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No mês seguinte às comemorações do natalício de Angelo Agostini, a regente assinou a lei no. 333, que no seu art. 1o. declarava “extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil”; pelo artigo o., “revogam-se as disposições em contrário.” Estas duas breves frases eram o golpe derradeiro em uma instituição que vinha caindo por terra nos últimos anos. Significava, dentre muitas outras coisas, uma derrota para aqueles que intentavam, e entendiam ter direito à indenização do Estado. Mas era, sobretudo, um importante triunfo político daqueles que militaram no movimento abolicionista:

“Desde o dia 13 de Maio, às 3 horas da tarde, que raiou para o Brasil uma nova Era! A integridade nacional é hoje, um fato, tornando em realidade o artigo primeiro da nossa constituição, que diz: - ‘O Brasil constitui uma nação livre e independente’”3

Mais do que a liberdade dos escravos, festejava-se a vitória de um princípio. A capa dessa edição da revista é significativa para entendermos o que exatamente então era comemorado por Agostini e os abolicionistas aos quais estava ligado:

A Revista Illustrada participou ativamente dos festejos da abolição, como mostra esta capa. As comemorações se alongaram dias após o 13 de maio. No dia 1, a “briosa e entusiasmada mocidade acadêmica da Faculdade de Direito”, “com o respectivo estandarte, acompanhados pela banda do corpo policial”, dirigiu-se, na passeata daquela noite, dentre vários outros lugares, à redação da “Revista Illustrada para saudar nosso colega”3. No dia 19, data da publicação da capa, a convite da comissão de imprensa,

grande número de pessoas e carros comemorativos compareceram por volta das 11 horas da manhã à Praça da Aclamação, de onde partiu o desfile. Em um dos carros, vinha “o pessoal da redação da Revista Illustrada.”3. Além de refletir e integrar o clima

da festa, a capa ajuda a entender o sentido que o semanário dava à abolição. Analisada à luz do texto de Patrocínio, a imagem torna-se rica de significados. O sentido do abolicionismo expresso pelo jornalista é confirmado na imagem. Tratava-se de uma disputa entre brancos, que livraram os escravos de uma injustiça e com isso libertaram também a nação, tão vítima dos horrores da instituição servil quanto os cativos. A queda de braço entre escravocratas e abolicionistas era vencida sem que uma gota de sangue fosse derramada. A menção ao diretor da Cidade do Rio como um dos nomes importantes do processo é a única referência a um negro em toda a imagem. A abolição parecia ser um fim em si. Um momento de inflexão importante na história pátria, um novo início para a nação. Não há, e talvez naquele instante não fosse o momento para haver, referências ao destino dos novos cidadãos, tampouco referências republicanas na imagem. Esse é um elemento importante no processo de construção da memória de Agostini. Ele ficou conhecido por sua atuação abolicionista e não pelo seu suposto republicanismo. O desenho, nesse sentido, pode e deve ser interpretado como uma peça de construção de memória, como uma contribuição do próprio Agostini na edificação da sua imagem.

Naquele ano, a revista completava 13 anos de existência e esperava grandes acontecimentos para os doze meses que se iniciavam: “E, agora, jovem 1888, preparamos o lápis, para historiar a tua vida, que, nos parece, será cheia de peripécias”3. Naquela

altura do ano, contudo, não podia prever que iria, já em maio, dar a notícia aguardada por muitos há tempos. A capa mostra o povo, tomado de grande euforia, em frente à redação do semanário de Angelo Agostini. Sugere ser aquele um ponto de encontro natural daqueles que lutaram e naquele momento festejavam a “Pátria Livre”. A capa é um agradecimento pelas saudações recebidas durante os festejos. Dá a entender que

35 Gazeta de Notícias, 7/maio/888, pág. 02. 36 Gazeta de Notícias, 2/maio/888, pág. 0.

aquele era um ponto natural de parte das comemorações em razão da importância da “Revista” na vitória alcançada. Mais do que um indício de que a redação da “Revista” fora um local em frente do qual alguns leitores paravam para saudar Agostini enquanto comemoravam a lei áurea, interessa analisar o sentido que o semanário conferia àquela data.

A decoração da fachada do prédio seria um pantheon das glórias da abolição. É uma espécie de monumento da história do movimento. Apresenta as etapas do processo que se encerrava naquele dia 13, bem como uma lista dos que seriam os principais nomes responsáveis pela vitória alcançada. Das sacadas enfeitadas com as famosas camélias do Quilombo Leblon, do comerciante de malas português Seixas Magalhães38,

cuja loja ficava no primeiro andar do prédio aonde funcionava a Revista Illustrada, os repórteres acenam para a multidão em festa, o que pode ser interpretado como uma síntese do papel que Agostini atribuía ao seu hebdomadário e também a sua pessoa no processo da abolição. É importante observar que, na imagem, Agostini não se coloca, apenas o semanário.

Constrói uma periodização linear do processo. O 0 de novembro de 1831 é eleito o marco inicial. Foi a data da lei que proibiu o tráfico de escravos para o Brasil. A despeito da importância inegável da lei, era de conhecimento geral que o tráfico perdurou por pelo menos mais 0 anos, quando foi definitivamente extinto pela lei no. 81, de 0 de setembro de 180, que estabelecia “medidas para a repressão do tráfico de Africanos” no Império do Brasil, mais conhecida como lei Euzébio de Queiroz. A ilegalidade da escravidão era um mote constante dos abolicionistas e servia como um dos principais argumentos para contrapor à defesa da propriedade privada, uma das principais bandeiras dos escravocratas. A lei de 1831 foi também um instrumento muito utilizado na luta jurídica pela abolição, servindo de argumento para que advogados conseguissem a alforria de muitos escravos39. Outro instante considerado fundamental

foi o 8 de setembro de 181, quando foi aprovada a posteriormente chamada “lei do ventre livre”. Além de libertar o ventre, a lei garantia alguns direitos aos escravos, dentre os quais o de comprar sua liberdade. A importância desta lei, como muitos autores recentemente já se ocuparam de demonstrar, era que um dos principais pilares que sustentavam a lógica de dominação senhorial era posto abaixo. A até então inviolável relação entre o senhor e o escravo era atacada através da intervenção do Estado. Essa lei desencadeou ações por parte dos escravos e de alguns advogados abolicionistas no

38 Sobre o Quilombo Leblon e Seixas Magalhães ver Eduardo Silva. As camélias do Leblon e a abolição da escravatura – uma investigação de história cultural. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

39 A esse respeito ver Elciene Azevedo. O direito dos escravos – lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo na segunda metade do século XIX. Tese de Doutorado: Departamento de História da Unicamp, 2003.

sentido de conquistar novas alforrias por pecúlio, em uma estratégia que passou então a contar com um suporte legal0. Na lógica dos abolicionistas, não é difícil entender a

seleção dessas duas datas: ambas, de formas distintas, atacavam as fontes do sistema escravista, o que levaria ao inevitável fim do nefasto regime, do vil comércio de carne humana, no modo de dizer dos abolicionistas. A lei áurea é o termo final, que rompe com a lógica gradualista que caracterizara os dois outros momentos citados no desenho, mas que estava em perfeito acordo com o sentido que o movimento abolicionista foi progressivamente imprimindo à luta ao longo da década de 1880.

Os marcos estabelecidos para a história da abolição da escravatura são marcos legais. Era o parlamento e particularmente a atuação de alguns homens, na lógica da revista, os responsáveis pela mudança na sociedade. Nesse sentido, o processo da abolição teria sido feito “por cima”, por mentes esclarecidas que se indignaram com as injustiças sofridas pelos escravos e entendiam as conseqüências desta instituição para o país1.

Esses pressupostos do desenho de Agostini não eram, contudo, nenhuma novidade. Joaquim Nabuco, um dos abolicionistas citados, no capítulo 1o. de O Abolicionismo, já estabelecera esses marcos expondo, de modo mais pormenorizado, um sentido a cada um deles. Assim, o desenho de Angelo Agostini pode ser lido como um tipo de síntese da versão que um grupo de abolicionistas pretendia imprimir ao processo que culminou com a libertação dos escravos, mais precisamente do grupo abolicionista que girava em torno de Joaquim Nabuco. A diferença é que, no caso de Nabuco, a periodização era uma estratégia de uma luta política em curso, enquanto o desenho de Agostini buscava ratificar uma versão da história, intentava consolidar uma memória sobre o processo vitorioso naquela data e glorificar seus heróis.

Outro detalhe importante são os nomes dos que seriam os principais responsáveis pelo triunfo. Entre os personagens ilustres, além de Angelo Agostini, representado por seus “repórteres”, que no desenho aparecem acenando para a multidão em festa, vem o Senador Dantas, o relator da comissão que redigiu a Lei Áurea e o chefe do Ministério que iniciou o debate a respeito da Lei dos Sexagenários; José do

40 A prática de conseguir liberdade através da compra da alforria não foi inaugurada com a lei. Alguns autores argumentam inclusive que foi esse costume um dos elementos que concorreu para a aprovação da lei de 28 de setembro de 87. A esse respeito ver Elciene Azevedo. Orfeu de Carapinha - a trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo. Campinas: Editora da Unicamp/ Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 999 e Sidney Chalhoub. op.cit. 4 Essa discussão foi muito bem sistematizada por Joseli Nunes Mendonça. Cenas da Abolição – escravos e senhores no Parlamento e na justiça. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 200.

42 Na época, a Revista Illustrada não se furtou de comentar a proposta de Lei do Senador Dantas, que mais tarde ficou conhecida como Lei Saraiva-Cotegipe, não poupando críticas ao projeto apresentado pelo então chefe do Ministério. Considerava a proposta um retrocesso, que contrariava as conquistas alcançadas com a Lei de 87. Na opinião da revista, a proposta beneficiaria a lavoura, os proprietários, e não os escravos, como argumentavam seus defensores. Nesse sentido, é no mínimo curioso o fato de o nome do Senador aparecer no desenho ao lado dos “heróis” da abolição. Naquele momento, parece que as brigas do passado, um passado recente, haviam sido esquecidas. Sobre a Lei dos Sexagenários ver Joseli Nunes Mendonça. Entre a Mão e os Anéis – a lei dos sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp; Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 999 e a respeito da posição da revista

Patrocínio, o conhecido abolicionista negro que fez da imprensa o seu principal fórum de luta pela libertação dos escravos; João Clapp, importante líder da Confederação Abolicionista e comerciante descendente de norte-americanos e Joaquim Nabuco, considerado principal nome, em torno de quem gravitavam os demais citados, visto como o político que travara no parlamento a batalha da abolição. Os louros da vitória são atribuídos a personagens que se destacaram particularmente na década de 1880. Na representação da revista, portanto, a abolição foi uma vitória desses abolicionistas.

Não é mais preciso afirmar que o esquema reproduzido por Agostini é amplamente insuficiente para contar a história da escravidão e da abolição no Brasil. Trata-se, antes, de uma versão dessa história. Grosso modo, defendia-se a idéia de que a abolição fora um processo pacífico, promovido por um pequeno grupo de pessoas iluminadas. Dentre as muitas ausências que podem ser percebidas no desenho de Angelo Agostini, a que mais chama a atenção é a dos principais sujeitos de todo o processo: os escravos. Não há sequer um negro em todo o desenho. De uma maneira geral, os abolicionistas viam os negros como pessoas inferiores. Sustentavam a idéia de que a violência da escravidão produzia seres passivos, sem consciência e, portanto, incapazes de ação política autônoma3. Além de supostamente não terem participado do processo

que culminou com sua libertação, eles nem mesmos teriam festejado sua liberdade, como sugere o desenho de Agostini. É uma ausência muito significativa, que faz crer que para o grupo de Agostini os negros não deveriam ser levados em conta.

O que interessava para o artista italiano, que logo naturalizar-se-ia brasileiro, era retratar a “Pátria Livre”, a nação que finalmente livrara-se da vergonhosa

instituição e que poderia, a partir de então, rumar determinada através das calmas águas do progresso, que a levariam à tão almejada civilização. E interessava, ainda mais, enaltecer a atuação de algumas pessoas, elevadas à condição de heróis da pátria. O desenho de Agostini é a afirmação da vitória de um princípio de civilização que passaria a nortear a nação brasileira. O fim da escravidão representava, desse modo, um passo fundamental da pátria rumo ao progresso, uma vez que ela seria a grande responsável pelo atraso econômico e moral do Brasil. A partir do 13 de maio, o país conseguiria alcançar as nações mais desenvolvidas. Esse esquema criava a idéia de que

43 Ao longo da década de 880, a imagem do escravo como um objeto, animalizado pela escravidão, foi mais de uma vez apresentada como argumento político do abolicionismo. Um manifesto da recém fundada Sociedade Brasileira contra a Escravidão, publicado na edição da Gazeta de Notícias do dia 28 de setembro de 880, fazia farto uso de metáforas que tinham esse sentido. Definindo a escravidão como um atraso, um anacronismo que corrompia, contaminava toda a sociedade, definia o escravo como sendo “o homem por objeto”, e a escravidão como uma prática violenta de comerciar “carne humana”. Por essa razão, em uma sociedade em que grassava a escravidão “O homem não é livre nem quando é escravo, nem quando é senhor”. A chamada escola de São Paulo, notabilizada por autores como Florestan Fernandes, Emilia Viotti da Costa, Fernando Henrique Cardoso, tomou esse argumento e essa maneira de descrever a escravidão e o escravo como verdade histórica. A crítica a essa historiografia já vem sendo feita há algum tempo por autores como Sidney Chalhoub, Silvia Hunold Lara, Robert Slenes, Hebe Maria Mattos, entre outros. 44 Angelo Agostini deu entrada no seu processo de naturalização no dia 06 de setembro 26 de 888. No dia 0 de outubro já se dizia cidadão brasileiro.

ao estatuto jurídico do escravo, segundo o qual eram sujeitos destituídos de qualquer direito político, correspondia sua incapacidade para qualquer ação política ordenada. O regime escravista animalizava aqueles que viviam na servidão, da mesma forma que mantinha no cativeiro os homens livres que alimentavam o sistema. A idéia de uma “Pátria Livre” tinha, assim, um sentido bastante amplo, dentro do qual, curiosamente, há o início da produção de um esquecimento: os negros, no desenho de Agostini, não foram lembrados naquele memorável dia.

Analisado com cuidado pode-se perceber que o desenho tematiza várias questões relativas ao processo que chegou ao seu termo em 13 de maio de 1888. Essa e outras manifestações que aconteceram naquele momento ajudaram na construção de uma memória da escravidão e da abolição no Brasil. Há uma extensa bibliografia sobre o tema que por longo tempo operou com pressupostos comuns àqueles que organizam o discurso desses abolicionistas. Essa historiografia, de forma distinta e com significados variados, consolidou esta versão dos abolicionistas, que nem sempre foi analisada em suas especificidades históricas e como um complexo e conflituoso jogo político. Transformada em verdade histórica, galvanizou um modo de entender a história dos homens e mulheres que viveram como escravos. Novos estudos sobre a escravidão e a abolição no Brasil do século XIX vêm derrubando essa maneira de compreender a questão, mostrando a participação de outros sujeitos no processo da abolição e entendendo a história da escravidão a partir do ponto de vista dos escravos.

Partindo dessa nova perspectiva historiográfica, a imagem ganha sentido no interior de uma disputa política bastante específica.

A análise do desenho de Agostini ajuda, desse modo, a meditar a respeito do ponto de vista criado por homens brancos e letrados para o processo da abolição da escravidão no Brasil. Permite repensar o sentido político desse esquema a partir da perspectiva de um grupo que participou ativamente do processo. Nesse sentido, não se trata de negar a versão desse grupo que se auto-atribuía um lugar especial no processo da abolição, mas entender os elementos que a compõem. A disputa pela memória da abolição ganha então um significado político forte. Como parte de um processo amplo e conflituoso, este tipo de documento, revestido de um sentido de imparcialidade, reproduzia e completava uma lógica em transito na sociedade, expostos de modo particularmente feliz em um banquete organizado pela Confederação Abolicionista no dia  de agosto de 1888.

45 Há muitos trabalhos recentes que vem repensando a história da escravidão no Brasil. Entre eles, ver Sidney Chalhoub. Visões da Liberdade - uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 990, Silvia Hunold Lara. Campos da Violência: escravos e senhores na capitania do

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