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O público e a nostalgia

Quando o revival eclodiu, por volta de 2002, a média de idade do público das festas temáticas era em torno dos 30 anos, o que demonstrava que esses frequentadores viveram pelo menos parte da infância e da adolescência na década de 80. Com o passar dos anos, a faixa etária aumentou um pouco (média de 30 e poucos anos) e a participação de jovens, que nem tinham nascido naquele decênio, já era expressiva nos eventos. Os organizadores das festas, artistas e outros profissionais do meio musical, em diversos momentos, manifestaram-se surpresos pelo interesse dos mais jovens — o que também se expressou na fala dos entrevistados para esta pesquisa. Os motivos apontados são diversos, indo desde a influência da preferência musical dos pais e dos irmãos ao contato com a cultura dos anos 80 propagada por rádios, programas de tevê, filmes, seriados e livros que podiam ser acessados diretamente ou por meio da internet, meio eletrônico que potencializou ainda mais o contato com esse conteúdo, colocando-o à disposição na tela do computador, à distância de alguns cliques.172

O sucesso de ícones da cultura da década de 80, oriundos do universo infantil e adolescente da época, no âmbito das festas temáticas, como se pôde ver, tinha grande relação com a faixa etária de parte significativa do público, embora o culto ao período se construísse também por outras vias e razões que não coincidiam com a questão da idade. Em relação especificamente à música, de acordo com o sociólogo Simon Frith173, é possível associar esse comportamento social ao fato de, na adolescência e na fase de adulto jovem, ter-se uma relação mais intensa com a música popular, pois, nessas etapas da vida, ela se liga a um tipo particular de turbulência emocional conectada a aspectos

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Essa interpretação acerca da faixa etária foi feita a partir da análise de um conjunto de matérias que abordam o assunto e que forma um material rico por trazer não apenas a opinião de jornalistas, mas dados provenientes de organizadores das festas, de artistas e de outros profissionais do meio musical e setores da indústria cultural, alguns por mim entrevistados. Algumas matérias importantes da imprensa: MACEDO, Lulie. O passado é logo ali. Folha de S. Paulo, São Paulo, 14 mar. 2004. Revista da Folha, p. 13-14; MATTOS, Ulisses. Saudade dos anos 80. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 25 jun. 2004. Programa, p. 17; GARBIN, Luciana. Brega volta ao brilho na Trash. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 31 out. 2004. Cidades, p. 4; CARDOSO, Monique. A noite é dos anos 80. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 08 jul. 2005. Caderno B, p. 2; FRAUCHES, Saulo. O fenômeno Ploc. O Fluminense, Niterói, 06 ago. 2005. Segundo Caderno, p. 1; NOITE DE irreverência para lembrar o melhor dos anos 80. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13 abr. 2007; JUNIOR, Paulo. Os anos 80 são agora. O Globo, Rio de Janeiro, 06 ago. 2011. Niterói, p. 1; OLIVEIRA, Roberto de. 80, a década que nunca termina. Folha de S. Paulo, São Paulo, 11 mar. 2012. Cotidiano, p. 12.

173 FRITH, Simon. Towards an aesthetic of popular music. In: LEPPERT, Richard; McLARY,

Susan. Music and society: the politics of composition, performance and reception. Cambridge: Cambridge University Press, 1987, p. 143.

da formação da identidade individual e do lugar social, sendo que as músicas mais significativas, para todas as gerações, são aquelas ouvidas na adolescência.

Mas as festas anos 80 foram apenas parte desse revival oitentista, existindo outras tantas maneiras de vivenciá-lo e por públicos de diferentes faixas etárias. Nesse

revival estudado, evidencia-se uma relação afetiva com o passado, uma forma de

nostalgia que tem a peculiaridade de ser positiva pelo fato de a música dos anos 80 apreciada vir à tona sobretudo em forma de celebração. Trata-se de uma memória da música popular muito viva, porque parcela significativa do público vivenciou os anos 80, impondo-se aqui o caráter geracional, a capacidade de pais e irmãos mais velhos influenciarem na iniciação ao som dos anos 80, assim como o fato de muitos produtores de cultura atuantes, com posições de destaque na cultura brasileira, terem vivenciado a década e tendo parte relevante do repertório musical celebrado como referência, o que, muitas vezes, manifesta-se em suas produções.

Nem toda a produção musical dos anos 80 teve vez na onda revivalista, ficando de fora parte expressiva tanto de músicas tidas como de menor valor artístico quanto das que possuem maior reconhecimento, o que não quer dizer que tenham desaparecido ― muitas delas, apesar de não inseridas na onda celebratória, continuaram presente em certos espaços de memória. As festas deram ênfase mais às músicas dançantes, mas muitas outras canções menos agitadas ganharam destaque em seus sites, na cobertura da mídia, nos inúmeros lançamentos fonográficos, e indiretamente por meio de relançamentos de filmes da época, colocados em grande quantidade no mercado durante esse período.

As rádios sempre cumpriram um papel importante para que a música dos anos 80 continuasse a ocupar um espaço de memória importante e com uma relação muito direta com o público. Com referência aos artistas tocados nas festas anos 80, por exemplo, grande parte deles não deixou de ter suas canções antigas executadas em rádio, ainda que em horários mais específicos ou em emissoras dedicadas ao segmento adulto-contemporâneo, cujas programações são mais voltadas para os sucessos antigos. Nesse caso, a força das suas músicas é mais reafirmada no imaginário social do que recuperada numa onda de rememoração, até porque muitos deles nunca interromperam a carreira. Entretanto, em vários casos, o revival pode ter ajudado a resgatar algumas de

suas músicas mais dançantes, porque, nas programações das rádios que tocam música do passado, predominam as músicas menos agitadas e românticas.174

Mas festas temáticas como a Trash 80’s e Ploc 80’s se propuseram a também resgatar o que, nesse universo, foi chamado de “brega”, classificação que na década de 80 tinha uma conotação com certas especificidades e que será objeto de análise do próximo capítulo, assim como as trajetórias individuais de três artistas, compreendendo três fases sucessivas da sua carreira: a de sucesso, a de esquecimento e a de ressurgimento.

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Existem, no Brasil, importantes rádios do segmento adulto-contemporâneo que atuam nele desde os anos 90. As duas principais são Alpha FM (SP) e JB FM (RJ), que desde os anos 2000 têm audiência expressiva. Outra rádio que pode ser elencada é a Antena 1, sediada em São Paulo, mas que atua em rede. Em 2015 ela tinha 16 afiliadas (e atualmente 20) e tem a peculiaridade de só tocar música internacional, predominando a pop. Nessas duas primeiras, o pop internacional tem muita força, mas elas tocam também MPB e rock nacional. O segmento adulto-contemporâneo tem como público-alvo ouvintes mais escolarizados, com maior poder aquisitivo e faixa etária mais avançada. Nas capitais é comum ter mais de uma, ou em alguns casos várias, atuando nele e tocando basicamente esses três segmentos musicais. Esse tipo de programação, que pode parecer “elitista”, pelo menos em parte significativa, é adotado nos programas de flashback de muitas rádios do segmento popular. A Alpha FM atualmente tem emissoras afiliadas em duas capitais: Brasília e Goiânia.

Capítulo 3

O “brega” oitentista: entre o gosto popular e a rejeição da imprensa

O revival dos anos 80 possibilitou que fossem observados os limites da visão que mais se sobressaía no âmbito da imprensa e que, muitas vezes, deixava de considerar até mesmo artistas, gêneros e vertentes musicais que foram extremamente populares na década, responsáveis por ocupar as paradas de sucesso e que venderam milhões de cópias. E a imprensa não estava sozinha. Tratava-se de uma forma amplamente compartilhada de conceber essa fase, respaldada inclusive pela bibliografia da música popular, que, assim como a imprensa, costumava reduzir a década de 80 a um período no qual prevaleceu o rock nacional e o pop internacional, atribuindo pouca importância ao restante. Contudo, o fato de esses dois segmentos serem os mais contemplados não impediu que eles fossem vistos por meio de um crivo marcado por um forte caráter seletivo e excludente, o que também a celebração oitentista evidenciou. A bibliografia que abarca a música dos anos 80 no Brasil é relativamente recente, sendo a maior parte escrita a partir dos anos 2000 e dedicada ao rock brasileiro. Porém, são os trabalhos mais panorâmicos — que têm o propósito de mostrar o que foi a música no Brasil ao longo de várias décadas — que permitem visualizar melhor o lugar que o som dos anos 80 ocupou no espectro da música popular no país. Majoritariamente, eles se restringem a associar esse decênio ao período de preponderância do rock nacional e do pop internacional, dedicando certa atenção ao primeiro e abordando o outro apenas de passagem ou com simples menções.175

Quanto à literatura sobre a presença e o consumo de música internacional no Brasil, esta é bastante escassa, existindo poucos estudos que abordam o tema, nenhum especificamente. Essa é uma lacuna nos estudos de música popular no Brasil, que muito vagarosamente está começando a se abrir para o assunto. A imprensa, entretanto, mais

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Os mais conhecidos são: ALBIN, Ricardo Cravo. O livro de ouro da MPB. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004; MOTTA, Nelson. Noites tropicais. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000; TATIT, Luiz. O século da canção. Cotia: Ateliê Editorial, 2004; TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular. Editora 34, 1998. Mesmo o famoso Almanaque dos anos 80, um best seller publicado em 2004 e que se tornou referência, ou ponto de partida, para os que pretendem imergir na cultura da década em questão, com exceção da música infantil, não destaca artistas de sucesso ligados a outras vertentes musicais, fazendo apenas menção a eles num pequeno quadro. Ver ALZER, Luiz André; CLAUDINO, Mariana. Almanaque dos anos 80. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

voltada para a cobertura do dia-a-dia de eventos e lançamentos de discos, é mais sensível à presença da música internacional, que se impõe de maneira intensa na indústria cultural e em importantes espaços da memória musical, como, por exemplo, em festas de flashback, em rádios, revistas especializadas, documentários e cinema.

A imprensa, por outro lado, no que diz respeito especificamente ao revival oitentista, em abordagens mais de cunho intelectual, nas quais procura construir uma narrativa sobre a década, volta-se especialmente para a música nacional, ficando claro que essa opção é influenciada pelo modo principal que ela escolhe para lidar com a memória, que é usar largamente o recurso da entrevista, expondo, preferencialmente, a opinião e os relatos de artistas e profissionais da música que vivenciaram a época, que lá estavam quando tudo aconteceu.

A música infantil, o pagode e a música romântica são segmentos de muito êxito no mercado e nas paradas dos anos 80. Por isso, quando músicas oriundas desses segmentos são celebradas em festas temáticas que comemoram a década, não é algo tão surpreendente. O que surpreende é o silenciamento da imprensa e da bibliografia sobre música popular brasileira a respeito do sucesso dessa produção musical nesse decênio ― situação que aos poucos a onda revivalista tem contribuído para mudar.

Em relação à música romântica, a situação é ainda mais complexa, porque, praticamente durante todo o período, artistas ligados a esse segmento ocuparam posição de destaque nas listas de músicas mais tocadas e de discos mais vendidos. A partir de 1987, essa vertente musical passou a dominar as paradas de sucesso, gozando dessa condição até os anos iniciais da década seguinte. Não bastasse isso, esse enorme êxito da música romântica fez com que críticos e jornalistas o tornassem objeto de análise e se voltassem contra o segmento, o que resultou em grandes discussões, veiculadas fartamente na imprensa escrita.

Vários outros segmentos, pouco lembrados, eram classificados pejorativamente de “bregas”, embora fosse a música romântica mais assim definida, a ponto de ser tratada como sinônimo de “brega” por grande parte da imprensa. Neste capítulo, primeiramente, é analisada a objeção de críticos e jornalistas à dita música “brega” na década de 80, com foco no enorme descrédito que impunham às canções românticas de grande apelo popular e no fato de artistas muito populares no período estarem ausentes de importantes espaços de memória musical. Estudar o enquadramento de certa produção musical como “brega” é relevante porque ajuda a compreender melhor o uso

que as “festas anos 80” fizeram dele ― aproveitando-se, em sua maior parte, de uma classificação que já existia naquela época —, reproduzindo-o, mas não sem humor, deboche e ironia.

Em um segundo movimento, são selecionados três casos específicos de artistas para serem examinados mais detalhadamente, com ênfase em suas trajetórias e em como seus trabalhos foram recebidos na imprensa, dos anos 80 até o revival oitentista, sendo usado como critério para a escolha dos nomes o fato de estarem entre os mais celebrados pelas festas anos 80 e incorporados como “bregas”. São eles: Sidney Magal, Rosana e Sylvinho Blau-Blau.