respectivamente, a abstração do todo e a abstração da forma. Em seu In De Anima, datado entre 1267 e 1269, Tomás de Aquino afirma que “Podemos, contudo, abstrair de dois modos: um ao proceder dos particulares aos universais, e o outro pelo qual os entes

matemáticos são abstraídos dos entes sensíveis”.48 Deste modo, a abstração da forma não

consistiria na abstração de quaisquer formas acidentais, mas apenas das formas acidentais relativas à quantidade.

Neste texto, além do mais, Tomás de Aquino deixa claro que ele pensa em apenas duas abstrações, a saber, uma na qual se obtém o universal e outra na qual se obtém entes matemáticos. Deste modo, não se pode admitir que “branco” ou “quente” seja obtido por abstração da forma, mas são obtidos por abstração do todo, ou seja, por abstração do universal.

Contudo, as distinções entre os dois tipos de abstração não acabam por aí. Na primeira parte da Summa Theologiae, datada entre 1266 e 1268, Tomás de Aquino afirma:

A diferença entre estes dois tipos de abstração consiste no fato que na

abstração do universal a partir do particular, aquilo do qual a abstração é feita não permanece, pois quando a diferença racional é removida de homem, o

47 Sobre a cronologia e autenticidade das obras de Tomás de Aquinos, baseamo-nos aqui no trabalho de Jean-Pierre

Torrell, o.p. Cf. TORRELL, J-P, Iniciação a Santo Tomás de Aquino. São Paulo: Loyola, 1999.

48 In De Anima, lib.1 l.4 §48. “Habemus autem duplicem modum abstractionis per intellectum: unum qui est a

homem não permanece mais no intelecto, mas permanece apenas animal. Mas na abstração da forma a partir da matéria, tanto a forma quanto a matéria permanecem no intelecto. Como, por exemplo, se nós abstrairmos a forma de um círculo do bronze, permanece no intelecto separadamente o entendimento tanto do círculo quanto do bronze”49.

Uma primeira observação a ser feita acerca deste texto é a caracterização da abstração do todo como uma abstração entre universais. No De ente et essentia, Tomás de Aquino descreve principalmente um processo de abstração do universal a partir do indivíduo, inserindo a distinção entre matéria individual e matéria comum. Deste modo, ao se abstrair homem de Sócrates, deixa-se de lado a matéria individual, estas carnes e estes ossos, e retém-se a matéria dita comum, na qual não há assinalação, como, por exemplo, carnes e ossos tomados absolutamente. Neste texto podemos entender a abstração do todo de modo mais abrangente, no qual o universal pode ser abstraído não apenas de um indivíduo, mas também de um outro universal. A diferença fundamental é que no primeiro caso deixa-se de lado a matéria individual, no segundo caso, no qual a matéria individual já está deixada de lado, deixa-se de lado a diferença específica.

Embora não esteja explícito, já no De ente et essentia esta interpretação era possível, a partir da afirmação seguinte: “a essência do gênero e a essência da espécie diferem de acordo com o assinalado e o não assinalado”50. Isto é afirmado em um contexto no qual Tomás caracteriza a abstração do todo, usando os exemplos Sócrates e homem, no qual homem é um universal obtido por abstração do todo a partir do indivíduo Sócrates, com a salvaguarda de a matéria assinalada de Sócrates ser deixada de lado na obtenção do todo. Deste modo, assim como entre Sócrates e homem há uma distinção de assinalação da

49 ST, Iª q.40 a.3 co. “Inter has autem abstractiones haec est differentia, quod in abstractione quae fit secundum

universale et particulare, non remanet id a quo fit abstractio, remota enim ab homine differentia rationali, non remanet in intellectu homo, sed solum animal. In abstractione vero quae attenditur secundum formam et materiam, utrumque manet in intellectu, abstrahendo enim formam circuli ab aere, remanet seorsum in intellectu nostro et intellectus circuli et intellectus aeris.” (tradução própria).

matéria, paralelamente entre homem e animal há uma distinção de assinalação da diferença específica racional.

Uma outra dificuldade com relação à caracterização da abstração do todo no DE como abstração do universal a partir do particular consiste na própria natureza do universal. Conciliar as duas concepções, do DE e da ST , Iª q.40 a.3, parece implicar que os universais têm existência in re, i.e., existem independentemente do intelecto. Trataremos propriamente desta questão nos capítulos terceiro e quarto desta tese, sobre a essência absolutamente considerada (EAC) e sobre a intenção de universalidade. Contudo, podemos antecipar que Tomás de Aquino utiliza “universal”51 em dois sentidos, no primeiro sentido consiste na natureza à qual se atribui universalidade; em um segundo sentido, significa a própria intenção de universalidade. Neste último caso, a intenção de universalidade existe apenas no intelecto, em contrapartida, a natureza considerada absolutamente pode existir no indivíduo. Deste modo, como veremos ao longo da tese, conciliar a abstração do universal a partir de outro universal com a abstração do universal a partir do indivíduo não implica comprometer-se com a existência in re da intenção de universalidade.

No caso dos entes matemáticos, que têm uma abstração à parte, a saber, a abstração da forma, o intelecto procede de modo diferente se comparado com os universais propriamente ditos. No caso dos universais genéricos, o intelecto deixa de lado seja a

51 Cf. In de Anima, lib.2 l.12 §6. “universale potest accipi dupliciter. Uno modo potest dici universale ipsa natura

communis, prout subiacet intentioni universalitatis. Alio modo secundum se.”. Em português, “universal pode ser tomado em dois sentidos: no primeiro modo, diz-se universal da própria natureza comum, enquanto subjaz à intenção de universalidade. De outro modo, a natureza em si mesma” (tradução própria). Tomás de Aquino retoma esta distinção em

um texto da primeira parte da segunda parte da Summa Theologiae, que foi redigido posteriormente, durante a segunda estada em Paris, provavelmente em 1271. cf. ST, Iª-IIae q.29 a.6 co. “universali dupliciter contingit loqui, uno modo,

secundum quod subest intentioni universalitatis; alio autem modo, de natura cui talis intentio attribuitu”. Em português,

“há dois modos de falar de universal: de um lado, segundo o que subjaz à intenção de universalidade, de outro lado, da

matéria individual, seja a diferença específica52. Em contrapartida, no caso dos entes matemáticos, o procedimento é diverso. As figuras geométricas não existem sem a substância, pois consistem em quantidades, que são acidentes. No entanto, o intelecto pode considerar os acidentes quantitativos sem considerar os demais acidentes. Deste modo, pode-se considerar a forma esférica de uma bola sem considerarmos sua qualidade branca. Contudo, não podemos eliminar da quantidade a substância. Por isso, Tomás de Aquino considera que o “círculo” e o “bronze” existem separadamente no intelecto. Pois ao tratarmos das propriedades geométricas do círculo não importa se é o acidente do bronze ou do ferro. Contudo, não se pode reter o círculo em abstrato no intelecto sem a referência à substância em geral, pois todo acidente é acidente de uma substância. Esta tese já havia sido tratada no Super Boetium De Trinitate, no qual Tomás de Aquino considera a substância como a matéria inteligível da quantidade.