• Nenhum resultado encontrado

PARTE III: ROTEIRO E BASTIDORES: AS FAMÍLIAS

Foto 26: Página da revista Caras

2.4. Intercâmbio cultural: Educação? Turismo? Missão?

Na primeira parte deste Capítulo 2, em que foram apresentadas as agências que se ocupam, na cidade de Belo Horizonte, com os intercâmbios culturais, vimos que, apesar da diferença entre elas, muitos pontos em comum aparecem: as formas de organização, a imagem que fazem do público alvo, os benefícios que anunciam como agregados ao intercâmbio.

No entanto, chama a atenção algo que perpassa todo o discurso das agências, seja o apresentado no material publicitário, seja o das entrevistas realizadas: a tensão existente entre os dois pólos em que podem ser situados os intercâmbios: o da educação e o do turismo. Essa tensão pode ser percebida também numa rápida consulta aos jornais: a publicidade, as reportagens e entrevistas que têm como tema os intercâmbios culturais aparecem ora nos cadernos de educação, ora nos cadernos de turismo. Os próprios nomes de algumas agências também demonstram esta área de interseção em que se situam: Study&Adventure, Student Travel Bureau, World Study, Central Internacional do Estudante, Study Travel Information...

Num primeiro momento poderíamos pensar que as agências ligadas a cursos de línguas ou a cursos no exterior em geral tenderiam para o pólo educação e as

outras, para o pólo turismo, porém a análise dos discursos revela, o tempo todo e em todas as agências, a tensão entre os dois pólos:

Estamos há treze anos trabalhando com essa área de turismo e educação... [...] Intercâmbio cultural não é uma venda de um pacote turístico, é pra isso que as pessoas têm que acordar. (Entrevista no Greenwich)

Mais do que comerciantes, nós somos educadores. [...] Prefiro ser chamada de consultora educacional, por causa dessa confusão com o turismo.

(Entrevista na segunda representação da EF – Escolas de Idiomas)

Lembre-se de que seu programa de high school é, antes de tudo, um programa educacional (Material da Central do Estudante)

Na realidade, a gente trabalha com educação internacional, em geral. Tudo que está relacionado com educação internacional nós trabalhamos.

(Entrevista na World Study)

Mas se há, como nos depoimentos acima, uma ênfase no pólo educação e até mesmo uma negação do aspecto comercial da atividade, as informações sobre possibilidades de viagens organizadas pelas agências no início ou no final do intercâmbio, as exigências sobre a aquisição das passagens na própria agência e a descrição de alguns países nos folhetos, como vimos, mostram que as duas áreas realmente se confundem. Isto ficará ainda mais claro quando analisarmos, no último capítulo, o vocabulário utilizado pelas famílias entrevistadas, em que palavras como “venda”, “cliente” e “pacote” são recorrentes.

Na verdade, a tensão percebida no discurso das agências que ofertam o serviço parece responder a uma tensão existente no interior das próprias famílias que o demandam, como veremos posteriormente. Os intercâmbios culturais, como vimos no capítulo anterior, inserem-se numa tradição de formação, durante muito tempo reservada às elites, que combina as viagens, o aprendizado de línguas e a descoberta do mundo e das possibilidades pessoais do estudante.

Além dos aspectos educação e turismo, realçados pelas agências, os intercâmbios são apresentados muitas vezes como uma missão: a busca do entendimento entre os povos e da paz mundial:

Mas o objetivo maior é intercâmbio cultural visando uma paz mundial. Então a gente fala assim: se esse Milosevic89 aí tivesse feito intercâmbio,

89

talvez não estivesse essa confusão, esse homem teria uma cabeça um pouco... O mundo dele seria um pouquinho maior pra ele poder resolver as questões lá de outra forma, não com tanto radicalismo. [...] Que não tem como, no final das contas, não ter essa resultante, porque você vai, você fica na casa de uma família, sua família começa a se interessar pelo país onde você está. Às vezes a família de lá vem aqui. É uma bola de neve de amizades, é um sem-fim... (Entrevista com “chairman” do Rotary)

O guia do candidato do AFS também explicita este aspecto, quando apresenta o histórico do programa:

Eles [os motoristas americanos de ambulância durante a segunda guerra] tinham uma missão de compaixão e não de conflito. [...] queriam mudar o foco mundial de hostilidade para amizade. [...] Se gerações futuras pudessem desenvolver uma empatia mútua através do entendimento, reconhecimento e apreciação das diferenças entre as nações, então talvez guerras futuras pudessem ser evitadas.

E quando descreve a situação atual do programa:

Neste momento, estudantes do AFS estão aprendendo a entender e a falar mais de 40 línguas. Muito mais importante, eles estão se tornando fluentes na linguagem da tolerância. [...] Sua missão é a Educação em seu sentido mais amplo: aquela que extrapola as salas de aula para promover o aprendizado intercultural e a compreensão internacional através da troca de idéias e experiências de vida entre os indivíduos.

Esse aspecto missionário dos intercâmbios em busca da paz mundial, do entendimento entre os diferentes povos é muito forte, como vimos, nas duas organizações do primeiro grupo,90 mas aparece também no discurso das outras agências, com referências ao espírito que dominava o mundo no período imediatamente após a segunda guerra mundial, quando os primeiros programas foram criados:

Pouca gente sabe, mas o [programa de] high school foi criado pra promover a paz mundial, depois da segunda guerra. Pras pessoas serem mais tolerantes quando conhecem a realidade da cultura alheia. É a troca de culturas diferentes, de hábitos, não só de higiene, alimentares, culturais, de

90

O CISV, organização que trabalha com intercâmbios para crianças, citada anteriormente, reforça muito esta idéia, como se pode ver em texto no seu site na internet (www.cisv.org.br): “[O CISV] Baseia-se na convicção de que a Paz duradoura é possível se indivíduos e grupos aprenderem a viver juntos como amigos, compreendendo-se, respeitando-se. Para o CISV, o segredo para transformar este sonho em realidade está em começar o trabalho de Educação para Paz com crianças e jovens”.

comportamento, educação, tudo. (Entrevista na segunda representação da EF

– Escolas de Idiomas)

Os programas de intercâmbio para jovens se desenvolveram após a II Guerra Mundial, incentivados por organismos internacionais e por alguns governos, com o objetivo principal de aproximar os povos e promover a paz e o entendimento entre as nações. (Material da Central do Estudante)

Como parte desta missão em prol da paz mundial, um outro aspecto é destacado, o de ser um “embaixador” do Brasil no exterior:

Você demonstrou que será capaz de desempenhar com brilho o seu papel de um pequeno embaixador de nossa Pátria e esperamos que fará tudo para engrandecê-la aos olhos dos país visitado. Esta será a sua tarefa.

O trecho acima, retirado da mensagem do Rotary dirigida aos candidatos selecionados, é acompanhado de uma série de conselhos para que o intercambista se prepare para a viagem (levar pequenos presentes, dados sobre o Brasil, caso seja convidado a falar em público ou a dar entrevistas) e também sobre como comportar-se lá (ser franco mas amável, demonstrar gratidão, ser tolerante, etc.), para que cumpra sua missão de embaixador.

Para uma das “chairmen”, este é um aspecto que diferencia o programa dos outros, e o seu discurso revela também a tensão entre o turismo e os outros objetivos:

Porque o Rotary, ele tem um objetivo. Ele não é férias, ele não é passeio, ele não é como esses que são pagos [...] aqui a pessoa tem uma tarefa. É exigido dela que ela divulgue o Brasil, fazendo palestras. É exigido dela que siga regras.[...] No Rotary, a pessoa tem uma missão. [...] ela tem que representar a própria família, o país.

Outros programas também abordam a questão de uma missão a ser cumprida. O folheto da EF – Escolas de idiomas, específico para o programa de intercâmbio cultural, por exemplo, no item “Seja um embaixador de seu país”, afirma:

Sendo um estudante estrangeiro você despertará curiosidade entre seus amigos e eles irão querer saber sobre o Brasil.

O fôlder da Central do Estudante no item denominado “Missão do intercambista” afirma praticamente o mesmo:

Você será uma espécie de embaixador cultural do Brasil. Não só porque através de você, sua comunidade hospedeira passará a ter informações sobre o nosso país, mas também porque, sendo alguém diferente da comunidade, será alvo das atenções. Suas atitudes serão notadas e terão repercussão sobre a imagem de todos os brasileiros. Está em sua mão fazê- la positiva. Trata-se de uma grande responsabilidade!

Também em um dos números da revista publicada pela World Study, há uma pequena coluna da BELTA que realça o fato de que a pessoa que estuda no exterior é vista como um embaixador do país e enfatiza suas responsabilidades.

Seria lícito pensar que, na insistência das agências a respeito da responsabilidade de representar o país no exterior, poderia haver também uma preocupação em garantir o “bom comportamento” do intercambista durante a viagem, evitando possíveis problemas?

Mesmo que o aspecto “missionário” dos intercâmbios não apareça claramente em todo o material e depoimentos, vale a pena chamar a atenção para uma outra forma de apresentá-lo: os logotipos e emblemas de algumas agências.

O emblema do intercâmbio do Rotary International vem bem especificado no manual que trata dos intercâmbios para jovens: “tem a forma de um globo simplificado com três meridianos, o equador e três paralelos, sem nenhuma massa terrestre. Ao redor desse globo aparece uma faixa larga, com uma flecha em cada ponta, as quais não se tocam”. Vemos então o globo terrestre com faixas que buscam se tocar... Reunir estas duas pontas parece ser o objetivo que o Rotary quer vincular ao programa de intercâmbio... O logotipo do Núcleo de Intercâmbio é um círculo não fechado, em laranja, e o da World Study é formado por múltiplos semicírculos. Também o logotipo da Central do Estudante, um globo envolvido pela letra C (inicial do nome da agência, mas também um círculo incompleto), remete à mesma idéia. O objetivo dos programas de intercâmbio seria, enfim, reunir as duas pontas de um círculo? Criar um elo que envolvesse todos os países do globo?

Documentos relacionados