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CAPÍTULO III: PERFECCIONISMO, CULTURA E FILOSOFIA

3.1. A problemática do perfeccionismo

É extenso o volume de interpretações e indagações acerca da recepção do perfeccionismo em Nietzsche. Principalmente, a partir da última metade do século XX, várias abordagens vêm sendo feitas com o intuito principal de discutir as teorias éticas e doutrinas perfeccionistas na atualidade. Interessante notar é que, quando o perfeccionismo é problematizado dentro da esfera filosófica, é cada vez mais comum encontrar referências ao pensamento de Nietzsche, sendo o mesmo considerado, em alguns debates contemporâneos, o perfeccionista por excelência. Isto acontece, por exemplo, em certas leituras que incluem Nietzsche como um perfeccionista moral ou político, ou que tratam de situar alguns aspectos de sua filosofia dentro dessa problemática102.

Sobretudo no que diz respeito à sua obra de juventude, algumas dessas abordagens merecem um destaque especial. É o caso, por exemplo, da apropriação que John Rawls faz em sua obra principal, Uma Teoria da Justiça103, ao empreender uma leitura elitista a partir de

uma passagem extraída do início da sexta seção de Schopenhauer como educador104. Esta análise de Rawls foi o mote responsável por desencadear toda uma polêmica em torno de interpretações que colocam Nietzsche no centro da problemática perfeccionista, dando início a uma série de debates de onde se sobressai a resposta elaborada por Stanley Cavell e                                                                                                                

102

Para elucidar essa questão, poderíamos lembrar, por exemplo:  James Conant, “Nietzsche’s Perfectionism,” in

Nietzsche’s Postmoralism. Essays on Nietzsche’s Prelude to Philosophy’s Future, ed. Richard Schacht

(Cambridge: Cambridge University Press, 2001); David Owen, “‘Equality, Democracy and Self-Respect’:

Reflections on Nietzsche’s Agonal Perfectionism,” Journal of Nietzsche Studies 24 (2002); Daniel W. Conway, Nietzsche and the Political (New York: Routledge, 1997); Sophie Djigo - Free Spirits: Idealism and Perfectionism. In European Journal of Pragmatism and American Philosophy, 2009.

103

Para nossa análise, adotamos a seguinte edição: RAWLS, J. Uma Teoria da Justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita Maria Rímoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

104 A passagem de Schopenhauer como educador que Rawls destaca como referência ao perfeccionismo de

Nietzsche aparece ao final do quinto capítulo de Uma Teoria da Justiça, na seção entitulada “O princípio da

perfeição”, e citada a partir da edição de J. R. Hollingsdale, Nietzsche: the Man and His Philosophy (Baton

Rouge, Lousiana State University Press, 1965), p. 127. A passagem é a seguinte: “A humanidade deve trabalhar continuamente para produzir grandes seres humanos singulares – nisso e nada mais consiste sua tarefa...pois a questão é a seguinte: como pode a tua vida, a vida individual, reter o valor mais elevado, a significação mais profunda?... Apenas vivendo para o bem dos mais raros e valorosos espécimes”. NIETZSCHE, 2001a, pag. 75- 76.

 

direcionada a Rawls em sua obra Conditions Handsome and Unhandsome: The Constitution of Emersonian Perfectionism, de 1988. Nesse texto, por sua vez, Cavell procura conciliar o perfeccionismo de Nietzsche com um certo ideal da democracia liberal, procedendo, assim, sob inspiração do perfeccionismo emersoniano105.

Tendo em vista essa situação, procuraremos reconstruir o debate entre Rawls e Cavell no intuito de que tal estratégia possa trazer luz para a questão e ajude a organizar as ideias que iremos expor na sequência. Porém, antes de adentrarmos efetivamente no assunto, faz-se necessária uma observação afim de elucidar um detalhe intrínseco à Terceira Extemporânea:

nessa obra, são poucas as vezes em que percebemos Nietzsche fazer referência direta a essa atmosfera própria do perfeccionismo. E ainda, quando o constatamos – sobretudo na seção 6 da obra – as referências aparecem de forma contida e pouco sugestivas do ponto de vista político ou moral. Em Schopenhauer como educador, Nietzsche, de fato, elabora sentenças

que aludem ao perfeccionismo, mas as alusões encontram-se, como veremos mais detalhadamente, voltadas para o problema da cultura – preocupação direta de Nietzsche nesse período –, da constituição de uma cultura forte, em oposição ao espírito decadente que prevalece em sua época, sobretudo nas instituições de ensino e cátedras de filosofia. Essa descrição é corroborada pelo próprio Rawls se atentarmos para o fato de que, ao classificar Nietzsche como um perfeccionista, transpondo-o para um discurso contemporâneo sobre moral e política, Rawls estrutura toda sua argumentação com base em apenas uma pequena passagem recortada de Schopenhauer como Educador, citando-a numa nota de rodapé.

Contanto, avançaremos sobre a questão do perfeccionismo em Nietzsche tomando como referência um outro texto que coloca este debate entre Rawls e Cavell em evidência sem perder de vista o contexto da Terceira Extemporânea – obra que inaugura a polêmica. Trata-se do artigo de Vanessa Lemm intitulado “Is Nietzsche a perfectionist? Rawls, Cavell                                                                                                                

105 Ralph Waldo Emerson (1803-1882). Filósofo, escritor e poeta norte-americano, famoso, sobretudo, por seus

 

and the politics of culture in Nietzsche`s ‘Schopenhauer as educator’”. Veremos como Lemm

irá, no decorrer do texto, analisar em pormenor a evolução desse debate e posicionar-se de forma contrária a grande parte das teses e alternativas defendidas por Rawls e Cavell, procurando estruturar sua argumentação com base numa acepção política positiva para o perfeccionismo de Nietzsche a partir da noção de agonismo. Enquanto Cavell defende a tese segundo a qual o perfeccionismo de Nietzsche estaria embasado em um cultivo de si que seria compatível com a sociedade liberal; para Rawls o perfeccionismo de Nietzsche seria antiliberal, elitista, aristocrático. Por sua vez, Lemm procurará manter uma posição intermediária dizendo que o perfeccionismo de Nietzsche nem é elitista no sentido de Rawls, nem totalmente liberal no sentido de Cavell: enquanto este último defende a tese liberal, individualista, de que o indivíduo vai buscar o cultivo de si e isso vai contribuir para a democracia indiretamente, pois ele vai desenvolver qualidades que são importantes para combater a tendência da democracia ao conformismo106, a proposta de Lemm vai no sentido de um esforço de leitura que não é nem a favor de Rawls e nem diretamente a favor de Cavell, uma vez que ela afirma haver determinados contextos institucionais envolvendo elementos do agonismo, visto que o perfeccionismo de Nietzsche só pode ser entendido a partir da noção de agonismo.