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I. A GALERIA DE COSTUMES DO SÉCULO XVI: OS ‘LIVROS DE TRAJES’

1.3. Público-alvo e os projetos editoriais

Anna Forlani Tempesti, no prefácio do catálogo Mostra di stampe popolari venete

del ’50061 (1965), aponta um eventual paradoxo: o pouco conhecimento a respeito dos livros

de trajes na contemporaneidade não condiz com a amplitude da circulação de tais objetos nas

60 “In the sixteenth century, however, as demonstrated by hundreds of printed illustrations, it was less the body

than what was worn over the skin that served as the locus of alterity. [...] By making foreigners appear strange, an aspect of costume books that this single sheet [by Ambrogio Brambilla] serves to introduce, costume illustrations participated in the process of forging national boundaries.” WILSON, Bronwen. The world in Venice. Print, the City, and Early Modern Identity. Canada: University of Toronto Press, 2005, p. 76.

61 OMODEO, Anna (ed.). Mostra di stampe popolari venete del ’500. Catalogo del Gabinetto disegni e stampe degli Uffizi. Firenze: L. S. Olschki, 1965.

décadas em que foram produzidos, bem como a difusão desse conhecimento pelas várias regiões da Europa. De fato, as numerosas edições das publicações evidenciam uma boa aceitação pelo público quinhentista, além de um “mercado” promissor para aqueles envolvidos na produção de tais artefatos.62 O acréscimo das legendas em várias línguas – sobretudo em latim – é um forte indicativo da audiência internacional para esse gênero impresso, uma vez que o maior alcance de leitores tornava esses volumes mais rentáveis e acessíveis nos principais centros europeus. 63 O próprio intercâmbio entre os envolvidos no método de produção (artistas, gravadores, editores etc.) facilitava a circulação do conteúdo – ponto que será abordado em tópicos sucessivos.

A obra de Nicolas de Nicolay é decerto o exemplo mais emblemático do amplo perímetro alcançado por esse tipo de literatura. Em aproximadamente duas décadas o seu conteúdo proliferou em traduções e reedições do francês para o alemão, holandês, italiano e inglês.64 A partir disso os seus modelos e preceitos foram absorvidos por diferentes artistas, entre eles, os próprios autores dos livros de trajes (por exemplo, Abraham de Bruyn, Pietro Bertelli e Cesare Vecellio). O conteúdo de Nicolay extrapola os limites dos centros de Paris, Nurembergue, Antuérpia, Veneza e Londres e se transforma em uma espécie de cânone repetido nos séculos seguintes – como pode ser visto, até mesmo, nos manuais de moda contemporâneos. No mesmo catálogo de Tempesti, a curadora Anna Omodeo considera as gravuras de trajes como populares, não tanto pela formulação e concepção das obras, mas pela difusão na época e pelo público-alvo. Segundo a sua óptica existem dois extratos culturais: o popular, interessado nos motivos tradicionais e cotidianos; e o da elite, voltado para as formas e ideias clássicas e mais cientificamente comprovadas. E justamente por esse motivo, essas obras chegaram a nós, em muitos casos, incompletas ou com desgastes por uso que vão além da deterioração temporal. As gravuras de Enea Vico estampadas em folhas avulsas são exemplos

62 “Il numero delle edizioni successive è rilevante. I libri incontravano il grande successo del pubblico.” Ibidem, p. 35.

63 Valeria investigar: a popularidade alcançada por essa literatura sugere a aquisição dos livros por um baixo custo quando comparados aos demais trabalhos gráficos do período? Em Manuel du Libraire et de l’Amateur de Livres, Jacques-Charles Brunet contribui com um comentário a respeito da obra de Desprez (edição de 1564): “Très-joli

recueil de costumes, finement gravés sur bois; il est d'une certaine rareté et vaut assez cher.” (Suplemento, Tomo

1, p. 384). É provável, contudo, que o custo elevado do volume esteja relacionado à raridade da segunda edição, pois, como relembra Ernest Vinet, a obra de Desprez foi bem aceita e difundida em sua época: “The greatest merit

of this collection is its date and then its rarity. [...] He nevertheless enjoyed great success in his time, and he was copied by a Flemish artist [Omnium fere gentium... 1572].”. In: VINET, Ernest. Bibliographie méthodique et raisonnée des beaux-arts. Estétique et histoire de l’art archéologie, architecture, sculpture, peinture, gravure, arts industriels, etc, etc. Accompagnée de tables alphabétiques et analytiques. Paris: Firmin-Didot, 1874, p. 265.

No entanto, o registro dos valores reais de cada edição não sobreviveu até o nosso tempo, permitindo apenas uma leitura especulativa através dos estudiosos e colecionadores do século XIX.

dessa questão e, ainda, do crescente interesse pela temática que levaria os editores a proporem obras completas, mais tarde, reimpressas.

Abraham de Bruyn esteve envolvido em vários projetos dentro da temática do vestuário mundial, inclusive tendo uma obra parcialmente censurada ao apresentar os comentários escritos do erudito protestante Adrien Damman. Assim, fatores externos à vontade dos autores acabaram moldando o conteúdo final apresentado ao leitor e, neste caso, a parte iconográfica de Bruyn foi reeditada de maneira autônoma, levando os trabalhos seguintes do artista a seguirem um caminho cada vez mais centrado no aporte imagético. Como indicado anteriormente, Cesare Vecellio também adequou o seu projeto inicial à novas diretrizes ao lançar uma segunda edição oito anos após a primeira. Pois ao ampliar o conteúdo iconográfico e reduzir (ou simplesmente omitir) as notas explicativas, um novo objeto fora criado em prol da inclusão da tradução latina a cargo de Sulstazio Grazilian de Siena.

A diferença de escopo almejado pelos autores no momento da publicação, modificará também o perfil dos leitores, principalmente, ao mudarmos a proveniência das mentes criadoras. As dedicatórias presentes em algum deles revelam indícios da audiência esperada – desde ensinamentos aos jovens da realeza até normas de comportamento para o público feminino. Vecellio, por exemplo, foca nas pessoas interessadas em sua profissão, ou seja, os artistas. Logo, suas xilogravuras deveriam ser úteis aos pintores e capazes de deleitar os curiosos no tema, como o próprio relata. Em sua obra ele cita artistas contemporâneos e faz uso da arte veneziana como legitimadora de suas criações, além de dialogar com os livros de modelos pictóricos e desenhos preparatórios já utilizados pelos artistas da época (as figuras isoladas possuíam valor cognitivo e didático).

A mesma Tempesti expressa, em tom de desapreço, o público que poderia se interessar por essas obras “populares” exibidas durante a exposição de 1965 no Gabinetto dei

Disegni e delle Stampe delle Gallerie degli Uffizi, em Florença: “É precisamente a relação imediata com a vida contemporânea que fará com que essas impressões sejam apreciadas pelos visitantes e estudiosos, os quais são curiosos também dos aspectos menos sublimes da nossa cultura […]”65. E ao utilizar o termo curiosi notamos como essa função de deleitar os visitantes e leitores dos livros de trajes permanece a mesma até a atualidade.

65 “È proprio il rapporto immediato con la vita contemporanea che si spera farà apprezzare queste stampe dai

visitatori e dagli studiosi, che siano curiosi anche degli aspetti meno sublimi della nostra cultura […]”.