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ABSTRAÇÃO DO TODO E ABSTRAÇÃO DA FORMA

1.2. Exposição textual: a teoria tomásica da abstração A teoria tomásica da abstração apóia-se em três textos principais:

1.2.2. Super Boetium De Trinitate, q.5 a

Tomás de Aquino considera, a partir de Aristóteles, a existência de uma dupla operação no intelecto, na qual uma é responsável pela apreensão dos indivisíveis e a outra pela composição e divisão do que foi apreendido na primeira operação. A primeira operação visa à natureza da coisa, pela qual a coisa apreendida intelectualmente ocupa um determinado grau entre os entes, a saber, uma coisa completa ou uma parte (ou acidente). Em contrapartida, a segunda operação visa ao próprio ser da coisa, i.e., à existência de um determinado estado de coisas.

Deste modo, podemos observar que a essência e a existência são visadas segundo a dupla operação existente no intelecto. A primeira operação visa à essência, quer da substância, quer do acidente. A segunda operação visa à existência, que no caso dos entes compostos não decorre da essência, e, no caso da causa primeira (Deus), é idêntica à essência. Nesta operação, o intelecto não abstrai, uma vez que abstrair implica considerar separadamente o que está unido na realidade. Ao invés, no caso em que não se distingue o que está unido na realidade, o intelecto, por meio de juízos negativos, expressa a separação na realidade. Interessante notar o exemplo que Tomás de Aquino utiliza para a separação,

“o homem não é o asno”, uma vez que não há composição real entre homem, que é racional, e asno, que é irracional.

Tomás de Aquino propõe a seguinte lei para a abstração, a saber:

“quando a própria natureza (...) comporta uma ordem e dependência em relação a algo de outro, então é certo que tal natureza não pode ser inteligida sem este outro”37.

Ou seja, o intelecto não pode abstrair A de B, se A depende de B. Ademais, este princípio vale para os dois tipos de união nas coisas, a saber, a união entre parte e todo, como em pé e animal, e a união entre forma e matéria, como em quadrado e mesa.

A abstração não pode ser praticada pelo intelecto em duas situações, ou bem (i) tratar-se de coisas separadas, como homem e pedra, ou bem (ii) a intelecção do que se procura abstrair depende da intelecção do que é deixado de lado.

Para o modo de união entre parte e todo, Tomás de Aquino propõe dois exemplos, a saber, letra e sílaba; pé e animal. Não se pode pensar a sílaba sem pensar a letra, pois pertence à definição de sílaba o ser composto por letras. Deste modo, não se pode considerar a sílaba sem a letra. Em contrapartida, não consta da definição de letra o pertencer a alguma sílaba, deste modo podemos considerar a letra sem considerar a sílaba. O mesmo se aplica ao segundo exemplo, faz parte da definição de pé ser o meio pelo qual se locomovem os animais terrestres, portanto, não se pode considerar o pé sem considerar o animal. Em contrapartida, não consta da definição de animal que deva possuir pé, ou asa, ou racionalidade. Deste modo, podemos considerar animal sem considerar o pé, ou a asa, ou a racionalidade.

37 DT, q.5 a.3 co.2. “Quando ergo secundum hoc (...) natura ipsa habet ordinem et dependentiam ad aliquid aliud, tunc

Contudo, vale ressaltar que o todo não pode ser abstraído de qualquer parte, mas apenas das partes que são acidentais relativamente ao todo. Por exemplo, faz parte da essência individual de Sócrates ter tais carnes e tais ossos. Contudo, relativamente à essência específica de homem, não é essencial que tenha tais carnes e tais ossos, embora seja essencial ter carne e osso, considerado de modo geral, no que Tomás denomina matéria comum. Um outro exemplo de parte acidental, proposto por Tomás de Aquino38, é o semicírculo em relação ao círculo, pois não faz parte da definição de círculo que por divisão se obtenha dois semicírculos. Deste modo, pode-se abstrair o todo círculo da parte acidental semicírculo. Por outro lado, não se pode abstrair o triângulo de seus três ângulos, uma vez que se trata de uma parte essencial, que pertence à definição do triângulo.

Dado A e B, o intelecto pode distinguir A e B de vários modos. Através da segunda operação, distingue A de B, inteligindo que A está sem B, temos aqui a operação que Tomás denomina “separação”. Contudo, se A e B estão unidos, o intelecto distingue A de B sem inteligir nada de B. Se A e B estiverem relacionados ao modo de todo e parte, então teremos uma abstração do todo. Em contrapartida, se A e B estão compostos ao modo de forma acidental e matéria sensível então teremos uma abstração da forma. Deste modo, pode haver apenas uma dupla abstração, a saber, do todo a partir da parte e da forma a partir da matéria.

Tomás de Aquino corrobora a interpretação acima ao afirmar que “a forma que pode ser abstraída de alguma matéria é aquela cuja noção da essência não depende de tal matéria”39. Tomás de Aquino refere-se aqui à independência da forma acidental da

38 Cf. DT, q.5 a.3 co.3. “Quaedam vero partes sunt quae accidunt toti, in quantum huiusmodi, sicut semicirculus se habet

ad circulum.” Em português, “Há, porém, certas partes que são acidentais ao todo enquanto tal, como o semicírculo se porta para com o círculo.” (ed. bras., 1998: 121).

39 DT, q.5 a.3 co.2. “Forma autem illa potest a materia aliqua abstrahi, cuius ratio essentiae non dependet a tali

quantidade (p.ex. quadrado, redondo) em relação à matéria sensível (p.ex. quente, azul). No entanto, posto que a noção de acidente depende da noção de substância, segue-se que a forma acidental, embora possa ser separada desta ou daquela substância, não pode ser separada de substância considerada de um modo geral, denominada matéria inteligível. Ou seja, Tomás de Aquino introduz uma distinção importante, a saber, entre matéria-sujeito e matéria sensível. Pois, no caso da quantidade, esta pode ser abstraída da matéria sensível (qualidades sensíveis), mas não da matéria-sujeito inteligível. Deste modo, a matemática trata dos abstratos obtidos por abstração da forma, deixando de lado a matéria sensível.

Tomás de Aquino conclui sua análise das operações mentais de distinção, considerando haver três modos distintos de distinguir A de B. Se A e B não estão unidos, teremos uma distinção denominada separação. Em contrapartida, se A e B estiverem unidos, teremos duas possibilidades de distinção, a saber, uma abstração do todo, se A e B estiverem unidos a modo de todo e parte, ou uma abstração da forma, se A e B estiverem unidos ao modo de forma acidental e matéria sensível.