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Padrão de fragmentação

No documento AS INVERSÕES NA PRÁXIS JORNALÍSTICA (páginas 36-44)

1.4 Os fundamentos dos padrões apontados por Abramo

1.4.2 Padrão de fragmentação

Após a decisão sobre o que será descartado, resta noticiar o que passou pelo crivo do veículo de comunicação. Esta apresentação ao leitor, em grande número de vezes não será, porém, em sua totalidade, mas particularizada, caracterizando um posicionamento pobre diante de um acontecimento muitas vezes complexo.

Na elaboração da notícia, são ignoradas as conexões com os antecedentes e conseqüentes do acontecimento, o contexto em que ele foi

9 Uma síntese da pesquisa pode ser encontrada no artigo “Quem são os donos”,

gerado e sua dinâmica, implicando, então, segundo o autor, duas operações básicas: a seleção de aspectos/particularidades e a descontextualização.

De forma similar ao que ocorre no padrão de ocultação, a seleção de aspectos tem a função de determinar o que será ou não permitido dar a conhecer ao leitor, de acordo com o projeto editorial adotado pelo veículo de comunicação. Como alerta Abramo:

Novamente, os critérios para essa seleção não residem necessariamente na natureza ou nas características do fato decomposto, mas sim nas decisões, na linha, no projeto do órgão de imprensa, que são transmitidos, impostos ou adotados pelos jornalistas desse órgão. (ABRAMO, 2003: 28)

Fruto da seleção de aspectos, a descontextualização é evidente. Se algo é apresentado isoladamente e apenas em parte, a apreensão de significados fica prejudicada por não haver elementos suficientes para que o leitor possa fazer as necessárias relações, a fim de bem estruturar sua compreensão de mundo. O acontecimento passa, então, a não ter significado aparente ou adquire novo significado, que pode ser não somente diferente, como também antagônico ao original, o que nos remete aos conceitos de criação da segunda realidade apontados por Bystrina. Vejamos o que diz Abramo:

A fragmentação da realidade em aspectos particularizados, a eliminação de uns e a manutenção de outros e a descontextualização dos que permanecem são essenciais, assim, à distorção da realidade e à criação artificial de uma outra realidade. (ABRAMO, 2003: 28)

O jornalista Leão Serva (2001: 59)10 também aborda a questão da fragmentação nas notícias, mecanismo que impede o estabelecimento de relações, apontando-a como um dos limites do jornalismo.

Ao ressaltar que o jornalismo tem como matéria-prima o fato novo, desconhecido, que pode causar surpresa, o autor assevera que, diante disso, para não excluir esta surpresa do leitor, os jornais “deixam de buscar em primeiro lugar uma compreensão genuína dos acontecimentos”.

É como dizer: se os leitores entenderem a notícia, seus antecedentes, seu contexto e sua repercussão, não vão se surpreender com ela, não vão dar valor ao noticiário. E quem sabe no dia seguinte não “renovarão a eleição” do veículo, entendida pelo ato de compra repetido diariamente. (SERVA NETO, 2001: 59-60)

Valendo-nos do conceito de Complexidade, que tem em Morin seu maior expoente, podemos afirmar que a fragmentação das idéias ou das informações é exatamente o inverso a tudo que se situa em termos daquele conceito.

10 Em ressonância com o que discutimos nesta pesquisa, Leão Serva, em seu livro

Jornalismo e desinformação, aponta algumas razões que determinam lacunas de informação nos jornais e de compreensão nos leitores. São elas: 1) a omissão e 2) a sonegação, nas quais ocorre a ausência da informação, ainda que por causas diferentes; 3) a submissão, ocorrida quando o fato é publicado, mas a notícia recebe uma edição que não permite ao receptor compreender sua importância e seu significado; e 4) a deformação da informação, um caso extremo de submissão, que ocorre quando a desinformação gerada é tão grande que leva a uma compreensão errada da informação. Esta “desinformação-informada”, quando tornada sistêmica e não episódica, pode levar os leitores ao que o autor denomina de desinformação funcional, de forma semelhante ao que ocorre com o analfabeto funcional, que é capaz de unir palavras e frases, mas não consegue apreender o significado do que lê.

A complexidade, que, no sentido original do termo, significa “o que foi tecido junto”, pressupõe o rompimento com o isolamento dos objetos, ou seja, a pertinência de todo o conhecimento está no estabelecimento de relações com o contexto em que esses objetos se inserem. Por exemplo, uma pessoa que se limita somente ao seu grupo possui um imaginário restrito e, assim, deixa de conviver com a cultura. É preciso abrir-se às mudanças, observando claramente o mundo das coisas e as instituições em que se vive, abandonando velhas idéias pré-concebidas e conceitos que dividem o mundo dicotomicamente. É a busca de uma nova percepção de mundo por meio da ótica da complexidade.

Morin (2002: 12) destaca dois bons e cotidianos exemplos da importância do pensamento complexo, para que as pessoas possam, de fato, obter um conhecimento mais efetivo a respeito dos objetos.

O primeiro deles lembra-nos da necessidade de busca dos antecedentes, das origens dos fatos, a fim de rejuntar as informações ao contexto ao qual elas pertencem. Morin destaca que, quando pela primeira vez ouviu-se falar sobre a guerra da Bósnia, a palavra Sarajevo não possuía significado algum para quem a escutava. Posteriormente, inclusive com a ajuda dos meios de comunicação, a sociedade começou a situar a cidade geográfica, política e culturalmente. Para melhor conhecimento ainda, é necessário saber sobre o passado dos Bálcãs, a ocupação turca, a Primeira Guerra Mundial - que começou com um atentado em Sarajevo -, a Segunda Guerra Mundial, o comunismo iugoslavo do marechal Tito, a crise desse comunismo etc.

O segundo exemplo apresentado pelo sociólogo ressalta a importância de não se deixar capturar pela armadilha do conhecimento muito sofisticado, mas isolado, o que pode levar ao erro e à ilusão. O exemplo trata da incapacidade que os economistas têm de prever crises vindouras, justamente por se aterem a pensamentos compartimentados.

Morin destaca que por se tratar de uma ciência quantitativa, a Economia elimina de sua visão o que se refere à vida, às paixões, aos sofrimentos e aos gozos humanos, dimensões estas que também se fazem presentes na vida econômica. E exemplifica com a situação de uma jovem que, ao comprar um creme de beleza, pratica um ato econômico que está relacionado a seu desejo de agradar e seduzir. Desta forma, Morin ressalta que em todo ato econômico os seres humanos colocam suas necessidades e aspirações.

Para encontrar instrumentos do conhecimento que possam, de fato, permitir o enfrentamento da complexidade, Morin desenvolveu um trabalho denominado O método, publicado em quatro volumes. Esses instrumentos têm como proposta religar o que está separado e, dessa forma, enraizar uma nova estrutura de pensamento. Trazemos, a seguir, um pequeno resumo dos instrumentos - que, embora não tenham sido inventados pelo sociólogo, foram por ele desenvolvidos e reagrupados -, pois julgamos importante para o tema de nossa dissertação a apresentação e o conhecimento de caminhos que possam levar à superação das fragmentações e inversões, caminhos que permitam o estabelecimento de ligações, e, assim, conduzam ao conhecimento complexo, hoje abandonado pelos meios de comunicação social, que privilegiam as simplificações e os banais determinismos.

O primeiro instrumento é o que Morin denomina como noção de sistema, ou seja, o conjunto de partes diferentes, unidas e organizadas. Por exemplo, a sociedade é um sistema constituído por grupos e indivíduos sociais diferentes. E não é nada difícil perceber que, para conhecer efetivamente esta sociedade, não se pode fazê-lo a partir de grupos ou indivíduos isolados, mas, sim, unindo as partes ao todo e vice-versa.

Um todo organizado produz qualidades e propriedades que não existem nas partes tomadas isoladamente (...) Portanto, é necessário ter um pensamento que possa conceber o sistema e a organização, pois tudo o que conhecemos é constituído da organização de elementos diferentes ... (MORIN, 2002: 13)

A circularidade, idéia formulada por Norbert Wiener, constitui o segundo instrumento. Referindo-se ao caráter retroativo do sistema, a circularidade opõe-se à idéia linear de que toda a causa tem um efeito e em seu lugar pressupõe uma causalidade circular, em que o próprio efeito volta à causa. O exemplo apresentado por Morin é o do termostato em um local com aquecimento central. Primeiro, a obtenção da temperatura desejada (causa) leva ao desligamento do termostato (efeito); e posteriormente, quando o local volta a esfriar, o termostato (efeito) é ligado, reaquecendo (causa) o local.11

O terceiro instrumento é o da circularidade autoprodutiva. Os exemplos passam pela reprodução humana, na qual todos somos produtos e produtores; e também pela constituição da sociedade, que é produzida pela interação entre os indivíduos, mas também ela mesma, com sua cultura e linguagem, retroage sobre os indivíduos.

Morin denomina o quarto instrumento como hologramático, em uma referência à idéia de que não somente a parte está dentro do todo, mas o todo está no interior das partes. Ele destaca, por exemplo, que os indivíduos estão dentro da sociedade, mas a sociedade está presente nos indivíduos

11 Aqui, destacamos entender o processo comunicativo como probabilístico,

sujeito a surpresas, ao acaso, contrariamente ao conceito que o entende como linear, com regras de imutabilidade. O conceito de comunicação probabilística, conforme o propõe Baitello, foi apresentado durante suas aulas de Semiótica da Cultura, na PUC/SP.

desde seu nascimento, já que estes recebem daquela as proibições, as normas, a linguagem etc.

O dialógico é o quinto operador desenvolvido por Morin, que assevera que, para que alguns fenômenos complexos possam ser compreendidos, é necessário juntar duas noções que são ao mesmo tempo antagônicas e complementares, como, por exemplo, vida e morte. Para se manter vivo, o organismo humano lança mão da morte de células e moléculas degradadas. Também as sociedades vivem da morte de seus indivíduos, já que, lembra-nos Morin, a cultura é transmitida às novas gerações e assim se regenera. Desta forma, o sentido do operador dialógico é o de que a própria vida integra seu maior oposto, a morte.

Por fim, Morin aborda o princípio de integração do observador à sua observação e do conhecedor ao seu conhecimento. O profissional sociólogo, por exemplo, é a parte do todo social, que, por sua vez, também está dentro dele. Para que possa realizar um efetivo trabalho diante do conjunto da sociedade, ele deve, então, fazer uma auto-análise com o objetivo de situar- se e perceber que não possui inicialmente o verdadeiro conhecimento, mas, sim, um conhecimento relativo. Os antropólogos ocidentais do início do século 20, e suas descobertas acerca da riqueza de conhecimento das populações arcaicas em contraposição à postura deles mesmos, que se consideravam os donos da razão e do conhecimento objetivo, também são citados por Morin. Vejamos:

Lévy-Bruhl, grande antropólogo francês do início do século, caracterizava as sociedades, a que chamava de primitivas, de sociedades compostas de indivíduos de mentalidades mágicas e místicas. Ele não se perguntava como esses indivíduos eram capazes de construir instrumentos e estratégias de caça extremamente racionais e eficazes. Diante

de novas condições históricas, (...) houve uma mudança no ponto de vista dos antropólogos, que descobriram que havia riquezas de conhecimento nas populações arcaicas, que havia conhecimento de plantas e remédios (...) É preciso notar que toda a cultura, que poderia ser considerada por nós arcaica e primitiva, contém, nela própria, uma mistura de sabedoria, de verdades profundas, de conhecimentos, e de erros e superstições. Mas nossa sociedade também tem os mesmos elementos de conhecimento, de verdade, de erros e superstições. Freqüentemente o que chamamos de razão é algo profundamente irracional. (MORIN, 2002: 17)

Indo ao encontro de como a Semiótica da Cultura trabalha com os objetos, ou seja, a partir da transdisciplinaridade, Morin destaca a necessidade de que rompamos com o paradigma da disjunção que comanda a história do mundo e do pensamento ocidental e que separa o espírito da matéria, a filosofia da ciência, o conhecimento particular que vem da música ou da literatura do conhecimento advindo da pesquisa científica, o sujeito do conhecimento do objeto do conhecimento.

Assim, vivemos num mundo em que é cada vez mais difícil estabelecer ligações, quando se trataria de enraizar outra estrutura de pensamento. Para isso, é preciso, evidentemente, uma ruptura do ensino, que permita juntar ao mesmo tempo que separa. O conhecimento complexo conduz ao modo de pensar complexo, e esse modo de pensar complexo, ele mesmo, tem prolongamentos éticos e existenciais, e talvez até políticos. (MORIN, 2002: 18)

Com esses instrumentos, Morin desafia-nos a compreender e empreender as mudanças necessárias em nossa forma de conhecer e interagir com os objetos à nossa volta.12

Se a imprensa distancia-se da complexidade, utilizando com freqüência, deliberadamente ou não, mecanismos que impedem que as tão necessárias ligações sejam feitas pela sociedade, aprendermos a reconhecer tais estratégias e darmos forma a uma nova estrutura de pensamento pode ser um bom começo para mudanças rumo ao desalojamento de idéias pré- concebidas e enraizadas.

No documento AS INVERSÕES NA PRÁXIS JORNALÍSTICA (páginas 36-44)

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