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C ONFEDERAÇÃO N ACIONAL DA I NDÚSTRIA (1938-1964)

1.2. P ENSAMENTO ECONÔMICO E DESENVOLVIMENTISMO NO PERÍODO DEMOCRÁTICO

Ao final do Estado Novo, em 1945, uma nova realidade se impunha, passando pelas esferas do econômico, do social e do político. O lugar da CNI nesse novo cenário dependeria de sua habilidade de articulação e rápida adaptação às transformações em marcha. Em maio de 1945 surge a oportunidade da CNI colocar em teste sua capacidade de coesão e legitimidade perante o empresariado industrial brasileiro. A Conferência Nacional das Classes Produtoras, como veremos, reuniu os três principais setores da economia do país, e a indústria estaria ali representada por seu órgão máximo.

Se a rendição japonesa, em 1945, daria um ponto final às beligerâncias da Segunda Grande Guerra, esse horizonte já se delineara bem antes. A queda de Benito Mussolini, em julho de 1943, e a retomada da França em 1944, após a expulsão dos nazistas, criara expectativas otimistas aos ‗Aliados‘, para os quais a destruição do 3º Reich entrara em contagem regressiva. Conjecturar um novo mundo pós-guerra foi exercício praticado por líderes políticos, econômicos e autoridades intelectuais da época. O Acordo de Bretton Woods, de 1944, ilustra bem como a reconstrução dos países envolvidos no conflito exigiria uma cooperação financeira de grande abrangência.

No Brasil, as percepções de que uma nova ordem econômica internacional se avizinhava podem ser encontradas na Iª Conferência Nacional das Classes Produtoras, organizada pela Confederação Nacional do Comércio e realizada em Teresópolis, Rio de Janeiro, no mês de maio de 1945. Buscava-se, com a Conferência,

esboçar os rumos do país nos anos vindouros, projetando, sobretudo, sua economia. Ora, com a esperada reorganização da indústria europeia, o significativo saldo acumulado na balança comercial brasileira colocava-se sob ameaça. Recompor a produção brasileira adequando-a ao novo cenário tornara-se uma exigência. A reunião em Teresópolis contava então com os principais interessados na formulação de um novo projeto para o país, capaz de alinhá-lo àquela nova ordem internacional, conferindo aos capitais brasileiros os benefícios de um lugar privilegiado no cenário que se anunciava. Também no plano interno os ajustamentos se faziam necessários, novas forças políticas ingressavam no jogo; o fim do Estado Novo e o retorno ao regime democrático mostravam-se iminentes. As ‗classes produtoras‘, assim, respondeu por um conjunto de três setores da economia nacional: a agricultura, a indústria e o comércio. Natural, todavia, que os interesses de cada setor se fizessem ali representados pelos donos do capital. Pelo setor industrial, o órgão classista de maior representatividade presente à reunião foi seguramente a Confederação Nacional da Indústria.

A Carta Econômica de Teresópolis foi o documento produzido ao final da Conferência como síntese da discussão entabulada45. Registrou-se como ―Princípios Básicos‖ que o combate ao pauperismo deveria ser buscado pela valorização do homem e criação de condições econômicas propícias ao desenvolvimento do país. Para atingir tal objetivo, o aumento da renda nacional foi entendido como meio fundamental, a ser obtido pelo melhor aproveitamento das fontes de produção agrícola e industrial e nos setores de transportes, da energia e do crédito. Para que as atividades produtoras realizassem o aumento da renda nacional foi percebido como necessário o desenvolvimento harmônico das forças econômicas. ―Para isso será necessário atender à obtenção, por todos os meios, do fortalecimento das fontes de produção, e realizar por processos seguros e adequados a industrialização do país‖46

. O documento demonstrou uma preocupação com o estabelecimento da indústria nacional, visando sua contínua expansão sem, no entanto, prejudicar os esforços de crescimento dos demais setores produtivos, daí a noção de ―desenvolvimento harmônico das forças econômicas‖.

E, no contexto de um regime autoritário que se dissolveu inexoravelmente, tratou a Carta da democracia esperada:

45 O documento foi composto pelos tópicos: I – Princípios Básicos; II – Ordem Econômica; III – Produção Agrícola e Florestal; IV – Energia, Combustíveis e Transportes; V – Produção Industrial e Mineral; VI – Política de Investimentos; VII – Política Comercial; VIII – Política Monetária e Bancária; IX – Política Tributária; X – Política Social; XI – Política de Povoamento; e XII – Conclusão.

46

Carta Econômica de Teresópolis. In: CUNHA, Tristão da. Realidade Econômica e a Carta de

À democracia política, que é a vocação dos brasileiros, deve corresponder uma verdadeira democracia econômica. Esta só se completa com o desenvolvimento paralelo de todos os setores da produção, de todas as regiões e de todas as atividades. Deve ser organizada com o preparo das leis, das instituições, do aparelhamento administrativo e com a cooperação dos capitais e da técnica das nações amigas, notadamente, de nossos aliados norte-americanos.47

Quanto ao aspecto democrático, o fim do Estado Novo parece fornecer um auspicioso momento para a iniciativa privada reclamar maior participação na economia do país. A democracia defendida pelos donos do capital nacional foi aquela que seu sentido principia e se esgota no caráter econômico; embora sem uma definição muito clara, a democracia econômica faz prever uma segurança jurídica e um aparo administrativo que permitisse o livre desenvolvimento do capital privado. Democracia econômica confunde-se mesmo com liberdade econômica, e mais ainda com liberdade da iniciativa privada. Se o desenvolvimento econômico pressupõe segurança jurídica, segurança sobre as ‗regras do jogo‘, a democracia contribui ao rechaçar decisões arbitrárias do poder estatal que podem influir negativamente sobre um determinado investimento privado. Isso tudo fica mais claro quando chegamos ao tópico ―Ordem Econômica‖, onde temos:

(...) reconhecem as Classes Produtoras que a ordem econômica brasileira se funda no princípio da liberdade e no primado da

iniciativa privada, dentro dos preceitos de justiça, atendidas as

inelutáveis limitações impostas pelos interesses fundamentais da vida nacional, de modo a garantir a todos a possibilidade de uma existência compatível com a felicidade e com a dignidade48.

Aqui surge um problema aos investidores nacionais: como promover uma expansão econômica sem condições infra-estruturais adequadas? As ‗classes produtoras‘ bem sabiam que a burguesia nacional não se encontrava suficientemente capitalizada para investimentos de grande vulto, como o energético, por exemplo. Também o retorno do capital investido em tais empreendimentos parecia não estimular

47

Idem.

o ímpeto da classe. Diante disso, o privatismo antes veemente vai assumindo um tom mais moderado:

Esse pensamento não exclui a admissão de um certo grau de interferência do Estado, imposto por necessidade comprovada em certos casos limitados, e prudentemente contida nos moldes de um largo planejamento de articulação racional das forças produtoras; de um eficaz estímulo às atividades econômicas, auxiliando-as, facilitando sua organização e prestando-lhe assistência técnica; , por fim, de uma adequada ação supletiva, extensiva ao campo social, sempre que os empreendimentos necessários ultrapassem o poder, a capacidade, ou a conveniência da iniciativa privada.49

O documento distingue, para critério orientador da ação do Estado, as indústrias estratégicas das demais. Sugere-se que as primeiras deverão ficar mais sujeitas à ação estatal, ―onde a iniciativa particular se mostre omissa ou incapaz‖. Quanto às demais indústrias, a ingerência estatal deve-se limitar ao ―resguardo do bem comum‖50

.

Sendo um documento síntese, que congrega a perspectiva dos setores produtivos da economia brasileira naquele momento histórico, a Carta Econômica de Teresópolis definiu um lugar preciso para a indústria nacional. A agricultura de exportação já não era defendida como caminho único e seguro para o progresso material do país. No Brasil do pós-guerra, mergulhado em uma nova ordem econômica internacional, o setor industrial foi visto como força capaz de recuperar nosso atraso em relação às economias mais adiantadas.

Declaram as Classes Produtoras sua convicção de estarem o progresso e a estabilidade da economia nacional intimamente ligados à industrialização do país, pois esta, além de permitir o aumento da renda nacional, assegura a diversificação da produção, elemento indispensável a essa estabilidade e progresso. (...) Recomendam, pois, que o Estado estimule e oriente a industrialização do país, baseado em estudos dos fatores fundamentais – mercados, mão de obra, matéria prima, transporte e energia.51

Ainda no documento, dois trechos são de maior polêmica, contrariando os seguidores do pensamento liberal. No primeiro deles tem-se que:

49 Ibidem. p.14.

50

Ibidem. p.47. 51 Ibidem. p.45.

É de opinião das Classes Produtoras reunidas nesta Conferência que o Brasil, necessitando urgentemente recuperar o tempo perdido para atingir a renda nacional necessária a permitir a seu povo um melhor nível de vida, procure acelerar a evolução de sua economia por meio de técnicas que lhe assegurem rápida expansão. Para isso, reconhecem a necessidade de um planejamento econômico que vise aumentar a produtividade e desenvolver as riquezas naturais.52

Entende-se, pelo texto, que a renda nacional foi critério utilizado para mensurar o ―nível de vida‖ de um povo e, assim, coloca-se o Brasil em posição desvantajosa, cabendo, então, ―recuperar o tempo perdido‖. Ora, a crença na força ‗naturalmente‘ distributiva da economia internacional parece sofrer abalos. Se no plano das ideias o planejamento sofreu fortes oposições, sobretudo por estar associado à economia soviética, aos poucos foi conquistando espaço nos debates do pós-guerra, tendo em vista os problemas de reconstrução da Europa. Embora o planejamento no âmbito de economias capitalistas não seja novidade53, o contexto em que se abria o debate na segunda metade dos anos 40 já era outro.

Mais à frente, a Carta de Teresópolis voltou a atenuar aquela ―liberdade econômica‖ convenientemente associada à ideia de democracia. O tema do protecionismo apareceu no documento para argumentar a convicção das Classes Produtoras da necessidade de um sistema de defasa da indústria nacional:

(...) Tal sistema de defesa deve prever, não só uma política aduaneira capaz de pôr nossas indústrias, enquanto necessário, em condições de enfrentar a concorrência normal das estabelecidas no estrangeiro e melhor dotadas, por já estarem senhoras do campo, mas também legislação que ponha o país em condições de enfrentar situações emergentes de concorrência desleal (...).54

O liberalismo, com seu preceito da livre concorrência, foi descartado sob pena de termos o engessamento e desmantelamento do frágil parque industrial brasileiro. De todo modo, o debate entre protecionistas e liberais apenas começava.

52 Ibidem. p.18.

53 Ilustra bem o caso do New Deal, um conjunto de medidas econômicas adotado nos Estados Unidos, entre 1933 e 1937, contra a crise que sucedeu à quebra da bolsa de valores de Nova Iorque.

Anos mais tarde, como será visto, a Confederação Nacional da Indústria retomaria o texto da Carta de Teresópolis para recompor seus argumentos.

Como pano de fundo dos temas abordados na Carta estava a preocupação de inserir o Brasil vantajosamente na nova dinâmica do capitalismo global, visionado para o pós-guerra. O baixo nível de vida do brasileiro, entendido como desdobramento de sua limitada renda, deixava claro, em comparação com nações do Velho Mundo e da América do Norte, que persistia uma distância econômica a ser reduzida. Contrariando o que pensavam os liberais, o mero contato entre mercados não produziu a difusão da tecnologia e das riquezas. A evolução do capitalismo mostrava (e mostra) disparidades desmedidas entre nações, um problema que o instrumental teórico da época esforçava-se por racionalizar. Os conceitos de desenvolvimento/subdesenvolvimento devem, portanto, ser pensados no âmbito desse contexto.

Ora, se em uma observação retrospectiva pudemos localizar no século XIX propostas em defesa da indústria brasileira, tudo indica que aquelas iniciativas tiveram caráter pontual e não chegaram mesmo a envolver o cotidiano nacional. Uma ideologia de fato desenvolvimentista surge entre os anos de 1930 e 1945, atingindo sua hegemonia na década de 1950. Conceituamos, então, o desenvolvimentismo brasileiro como a ideologia – enquanto conjunto de crenças voltado para a ação – de superação do subdesenvolvimento nacional com base numa estratégia de acumulação de capital na indústria55. Se o desenvolvimentismo já era uma realidade quando da redemocratização no Brasil, quais as condições e iniciativas que podemos apontar para seu florescimento? Ricardo Bielschowsky assinala que houve nesse período uma primeira, mas limitada, ―tomada de consciência‖ da problemática da industrialização por uma nova elite técnica, civil e militar instalada no Estado. Como desdobramento: I) alimentou-se a ideia da viabilidade e necessidade da implantação de um parque industrial integrado no país capaz de fornecer os insumos fundamentais à produção de bens finais; II) formou-se o pensamento de que se fazia necessário gerar mecanismo de centralização de recursos financeiros com o fim de tornar possível a acumulação industrial; III) a noção de Estado centralizado como unificador nacional e guardião de interesses coletivos acompanhou a ideia de intervenção estatal na economia, trazendo consigo a noção de que o planejamento seria um imperativo frente às crises internacionais e à fragilidade da estrutura econômica brasileira; e IV) o nacionalismo econômico ganhou expressividade

– protecionismo, controle nacional sobre os recursos naturais, intervenção estatal com investimentos diretos em transportes, energia, mineração e indústria de base –, alimentado pelas crises internacionais, pelo crescimento do sentimento anti-imperialista e pelo desenvolvimento interno do integralismo, de um lado, e do socialismo da Aliança Libertadora Nacional, por outro.56

Um debate sobre o desenvolvimento econômico nacional adquire consistência nos anos de 1940, entretanto, suas linhas de contorno assumem maior definição tão somente após o fim da Segunda Grande Guerra, em 1945, coincidindo, no Brasil, com a transição para o regime democrático, logo após a queda do Estado Novo. Nesse período, o país já mostrava uma outra fisionomia social, econômica e cultural: o peso das exportações sobre o Produto Interno declinara, dividindo espaço com a produção de riquezas do setor secundário; uma sociedade urbana passava a predominar, com expoente nas grandes capitais; a dinâmica do comércio e do trabalho industrial contribuiu também para a consolidação de uma cultura urbana. No plano internacional, a vitória do bloco dos Aliados reconfigurou o cenário político, mas não produziu, como se sabe, uma orientação ideológica mundialmente aceita. Além das questões que inflamavam capitalistas e socialistas, o imperialismo colonial, em seu formato mais arcaico, também foi tema recorrente em debates do pós-guerra, pois ainda se arrastava agonizantemente na África e na Ásia, contrariando uma nova dinâmica de exploração já pautada no setor financeiro, isto é, não-produtivo. A ordem do dia, contudo, trouxe com grande força o problema da divisão econômica mundial em dois blocos de países: ‗desenvolvidos‘ e ‗subdesenvolvidos‘. No Brasil, os debates em torno desses antípodas encontraram fôlego na interpretação da condição histórica de dependência econômica e de recém-industrialização do país.

Antes da Segunda Guerra, era comum o entendimento no qual a diferença de níveis de vida e progresso material entre países ou estava em vias de desaparecimento ou era algo sem solução, irremediável. Significava dizer que ou os países pobres igualariam suas condições aos ricos ou aqueles permaneceriam em constante estado de pobreza por não oferecer condições de progresso. Uma mudança importante de perspectiva ganhou forma no pós-guerra e, para isso, contribuiu o relatório das Nações Unidas Medidas para fomentar el desarrollo economico de países

56 Ibidem. p.250-252.

insuficientemente desarrollados57 o qual desfazia daquele entendimento de que existiam nações incapazes de progredir materialmente. A partir de então ―firmou-se o conceito de país subdesenvolvido como ‗país pobre‘, em contraposição à ideia de que seriam subdesenvolvidas todas aquelas zonas ricas ou pobres, cujos recursos naturais se acham insuficientemente aproveitados‖58

.

Conforme foi aceito entre os economistas do pós-guerra, o nível de desenvolvimento econômico poderia ser mensurado pela renda ‗per capita‘ nacional. Desse modo, a tabela abaixo demarca com clareza a grande área mundial que se concentrava o subdesenvolvimento, abarcando a Ásia, a África e a América do Sul.