• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO I: O PROBLEMA DE COMO CHEGAR A SER O QUE SE É

1.6. Paciência, construção e devir

Como referimos anteriormente, o imperativo nietzschiano do “tornar-se o que é” deve ser lido como um conceito variante que assume diferentes pontos de vista, transformações, inclusões, novas significações e formas de tratamento diferenciados que vão além daquela escolhida por Nietzsche para compor a terceira Extemporânea e que se desdobram também em obras subsequentes a este período. Principalmente a partir dos textos que compõem o chamado período intermediário, questões relacionadas ao jogo dos impulsos, à hierarquização                                                                                                                

 

e educação desses impulsos, à fisiologia (o corpo, a dieta da boa saúde), começam a aparecer com certa recorrência em abordagens distintas e novas formas de problematizar o imperativo. Essas características processuais em torno da questão do vir a ser individual continuam a avançar no pensamento de Nietzsche, adentrando as obras de maturidade do filósofo e dando corpo a uma extensão analítico-conceitual difícil de percorrer por inteiro e inviável de abordar de uma só vez. Contudo, a característica principal do imperativo, comum a todos os períodos do pensamento de Nietzsche (gerando algumas inquietações e divergências por parte dos estudiosos que abordam o tema, pois possui uma significância que, embora constante, parece variar em alguns momentos), continua mesmo a ser a relação entre ser e devir — ser “em devir” — em oposição à permanência na identidade.

Há uma vertente interpretativa que insiste na leitura da fórmula do “tornar-se o que se

é” como sendo a maior ou principal expressão de Nietzsche a favor de um individualismo

anárquico; outras, no entanto, — influenciadas por alguns aforismos de Nietzsche, tais como o 295 e 310 de Gaia Ciência53 — preferem interpretar o imperativo como uma doutrina da superação eterna e mudança contínua de si na qual o indivíduo, não possuindo uma meta ou objetivo, segue sem rumo num “curso louco a caminho do abismo”54. À parte isso, nossa proposta interpretativa continua a apostar na leitura de Nehamas que expusemos anteriormente e que, para o nosso interesse, completa-se com a análise de Rosa Dias a esse respeito que, ao procurar dissipar essa confusão analítica envolvendo a relação entre devir e ser no contexto do imperativo nietzscheano do tornar-se o que se é, formula o conceito de paciência como intrínseco ao processo de construção de si. A intérprete afirma que:

o imperativo ensina não a metamorfose pela metamorfose, mas a marcha lenta em direção a si mesmo, ao estado dionisíaco em que o homem se vê desembaraçado de todas as negações restritivas, para além de todo bem e mal, onde possa pronunciar um sim incondicional a si mesmo e à vida. Assim, o homem deve tornar-se mestre

                                                                                                               

53 Uma melhor explanação acerca desses aforismos encontra-se em: DIAS, 2011, p.100-101. 54 Idem.

 

de si mesmo pouco a pouco e só chegar a esse tornar-se com a paciência de construir, durante longos anos, sua própria escultura, sem com isso poder dizer um dia que está completo e plenamente realizado (DIAS, 2011, p.100-101.).

Trata-se de uma aceitação da vida que se desdobra em mudanças, que inclui a si mesmo como protagonista desse incessante devir, escultor de si mesmo, mestre na arte de viver. É tomado por esse pensamento que Nietzsche dirige algumas de suas mais duras críticas à educação moderna que, para o filósofo, não leva em conta essa “marcha lenta em direção a si mesmo” que aqui podemos traduzir como a “vagarosa maturação do indivíduo necessária para a tarefa de vir a ser si mesmo”, de construir sua própria escultura e achar suas próprias cores, sair da posição de criatura e assumir o papel de criador: de criador de sua própria existência.

Ainda que ninguém possa ter o controle pleno sobre si mesmo a ponto de modificar-se profundamente em um sentido determinado; mesmo que não nos seja possível impedir uma ação pulsional, sabendo ser, como Nietzsche dirá posteriormente, o corpo e os impulsos os agentes motores que nos guiam; o filósofo entende que ainda assim é possível ao homem tomar certas decisões a favor de sua vida e evitar certos acontecimentos e condições de existência que não sejam adequadas ao nosso desenvolvimento, sendo que isso compreende uma das principais funções do entendimento, ou seja, auxiliar na hierarquização e canalização dos impulsos, ordenando-os de forma a melhorar a atividade de cada impulso particular. É preciso lembrar que, para Nietzsche, o homem é um animal ainda não determinado e, por isso, passível de educação, de educar-se e criar-se. Caso contrário, devido à maleabilidade da espécie humana, o homem corre o risco de se extraviar e degenerar. Pela educação e dentro de determinadas condições fisiológicas, o ser humano pode, por meio de exercícios progressivos, renovar sucessivamente a si mesmo, buscando tornar-se aquilo que é. É da natureza humana o ímpeto para a elevação, para criar um ser mais apurado e, por isso, ele precisa crescer, educar-

 

se e ultrapassar-se constantemente, “refletir sobre as circunstâncias e não poupar diligência em observá-las”.55

Para Nietzsche, o sujeito não pode ser concebido como substância fixa ou imutável, pois a única permanência efetiva em relação a ele deve ser dada na ordem da transformação de si, do estar sempre por vir e sempre a compor. O homem não possui a capacidade de agir soberanamente sobre si próprio a ponto de se auto-impor uma determinada forma, mas deve pertencer à classe dos experimentadores-inventores de si mesmos, daqueles para quem o eu não é o tempo todo a mesma coisa, mas dos que têm na mudança algo sempre constante, dos que incorporam cada vez mais traços de personalidade, num ambiente de construção do eu em eterno desenvolvimento e expansão. Tudo isso leva Nietzsche a pensar na possibilidade de criação de tipos humanos elevados por excelência, seres capazes não somente de modificar a cultura vigente, mas, sobretudo, de criar uma nova concepção de homem e de cultura capazes de dar um novo sentido e outro direcionamento à humanidade.

Buscando chegar a uma palavra final com base na leitura que adotamos acerca da fórmula do “tornar-se o que se é”, podemos dizer que, para Nietzsche, o vir a ser si mesmo só é possível enquanto movimento, enquanto processo de formação e educação individual, nunca um processo em que se atinge um novo e definitivo estado particular e, com isso, deixa-se de mudar, uma vez que a estabilidade não pertence à natureza humana e o tornar-se nada mais pode ser senão uma mudança contínua. O estado hipotético de autossatisfação, do sujeito realizado em si mesmo, titular de autocontrole em relação a suas ações e vontades, ou ainda com o caráter feito a ponto de não mais querer ou ter que mudá-lo é, para Nietzsche, impossível, não passando de uma vã ilusão. A criação do eu é um processo intenso de construção e desenvolvimento, passível de execução independente da fase da vida, seja em seu início ou no fim, e nunca um episódio estático com um objetivo final a ser atingido.                                                                                                                

 

Poderíamos até mesmo pensar, de forma audaciosa que, talvez, o objetivo final da vida para Nietzsche possa ser traduzido pela palavra “ação” ou “agir”; um agir incessante e que, por isso mesmo, leva-nos sempre à necessidade de reinterpretação, de reorganização, de mudança em relação às ações anteriores, sempre no caminho do desenvolvimento e da expansão.

Em Schopenhauer como educador, quando Nietzsche fornece-nos a chave desse processo recorrendo à expressão: “é preciso assumirmos a responsabilidade sob nós mesmos”, sua intenção talvez não seja outra senão a de atentar para a necessidade de nos identificarmos com nossas ações, de sermos os verdadeiros condutores de nossas próprias vidas e relações com as coisas e com o mundo. Mais uma vez, a responsabilidade que devemos ter sobre nós mesmos diz respeito a este estado de desembaraço em relação a tudo aquilo que nos restringe e nos impede de pronunciar um sim incondicional a nós mesmos e à vida que, antes de mais, é não somente deliberação subjetiva, mas parte do compromisso de um sistema educacional, onde o “sê tu mesmo” só pode significar um ser que age em relação a si e ao meio que o cerca, que se identifica consigo e com o mundo, que não só aceita a mudança mas se coloca em inteireza a seu dispor. Nesse escrito, Nietzsche está engajado com o problema da educação e da cultura, da autodisciplina, da formação de homens superiores com ênfase pronunciada em como educar a si mesmo, que nesse primeiro momento é reconhecido como um empreendimento individual regulamentado sob a fórmula da libertação do eu e colocado a caminho do “chegar a ser o que se é”. A intenção principal de Nietzsche é a elevação do homem enquanto indivíduo (entendida como a capacidade de superação contínua) a produção do homem forte que, por sua vez, não deve depender do acaso, mas ser propiciado pela educação: uma educação que leve em conta o futuro, que possibilite a concepção de novos costumes em direção a uma cultura elevada, opostos aos da cultura vigente decadente. A educação deve, portanto, possuir como meta a tarefa de auxiliar a natureza no engendramento do exemplar individual superior, não determinando a tarefa, mas propiciando a elevação da

 

potência e, como consequência, a superação, além de combater a massificação e nivelamento da cultura, como qualquer traço de dependência que esta mantenha em relação ao Estado. A educação e a cultura desempenham um papel fundamental para a formação do homem, ambas agindo diretamente sobre o que ele pode tornar-se.