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3 DA INDIFERENÇA PÁRIA À PERSPECTIVA POLÍTICA

3.1 O Pária e suas Feições

O pária em Hannah Arendt é uma figura que vai expressar bem a condição de horror vivida pelo povo judeu. Isto é evidente, uma vez que sabemos que o pária representa a casta dos desvalidos e desafortunados, na antiga ordem de classe indiana. Assim, temos consciência do que esta categoria pode representar no jogo social. Max Weber (1979) toma esta figura em seus escritos e define o povo judeu como os párias da humanidade, ou dito de outra forma, a caracterização ideal para o povo judeu. Se buscarmos o entendimento da categoria pária, em sua origem, deparamo-nos com os Dalit do sistema de casta Hindu, em cuja subdivisão da organização, os párias estão abaixo dos demais, são os subalternos, os quais nem tocados podem ser.85Representam estes, em última instância, os intocáveis, os indesejáveis.

Ao colocar o povo judeu nesta configuração, Weber localiza a figura do judeu pária como excluído por excelência86, como aquele que padeceria da indiferença das nações e dos povos com os quais viesse a se relacionar. Hannah Arendt toma de empréstimo essa compreensão e, ao assumir a mesma, dá a ela uma leitura própria, uma vez que nossa autora entende que o pária é sim o desvalido do mundo, mas também é um ser com identidade própria. Tanto que a pensadora vislumbra uma série de figurações para este pária que perfazem o arco, do pária rebelde até o arrivista, passando pelo consciente, pelo comum e desvalido e pelo brilhante e de exceção. Enfim, em Hannah Arendt, o pária é o judeu, que precisa se reconciliar com o mundo.

Em nosso entendimento, esta reconciliação se dá via compreensão, em que se estabelece o pleno exercício de pensar, agir e julgar a partir de acontecimentos, suplantando a ideia de processo e assumindo o mundo como ele é, mas não admitindo suas atrocidades e horrores. Nesta pista, temos que a compreensão assume em Hannah Arendt dois sentidos, a

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Podemos aqui lembrar o que aconteceu com os judeus no Gueto de Veneza, que ao fecharem um negócio não seguiam a tradição local de um abraço e um aperto de mão, ao invés disso inclinavam-se, selando e finalizando o negócio, isto é, foi-lhes imposta a mesma condição de impuros. (Cf. neste trabalho a seção sobre o gueto de Veneza).

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É preciso que se esclareça que embora aceita e reconhecida como perspicaz a insígnia de párias da humanidade para os judeus, esta não passou isenta de críticas e observações, Entre estas temos a reflexão de Kurt Blumenfeld em correspondência à Hannah Arendt, na qual ele destacou ―A tese de Max Weber – os judeus são um povo pária – é brilhante, mas não tão justa quanto antes eu pensava; as diferenças levam às analogias. De modo geral, vale mais descrever um caso particular do que criar uma terminologia, não importando o quão sedutora seja, e engendrar novos erros‖ (Cf. Correspondance, 1998, / carta de 05 de novembro de 1954).

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saber: a compreensão como opinião ligada ao agente e tendo na ação sua esfera de realização. E a compreensão do espectador que visa à significação e, neste rastro, se encaminha para a reconciliação. Consoante Aguiar,

Arendt quer reafirmar que o espectador está com a atenção voltada para o mundo das aparências, mesmo quando precisa dele se ―retirar‖, pois ―somente o espectador, e não o ator, pode conhecer e compreender o que quer que se ofereça como espetáculo, com isso, queremos frisar que o empreendimento intelectual é uma atividade e, portanto, não possui um estatuto ontológico; o espectador é uma metáfora e não uma profissão, é um lugar vazio, uma posição que qualquer ser humano poderá ocupar se interrogar e puser em movimento o diálogo silencioso de si consigo. Como espectador, seu pensamento é marcado pela companhia de se mesmo, plano da ação é imprescindível estar de acordo com os outros, pois ninguém age sozinho: já o contrário ocorre no pensar, em que mais importante do que o acordo com os outros é o acordo consigo próprio. (AGUIAR, 2009, 71)

Sendo assim, compreender para empreender vida sobre este mundo e não paralisar diante dele. Portanto, como nos esclarece Müller (2011, p. 15) ―o imperativo da compreensão aponta para a necessidade de reconciliação – não de resignação – com esse mundo e com um passado que não pode ser desfeito‖. Ou ainda, como nos assevera Hannah Arendt (2008a, p. 330-331), ―o resultado da compreensão é o significado, a que damos origem no próprio processo de viver, na medida em que tentamos nos reconciliar com o que fazemos e com o que sofremos‖.

Assim, parece-nos que a condição pária reclama uma ação política de urgência e com esta uma compreensão do mundo no sentido de compreender para reconciliar-se. Dito isto, é preciso suplantar o equívoco de entender a compreensão a partir da noção de perdão. Haja vista que uma coisa não tem a ver com a outra. Destarte, compreender é sim reconciliar-se, mas não implica em esquecimento das atrocidades ou em perdão. Hannah Arendt (2008a, p. 330) chama a atenção para o fato de haver pouca relação entre essas categorias. Diz ela: ―perdão não é uma condição nem conseqüência da compreensão‖.

Com esta afirmação, a pensadora estabelece o limite entre as categoriais e reconhece que o perdão é uma das maiores capacidade humanas e, talvez, a mais ousada, todavia não implica em compreensão. Tendo em vista que compreensão, na perspectiva da autora, tem finalidade política e se apresenta especificamente como capacidade humana de viver, ou seja, compreender é, de alguma forma, um estar no mundo e em harmonia com este, o que nunca significaria aceitar, comungar ou perdoar suas atrocidades.

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A compreensão não tem fim, não é estanque e muito menos paralisante. Ao contrário, ela é interminável e de resultados indefinidos, sua maior finalidade é buscar ter no mundo uma possibilidade de movimentar-se e de comunicar-se para se firmar e enfrentar o horror e as adversidades a partir de um ponto comum, qual seja: o de uma comunidade política. Como nos esclarece Aguiar (2009, p, 67) ―O espectador é entendido, assim, como uma dimensão própria ao espaço e à ação política, de todo aquele que se abre para o mundo comum‖.

De modo que o pária, no sentido arendtiano, ser isolado do mundo, busca a reconciliação com este não para negar o ocorrido, ou perdoar e esquecer o mal perpetrado, mas para poder caminhar e viver neste possibilitando novos começos.

Por isso, Hannah Arendt ressalta que diante do totalitarismo – e acrescentamos diante também de todo o horror do antissemitismo – a compreensão emerge ―não para desculpar nada, mas para nos conciliar com um mundo onde tais coisas são possíveis‖ (ARENDT, 2008a, p. 331). Neste sentido, ou compreendemos ou fugimos do mundo via suicídio ou isolamento, uma vez que não conseguimos nos reconciliar com este. O que implica ser a compreensão, na visão de Hannah Arendt, uma tomada de postura política diante do mundo, não para fugir deste, mas, ao contrário, com este se entender.

O antissemitismo e o totalitarismo legaram ao judeu – pária do mundo – uma situação em que o suicídio ou a colaboração se tornaram uma saída conveniente, embora covarde. Todavia, como julgar tamanha dor sofrida pela segregação social e pelo campo de concentração? Esses horrores tão bem descritos por Hannah Arendt e destacados por Primo Levi, fazem-nos entender a necessidade da compreensão na perspectiva da autora em questão. Horrores tamanhos para os quais qualquer ato de covardia não se justifica, mas se compreendem as circunstâncias dos mesmos, fossem no gueto ou mesmo no campo de concentração. Os relatos de Primo Levi são significantes para aqueles que queiram fazer algum juízo sobre esses eventos. Diz ele:

Imagine, se conseguir, ter passado meses ou anos num gueto, atormentado pela fome crônica, pelo cansaço, pela promiscuidade e pela humilhação; ter visto morrer ao redor, um a um, os próprios entes queridos; ter sido arrancado do mundo, sem poder receber nem transmitir notícias; ter sido, por fim, embarcado num comboio, oitenta ou cem pessoas em cada vagão de carga, ter viajado para o desconhecido, às cegas, por dias e noites insones; e ver-se afinal lançado entre os muros de um inferno indecifrável. (LEVI, 2016, p. 46)

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Esta descrição é a demonstração do horror vivido pelos párias do mundo. Não sem objetivo, pois este era claro, qual seja: as práticas nazistas, nos campos de concentração, visavam a retirar a consciência moral de suas vítimas, por meio da exclusão de suas identidades, para que se sentissem um número e não pessoas87. Relata-nos Levi:

Häftling: aprendi que sou um Häftling. Meu nome é 174.571; fomos batizados levaremos até a morte essa marca tatuada no braço esquerdo. (...) ao que parece, esta é a verdadeira iniciação (...). Necessitamos de vários dias e de muitos socos e bofetadas, até criarmos o hábito de mostrar prontamente o número, de modo a não atrapalhar as cotidianas operações. (LEVI, 1997, p. 25,26).

Parece-nos claro que, ao considerar tais situações, Hannah Arendt não está tirando a responsabilidade dos colaboracionistas, isto é, aqueles párias que, diante do horror, cederam à vontade do seu carrasco. Trata-se apenas de entender que nem sempre existiu a possibilidade de fazer diferente, sobretudo daqueles que estavam no ―inferno‖, à espera da morte. Sua crítica sempre foi mais aguda junto a quem ainda podia se posicionar - por sua colocação social, econômica ou religiosa, em um momento no qual pudesse haver a possibilidade de agir e falar, embora, pra ela, resistir sempre parecesse nobre e necessário.

Contudo, a possibilidade de enfrentamento ocorreu antes dos campos, e, por vezes, optou-se por aliar-se ao Estado em troca de favores pessoais. Ocorreu posteriormente, quando da possibilidade da criação de um Estado judaico, que muitos judeus, esquecendo-se do que lhes tinha sido acometido há tão pouco tempo, optaram por reproduzir a lógica de seus opressores. Esclarece-nos Hannah Arendt: ―É muito triste perceber que todo escravo tenha a tendência de sonhar em possuir escravos, e que massas oprimidas [...] aprendam vagarosamente a linguagem da liberdade‖. (ARENDT, 2016, p. 347).

Esta posição do pária judeu que não julga os eventos, e, portanto, age motivado pela sobrevivência é para Hannah Arendt a marca da indiferença. Por conseguinte, antagônica é a noção de coragem, tão necessária ao espaço público, noção que lhe será posteriormente importantíssima.

O arrivismo judaico foi pauta de análise e crítica por parte da pensadora, que percebia nessa postura a contradição de querer ser protegido enquanto povo, todavia na micro-

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Ajuda-nos nesse entendimento o texto sobre Levi e Arendt, (Cf. Pressot, on-line: Hannah Arendt e Primo Levi. Reflexões sobre o Estado Totalitário.) [Häftling = detido]

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estrutura das relações visavam cada um a si, sem considerar os pares de sua nação, tornando- se indiferentes a estes, como os fascistas o foram. Diz a pensadora: ―E os fascistas em todo mundo fizeram o melhor uso de sua indiferença‘. [...] aqueles esnobes judeus que porque não estão dispostos a arriscar nada pelas causas públicas – arrogantemente se declaram acima dos vínculos com sua nação‖. (ARENDT, 2016, p. 351).

Esperava-se do povo pária uma atitude proativa, em que este tomasse pelas mãos sua vida e pudesse minimamente ocupar os espaços do mundo e resistir, todavia o povo pária, denuncia Hannah Arendt, em muitos casos preferiu a omissão, em uma postura política amedrontada e indiferente. Assim, tratando sobre o discernimento, em torno de se posicionar e lutar, Hannah Arendt esclarece,

Essa linha é muito estreita, como um fio de cabelo, às vezes é difícil discernir, mas pode ser encontrada se os políticos estão determinados por princípio a resistir ao mal em todas as formas, o que significa pessoas que possam provar que nunca fizeram pacto com ele. Na medida em que se pode falar alguma coisa da política judaica, ela se apega aos males básicos do liberalismo com uma determinação que pode ter valor em uma causa melhor. Sua estratégia é se render à força sem luta, e sua tática é negligentemente farejar o caminho da menor resistência (ARENDT, 2016, p. 345, destaque nosso)

Nesta perspectiva, Hannah Arendt põe em relevo que a história do povo judeu legou às gerações a figuração do pária como insígnia definidora deste povo. Para a pensadora, os judeus ―em sua posição mesma de párias sociais, refletem o status político de todo seu povo‖ (ARENDT, 2016, p. 495). Segundo ela, por longo período - do século XVIII até Kafka (idem, 2016, p. 495) – essa marca foi se constituindo como padrão no inconsciente do judeu assimilado. Em última instância, ser judeu e ser pária se misturavam na tessitura da vida.

O pária emerge na perspectiva arendtiana não apenas como o tipo ideal dos desgraçados do mundo, mas, sobretudo, como um conceito. Isto tem importância ímpar, posto que esta figura que tem localização histórica, e é espaço-temporalmente definida e circunscrita, é, ao mesmo tempo, um conceito, uma ideia. Ponha-se em relevo que é uma ideia chave para entendimento do que se passou com os judeus, enquanto excluídos e oprimidos.

Assim, a autora nos dá uma chave, em nosso entender, para análise de diversos oprimidos e excluídos do mundo, o que nos reportaria à pergunta pelos párias do nosso tempo atual. Uma vez que o judeu foi o pária de outras épocas, como nos lembra Hannah Arendt; ―os párias sociais do século XIX eram os judeus‖ (ARENDT, 2016, p. 309), a pergunta que

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palpita é: quem são os párias de hoje? Todavia, não é essa nossa discussão, mas aqui demarcamos isto em vista de nossa autora tomar o pária como conceito de destaque para suas análises e colocar este em relevância, diz ela:

Não é, portanto, surpreendente que a partir de sua experiência pessoal poetas, escritores e artistas judeus tenham sido capazes de desenvolver o

conceito do pária como um tipo humano – um conceito de importância suprema para a avaliação da humanidade em nossos dias e que exerceu

sobre o mundo gentio uma influência em estranho contraste com a ineficácia espiritual que tem sido o destino desses homens entre seus próprios irmãos. (ARENDT, 2016, p. 495, destaque nosso)

Ao constatar que artistas, poetas e outros, a partir de suas experiências, tomaram o pária como conceito, sendo ela mesma uma intelectual que padeceu da condição pária, desta figura se apropria para assumir sua análise da questão judaica, mas, sobretudo, entendemos que ela assume a condição pária para sua filosofia e para a política, como um modo de filosofar, mas sobre isto discutiremos à frente.

Aqui, importa destacar que ao percorrer esses tipos párias, que longamente foram descritos e compuseram o imaginário dos judeus assimilados, ela retira quatro deles para constituir a figura do pária como figura heurística de resistência, no contexto da existência no mundo, e, em nosso entender, da existência política, daí a relevância do modo pária de pensar para a teoria da autora.

Destarte, os tipos párias representam o que ficou conhecido como tradição oculta, isto é, como representação da resistência e localização no mundo por parte do judeu no qual ele se expressa como outsider da sociedade, ao mesmo tempo em que visa esta como objetivo.

Os tipos párias são figuras da literatura, cinema e da vida real que despontam como afirmação do ser judeu, cada um ao seu modo. Todos, portanto, com ações legítimas, embora umas mais eficazes e contundentes do que outras. Todavia, o que almejavam era pertencer a uma comunidade, sobretudo a uma comunidade política. Como nos esclarece Bernstein (1996, p. 33) ―Arendt está preocupada com os tipos de resposta e estratégias de resistência ao status de pária dos judeus como pessoas párias‖88. Assim, seguiremos com a discussão sobre esses tipos párias.

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―Arendt is primarily concerned with types of response and strategies of resistance to the outcast status of the Jews as a pariah of their entire people‖ (Cf, Bernstein ,1996, p. 33)

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