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3 O lastro autobiográfico na literatura e no cinema contemporâneo

3.2 O pacto referencial na trilogia de Antônio Torres e em Árido Movie

O papel da escrita é constituir, com tudo o que a leitura constituiu, um ‘corpo’. E é preciso compreender esse corpo não como um corpo de doutrina, mas sim – segundo a metáfora da digestão, tão frequentemente evocada – como o próprio corpo daquele que, transcrevendo suas leituras, delas se apropriou e fez sua a verdade delas: a escrita transforma a coisa vista ou ouvida em forças e em sangue.

Michel Foucault

As narrativas dos romances da trilogia torriana e da ficção cinematográfica de

Árido Movie, independentemente das elaborações estilísticas adotadas para contar as

histórias, estabelecem além do pacto “ficcional”, o “referencial”. As narrativas em

questão trazem nitidamente o caráter (auto)referencial e reelaboram os espaços narrados ao deslocarem a rigidez do binarismo entre o que se considerava fato e ficção.

A invasão das imagens produzidas pelo discurso memorialístico dos autores evidencia a presença marcante da textualidade autobiográfica, definida por Philippe Lejeune (1996) através da relação que os textos estabelecem com a referencialidade:

O “espaço autobiográfico” compreende o conjunto de todos os dados que circulam ao redor da figura do autor: suas memórias e biografias, seus (auto) retratos e suas declarações sobre sua própria obra ficcional. Se num sentido geral, todo texto de ficção participa do espaço autobiográfico, as ficções em primeira pessoa e com traços autobiográficos ocupam aí um lugar de destaque: estabelecem o que Lejeune chama de “pactos indiretos”, pois o autor, por meio de alguma indicação, os dá a ler indiretamente como “fantasmas reveladores do indivíduo”. (KLINGER, 2007, p. 12-13)

Em Essa Terra, O cachorro e o lobo e Pelo fundo da agulha, o apelido do narrador personagem alude de forma direta ao nome do escritor Antônio Torres, pois embora seja apresentado na trilogia pelo nome de Antão Filho, Totonhim é usualmente o apelido dado a quem se chama Antônio. Outras referências são evidenciadas na publicação da vigésima edição do romance Essa Terra (2005). Entre elas podemos citar o comentário na contracapa, realizado pelo crítico e escritor Affonso Romano de Sant’Anna, que tece a seguinte consideração: “Torres, como Graciliano, optou pelo mais honesto; escrever sobre o seu Nordeste. E assim como Graciliano identificava as personagens de Vidas Secas mostrando que saíram de sua família, Essa Terra tem no lastro biográfico a sua força original”.

As marcas da referencialidade presentes nessas obras podem ser encontradas na escrita do Posfácio da edição citada anteriormente, escrita pela professora de Literatura Brasileira da Faculdade de Letras de Lisboa, Vânia Pinheiro Chaves, quando afirma que o escritor Antônio Torres, ao abordar o universo contemporâneo do sertanejo, o faz libertando-se “das restrições de uma poética uniformizadora” seguida no passado. Para ela, o autor

(...) soube encontrar a sua própria estrada, o que é tanto mais evidente quanto a recriação do universo sertanejo, tem nela muito de autobiográfico e catártico.

Sob a forma de um relato fragmentário e memorialístico, Essa Terra, apresenta a história trágica de uma família de origem rural: a do narrador- personagem Totonhim. (p.176-177)

Seguindo a escrita do posfácio do romance Essa Terra, a professora Vânia Pinheiro Chaves faz uma retomada da afirmação do romance enquanto autobiográfico e catártico para justificar ao leitor a citação descrita na sua análise crítica da obra, a qual ela expõe da seguinte forma:

Caberia finalmente explicar por que se afirmou anteriormente ter a recriação do universo sertanejo em Essa Terra algo de autobiográfico e de catártico. Esta ideia encontra fundamento em semelhanças importantes detectadas nas biografias de Antônio Torres e do seu narrador, entre as quais se contam: a família numerosa, o nascimento no Junco, os estudos ginasiais em povoações vizinhas mais adiantadas, a emigração para o sul, a atividade literária. Ajuda ainda a sustentá-lo o fato de aquela personagem ser designada apenas através do apelido Totonhim, frequentemente dado a quem tem o nome de Antônio. É, por sua vez, sintomático do aspecto catártico da obra – de fácil comprovação na sua estrutura interna, pois o sentido de expiação constitui o fulcro da relação do narrador com o seu relato – a presença obsessiva na produção romanesca do escritor dos mesmos dramas e do mesmo universo.

Outro índice de referência à condição autobiográfica da trilogia torriana é encontrado na análise crítica sobre o romance Essa Terra, resenhado pelo escritor e professor Ítalo Moriconi na escrita do prefácio à edição de bolso (2008), onde o autor afirma:

(...) Em última instância, a obra narra uma história de família, uma história de família em situação extrema de diáspora, separação, distância, como contingência mesmo da vida em diáspora. Uma história de família narrada por quem ficou e recolhe os restos de tanta dificuldade de diálogo para talvez no futuro construir sua própria narrativa – narrativa essa que Torres veio efetivamente a colocar no papel em livros posteriores. Assim como em Joyce e Virginia Wolf, a lição básica de Faulkner é um modernismo narrativo que combina fragmentação a fluxo discursivo na tentativa de mimese dos processos subjetivos internos. Em Antônio Torres, essa combinação representa o esforço de recuperação dos laços afetivos, no contexto árido e rascante de relações humanas irremediavelmente falhadas. Eu disse irremediavelmente? Mas para Torres, existe um remédio para as falhas do afeto: sua redenção pela palavra romanesca, que é também, sempre, palavra poética.

Nessa edição de bolso temos a adição de uma pequena descrição biográfica do autor, informando o lugar onde nasceu, a sua ida para São Paulo aos 20 anos, os trabalhos desenvolvidos, os livros escritos e prêmios conquistados ao longo de sua carreira. Em outras edições não verificamos a presença desse resumo biográfico, e

ficamos conhecendo o autor pela análise crítica presente no prefácio ou posfácio, quando os mesmos fazem parte da edição da obra. Em O cachorro e o lobo e no romance Pelo fundo da agulha, por exemplo, não há presença da descrição biográfica, nem do prefácio ou posfácio, sendo as obras apresentadas por críticos, escritores ou estudiosos da literatura.

Em O cachorro e o lobo, esse tipo de referência que foge à narrativa da obra é trazido para o romance pelos escritos da tradutora e crítica literária Alice Raillard (Paris, 1997), em que ela declara: “Esse território da memória poderia ser a Itambira mineira de Carlos Drummond de Andrade. Mas não, estamos realmente no interior da Bahia, na Junco de Antônio Torres. Atualmente ‘uma cidadezinha quieta, silenciosa, enfeitada de árvores e antenas parabólicas, à espera do fim do mundo’.

Embora todos esses índices referenciais tendam a apontar para a escrita de si implícita na trilogia torriana, interessa-nos perceber como o falar de si reivindica o deslocamento do olhar para narrar “o outro”. Interessa-nos analisar em que medida os relatos de “outridades” são perceptíveis nas obras e em que medida são capazes de traduzir as subjetividades representadas pelo ser nordestino ali construído. Este olhar se quer antropologizante à medida que busca dialogar com duas tendências da narrativa contemporânea chamadas de “retorno do autor” e de “virada etnográfica”. O que Diana Klinger apresenta em Escritas de si, escritas do outro, como característica do corpus que analisa e que pode ser apropriada nas obras aqui estudadas:

(...) a construção da figura do “outro” vinculada à presença marcante da primeira pessoa, desconfia da transparência e da neutralidade, e assim questiona a ideia de representação. O que resulta mais instigante é notar que a própria antropologia tem desenvolvido uma crítica da representação exatamente a partir do momento em que o antropólogo começou a olhar a si próprio. Veremos que a combinação de auto-reflexão e olhar etnográfico aproxima estes romances da antropologia pós-moderna, pois ela mesma pressupõe um “retorno do autor”, no marco do discurso não ficcional. Deixando de lado qualquer pretensão de objetividade e de neutralidade “científicas”, os textos da antropologia pós-moderna narram experiências subjetivas de choque cultural. (...) a antropologia, ao mesmo tempo que se transformou numa “língua franca” transversal aos diferentes campos das humanidades e da teoria atual, sofreu ela mesma uma virada, ao colocar a questão da escrita e do sujeito, redefinindo assim as polaridades sujeito- objeto. (KLINGER, 2007, p.15)

Na complexidade da dupla inscrição das narrativas torrianas em questão, buscaremos analisar no próximo subcapítulo esses espaços da memória e a relação direta proposta pela escrita textual e o sujeito da escrita, que ora se inscreve no texto.