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AS INVERSÕES NA PRÁXIS JORNALÍSTICA

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Academic year: 2018

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AS INVERSÕES NA PRÁXIS JORNALÍSTICA

Estratégias e (des) caminhos

na construção do noticiário

Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO São Paulo

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MIRIAM CAJADO GOMES DE OLIVEIRA

AS INVERSÕES NA PRÁXIS JORNALÍSTICA

Estratégias e (des) caminhos

na construção do noticiário

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica - Signo e Significação nas Mídias, sob a orientação do Prof. Dr. Norval Baitello Junior.

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO São Paulo

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BANCA EXAMINADORA

________________________________________

________________________________________

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AGRADECIMENTOS

À minha irmã Fátima, pelo incentivo e presença amiga.

À minha irmã Márcia (in memoriam), que muito me ajudou, comemorou a meu lado o ingresso no mestrado e não teve tempo de me ver concluí-lo, já que a vida, em uma perversa inversão, levou precocemente para muito longe quem família e amigos queriam bem perto.

Ao Prof. Dr. Norval Baitello Junior, orientador entusiasta, por confiar em mim e me conduzir para novos conhecimentos.

Aos Profs. Drs. Fabio Cypriano e José Eugenio de Oliveira Menezes, por toda a atenção e pelas contribuições apresentadas no exame de qualificação.

Aos Profs. Drs. Irene Machado, Cecilia Almeida Salles, Amálio Pinheiro e Eugênio Trivinho, pelo acolhimento e por propiciarem meu crescimento acadêmico.

À Professora Flamínia M.M. Lodovici, pela cuidadosa revisão desta dissertação.

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A todos os amigos da Cúria Metropolitana de São Paulo, em especial, Leandro Siqueira, Juliana Satie, Analu Braggio, Cloves Reis, Magali Godoy, José Carlos Jerônimo e Rita Ribeiro, que me acompanharam mais de perto no percurso desta pesquisa.

Aos queridos amigos do trio, Andréa Florentino e José Mauricio Conrado, pelos encontros de estudo, pelas sugestões e, acima de tudo, pela demonstração de companheirismo e lealdade.

A todos os colegas do mestrado, em especial os do Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia, pela amizade e carinho.

Ao cardeal dom Paulo Evaristo Arns e ao cônego Antônio Aparecido Pereira, pelo apoio.

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RESUMO

Esta pesquisa trata das formas de inversão presentes na práxis jornalística, demonstrando o que são, onde estão e como são operacionalizadas, iniciando com um mapeamento dos conceitos teóricos acerca dos processos comunicativos.

Com Ivan Bystrina e Mikhail Bakhtin, discute a inversão como uma solução cultural encontrada pelo homem para superar seus medos e dificuldades, abolindo regras e hierarquizações. Transportada para o âmbito do jornalismo, desta vez a partir da perspectiva das instituições e não da do povo, esta liberação configura também uma solução cultural encontrada pela imprensa para se livrar das pressões a que está sujeita, como, por exemplo, a necessidade de trazer a novidade mais recente, no menor tempo possível e antes dos concorrentes. Invertendo a própria inversão, transforma-se de solução para o produtor em problema para o consumidor do produto jornalístico, ao qual é negado o direito a informações completas, devidamente contextualizadas, como aponta Edgar Morin, e livres de distorções.

Com Perseu Abramo, traz as inversões nas diferentes formas como se apresentam nas matérias jornalísticas, trocando de lugar fato e versão, informação e opinião, forma e conteúdo, parte e totalidade, dentre outros. Os estudos de Pierre Bourdieu sobre os “mecanismos invisíveis” do campo jornalístico fornecem os subsídios para entender algumas das causas da incidência das inversões apontadas por Abramo.

Por fim, analisa matérias alusivas a três temas: reforma agrária e sem-terra, marketing pessoal de personalidades e disputa eleitoral, apontando as inversões presentes.

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ABSTRACT

This research deals with the current forms of inversion in the journalistic praxis, demonstrating what they are, where they are and how they become operational, starting by mapping the theoretical concepts relating to the communicative processes.

With Ivan Bystrina and Mikhail Bakhtin, it argues that the inversion is a cultural solution found by man in order to overcome his fears and difficulties, abolishing rules and hierarchical systems. When assigned to the field of journalism, this time from the perspective of the institutions and not of the people, this liberation is also shaped as a cultural solution found by the press to free itself from the pressures to which it is subject, for instance, the need to bring the most recent newness, in the lesser possible time and ahead of the competitors. Inverting the inversion itself, it transforms itself from solution for the producer into a problem for the consumer of the journalistic product, to whom the right to broad information, duly conceptualized, as pointed by Edgar Morin, and free of distortions is denied.

With Perseu Abramo, it brings the inversions in the different forms they appear in the journalistic writings, changing places of fact and version, information and opinion, form and content, part and totality and others. The studies of Pierre Bourdieu about the “invisible mechanisms” of the journalistic field provide the subsidies to understand some of the causes of incidence of the inversions pointed by Abramo.

Finally, it analyzes allusive journalistic writings to three subjects: land reform and landless people, personal marketing of public figures and electoral dispute, pointing the current inversions.

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SUMÁRIO

Introdução 09

CAPÍTULO 1 A imprensa e seus mecanismos de produção 1.1 Os códigos culturais, segundo Ivan Bystrina 16

1.1.1 Os quatro universais da cultura 19

1.2Com Mikhail Bakhtin, carnavalizando a notícia 22

1.2.1 Ambivalência 24

1.3 O estabelecimento de novos sentidos 26

1.4 Os fundamentos dos padrões apontados por Abramo 32

1.4.1 Padrão de ocultação 33

1.4.2 Padrão de fragmentação 35

1.4.3 Padrão de inversão 43

1.4.3.1 Inversão da relevância dos aspectos 44

1.4.3.2 Inversão entre forma e conteúdo 44

1.4.3.3 Inversão entre versão e fato 44

1.4.3.4 Inversão entre opinião e informação 46

1.4.4 Padrão de indução 47

1.4.5 Padrão global ou específico do jornalismo de televisão e rádio 47

CAPÍTULO 2 O cotidiano da mediação invertida 2.1 Distorções abrigadas 50

2.1.1 Os sem-terra existem? 51

2.1.2 Silvio Santos: a morte como espetáculo 60

2.1.3 Imprensa na disputa eleitoral 64

2.1.3.1 Em pauta, a interpretação dos números 65

2.1.3.2 O apoio no discurso alheio 69

2.1.3.3 A informação em último lugar 73

2.1.3.4 Vale-tudo verbal 76

Considerações finais 79

Bibliografia 81

Anexos 91

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Introdução

A imprensa1 assume cotidianamente em seus discursos o compromisso com a liberdade e a isenção, reservando, inclusive, espaços em seus projetos editoriais para asseverar sua independência. Conforme Motta (2002: 15), a imprensa insiste em defender uma posição própria de imparcialidade no jogo político, de neutralidade e de distanciamento na observação e no relato dos eventos públicos.

Apesar de tais discursos, nossa pesquisa parte da hipótese de que nem sempre a situação seja exatamente a que é apregoada. É possível pensar que existem fatores impeditivos que acabam por estabelecer o modo de produzir e transmitir informação para uma sociedade determinada, criando e recriando o noticiário, sejam eles os mecanismos estruturais do campo jornalístico, conforme veremos mais adiante com Pierre Bourdieu (1997), sejam eles fatores ligados a interesses dos veículos de comunicação, de seus jornalistas ou dos grupos aos quais estejam mais ligados econômica ou politicamente ou sejam ainda uma conjugação destes e de outros elementos.

1 No presente trabalho, utilizamos o termo “imprensa” genericamente,

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Assim introduzimos nosso objeto de estudo, a inversão, que pode ser duplamente caracterizada: em primeiro lugar, como uma contradição entre o discurso da imprensa e sua prática efetiva, ou, podemos dizer, possível; e em segundo lugar, por sua presença trazida à tona nas notícias. É necessário esclarecer, porém, que não trabalhamos com os aspectos dos discursos da imprensa em relação a seus valores e/ou independência, o que seria demasiado extenso para o âmbito da presente dissertação, detendo-nos, portanto, apenas na análise da inversão presente nas matérias jornalísticas, o que, em alguns casos, pode incluir a avaliação que o próprio veículo faz tão somente em relação à matéria específica.

A palavra “inverter” vem do latim invértere e significa mudar a ordem dos objetos, dispor de maneira contrária ao normal, transformar uma coisa em outra (Cf. BUENO, 1965: 1978). E é isso o que tentamos demonstrar que ocorre, em maior ou menor grau, na práxis jornalística. Para tanto, discutimos na presente pesquisa o que são as inversões, onde elas se encontram e como funcionam.

As conseqüências de uma visão distorcida por parte do público receptor, que em primeiro lugar é cidadão, são de grandes proporções, podendo perpassar as raias da dominação. Acreditamos que se este público, naturalmente leigo em sua grande maioria no que diz respeito a técnicas comunicacionais, puder, a partir das reflexões dos teóricos, ter acesso aos “bastidores” das notícias, puder conhecer as técnicas aplicadas na produção do noticiário, muitas vezes negando-lhe o direito a informações claras, coesas e, ao menos, minimamente livres de interferências, terá, com pensamento novo, maior percepção crítica.

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de consciência, da influência desses mecanismos...” (BOURDIEU, 1997: 117).

Partindo desses princípios, discutimos, no primeiro capítulo da presente dissertação, alguns conceitos relativos ao processo comunicativo, em diálogo com teóricos da Cultura e da Comunicação, tais quais Ivan Bystrina, Pierre Bourdieu, Mikhail Bakhtin, Edgar Morin e Perseu Abramo. Deste último, trazemos os estudos sobre a multiplicidade de facetas da inversão, que, entre outros recursos, oculta, trocando valores; fragmenta, trocando sentidos; troca de lugar versão e fato ou opinião e informação.

No segundo capítulo, analisamos algumas matérias jornalísticas, apontando os tipos de inversões nelas presentes. Os textos referem-se a três temas que aparecem com freqüência na imprensa: reforma agrária e sem-terra, marketing pessoal de personalidades e eleições governamentais. Os exemplos são extraídos da revista Primeira Leitura, edição de agosto de 2003; da revista Contigo!, edições de 15 de julho de 2003 e 22 de julho de 2003; e dos jornais de circulação diária Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo, em várias edições de outubro de 2002.

É preciso destacar que não é nosso intento polemizar sobre a existência de uma suposta “realidade absoluta” acerca de qualquer dos acontecimentos apresentados nas matérias analisadas, pois, se aqui tentássemos nos aprofundar demasiadamente nos diferentes conteúdos, estaríamos adentrando o perigoso terreno das certezas simplificadoras e redutoras.

Compartindo as idéias do sociólogo francês Edgar Morin, lembramos que a “realidade não é facilmente legível”.

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realidade não é outra senão nossa idéia da realidade. Por isso, importa não ser realista no sentido trivial (adaptar-se ao imediato), nem irrealista no sentido trivial (subtrair-se às limitações da realidade); importa ser realista no sentido complexo; compreender a incerteza do real, saber que há algo possível ainda invisível no real. (MORIN, 2000a: 85)

Igualmente, outra questão que perpassa a impossibilidade de apreensão total do “real” pela imprensa e, portanto, faz-se implícita ou explicitamente presente nas reflexões desta dissertação, diz respeito às funções do jornalismo. Vejamos o que diz Emir Sader, referindo-se aos grandes meios de comunicação:

Uma ambigüidade central cruza a grande imprensa: ela desempenha uma função pública, mas é uma empresa privada. No limite, torna-se incompatível a busca de rentabilidade por parte da empresa jornalística com a função de informar e ser um espaço minimamente democrático de debate. Sua lucratividade faz com que ela perca independência, conforme passa a buscar maior rentabilidade, participando de outros ramos econômicos e, assim, passando a ter interesses materiais que limitam ainda mais sua isenção... (SADER, 1998: 9)

Cientes destas características e suas implicações, o que nos interessa é analisar diferentes versões2, ou seja, variantes de interpretação e apresentação de determinado acontecimento pela imprensa. É nossa

2 Como acepção figurada do verbete “Versão”, temos: “Variante de boato, notícia,

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intenção, assim, demonstrar que os jornais fazem corriqueiramente a opção por uma ou outra versão, mas com o agravante de apresentarem-na como a única: sai de cena a mediação social da informação e entra em seu lugar a estruturação e constituição do real midiático.

Trabalhamos a partir do que os profissionais de comunicação chamam de padrão de “realidade jornalística”, que pode ser um fato comprovado por uma fonte, um personagem, um cenário político etc. Vamos dar um exemplo bastante simples e cotidiano: a queda de uma ponte é um fato comprovado, mas há versões diferentes quanto à causa do ocorrido, como fraude, acidente, falta de manutenção etc. Os meios de comunicação podem, então, apresentar uma “realidade jornalística” diferente de outra “realidade jornalística”. É claro que posteriormente sempre poder-se-á retificar a informação, mas, dependendo de como a versão foi originalmente apresentada, o estrago pode ser irreversível. É preciso considerar também que nem sempre o “desmentido” aparece no noticiário e, quando aparece - várias vezes em tamanho menor que o da notícia original -, nada garante que será lido.

Por exemplo, se existe uma contraversão que é omitida, ocorre, então, a inversão por ocultamento do chamado “outro lado”; se há inversão da relevância dos aspectos apresentados ou sua descontextualização, a notícia estabelece novos sentidos aos fatos. Pela forma como a imprensa noticia um fato, ou deixa de noticiá-lo, pode-se notar a tentativa de criar consenso em torno da versão por ela adotada.

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o mestre gatuno, o guia de almas, o deus esquivo, o senhor das estradas. Como nos lembra o psicoterapeuta cubano Rafael López-Pedraza (1999: 9-15), esse deus do comércio nas fronteiras possui elementos de silêncio, logro e furto, podendo, nas transações, tanto indicar o caminho como desencaminhar os viajantes.

O autor apresenta uma interessante passagem que muito bem ilustra a dinâmica da cultura - mostrar e esconder -, aqui expressa pela astúcia inerente ao deus Hermes: a fim de disfarçar o rastro das reses que roubava, ele as tangeu transversalmente, revirando suas patas para o lado e invertendo as marcas dos cascos, de modo que os da frente fossem para trás e vice-versa. Como López-Pedraza (1999: 61-3) nos ajuda a compreender, ao direcionar aquelas reses, Hermes estimulou um movimento retrogressivo, habilmente realizado por meio das sandálias e da inversão das pegadas do gado, num movimento que vai em certa direção mas parece que vai em outra.

Ainda seguindo os passos de Hermes, dos vários aspectos apresentados pelo psicólogo venezuelano Efraim Rojas Boccalandro, um, em especial, é-nos caro e, com ele, encerramos esta Introdução. Diz o autor:

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CAPÍTULO 1

A imprensa e seus mecanismos de produção

Amou daquela vez como se fosse a última

Beijou sua mulher como se fosse aúltima

Ergueu no patamar quatro paredes sólidas Sentou pra descansar como se fosse sábado E flutuou no ar como se fosse um pássaro E se acabou no chão feito um pacote flácido Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse o último Beijou sua mulher como se fosse a única Ergueu no patamar quatro paredes mágicas Sentou pra descansar como se fosse um príncipe E flutuou no ar como se fosse sábado

E se acabou no chão feito um pacote tímido Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina Beijou sua mulher como se fosse lógico Ergueu no patamar quatro paredes flácidas Sentou pra descansar como se fosse um pássaro E flutuou no ar como se fosse um príncipe E se acabou no chão feito um pacote bêbado Morreu na contramão atrapalhando o sábado

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1.1 Os códigos culturais, segundo Ivan Bystrina

A inversão é apontada pelo cientista político e semioticista tcheco Ivan Bystrina (1995: 9) como uma das soluções simbólicas - para o autor, uma solução muito radical - criadas pelo homem para superar a assimetria causada pela codificação dual e polar da cultura, esta naturalmente aqui tomada do ponto de vista comunicacional e de sua imortalidade, como o semioticista Norval Baitello Junior nos ajuda a compreender:

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Para chegarmos até o padrão de inversão, é necessário entender o foco da obra de Bystrina: os mecanismos pelos quais são operados os códigos da segunda realidade - a realidade da cultura, um tempo paralelo que inclui memória semiótica dos fatos biológicos, sociais e naturais, uma criação do homem para suplantar e solucionar a primeira realidade (biológica), a fim de vencer os medos que se apresentam nos locais e momentos em que esta primeira realidade se mostra insuportável ou insuperável.

Vejamos, então, o que são estes códigos e como eles podem nos auxiliar a melhor compreender os processos de cultura e de comunicação, como eles podem nos ensinar a perceber como lidamos com o mundo.

Segundo Bystrina (1995: 4), os códigos são o sistema de regras de funcionamento das linguagens, um sistema de vinculações entre os signos que compõem os textos, sendo estes aqui entendidos como complexos significativos de elementos sígnicos, como um conjunto orgânico e não como um órgão isolado.3

Entrelaçados, existem três grupos de códigos de comunicação. São eles:

1) Os códigos hipolingüísticos ou primários, responsáveis por regular toda a informação presente no organismo e, portanto, na vida biológica. O código genético, por exemplo, que atualiza o homem, seus talentos especiais, seus dons ou seus defeitos.

Estes códigos, portadores de informações que se situam no interior no corpo, são suficientes para a transmissão de informações, mas não para a

3 O professor Bystrina (1995: 4) classifica os textos em três categorias, conforme

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produção de signos. A cor de uma flor, por exemplo, transmite uma informação pela qual pássaros e insetos se orientam, mas esta informação ainda não constitui um signo - trata-se ainda de um pré-signo -, pois a flor não possui a intenção de ter uma cor, estando esta informação contida em seu próprio código genético.

2) Os códigos linguais ou secundários, que são os códigos da linguagem natural, aqueles que sincronizam a comunicação e determinam a organização social. Os textos são elementos produzidos de acordo com determinados padrões estruturais, seguindo regras que provêm justamente dos códigos secundários, os códigos da linguagem.

3) Os códigos hiperlingüísticos ou terciários, a partir dos quais surgem os textos da cultura, como mitos, histórias, lendas, crenças, religiões. São, portanto, códigos culturais.

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1.1.1 Os quatro universais da cultura

Ao estudar a estrutura básica dos códigos culturais, partindo de conceitos desenvolvidos especialmente pelos russos e pelos estruturalistas do Círculo de Praga, Bystrina destaca que os processos de codificação da cultura trazem em si regras de referência que se aplicam a todos os processos de transformação cultural. Ele, então, denomina-as como os quatro universais da cultura.

Desses quatro universais, três são responsáveis por determinar de que maneira, ou maneiras, percebemos o mundo.

O primeiro deles é o da binariedade ou dualidade, que se fundamenta no intercâmbio que ocorre no mundo material, ou seja, baseia-se na observação da primeira realidade.

No início da cultura humana, a oposição mais importante era vida-morte. E toda a estrutura dos códigos terciários ou culturais se desenvolveu a partir dessa oposição básica: saúde/doença, prazer/desprazer, céu/terra, espírito/matéria, movimento/repouso, homem/mulher, amigo/inimigo, direita/esquerda, sagrado/profano, paz/guerra (...) Tais oposições binárias dominam com enorme força o pensamento da nossa cultura particular e o desenvolvimento da cultura em geral. (BYSTRINA, 1995: 7)

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conflitos dualmente, eles são mais facilmente digeríveis; do contrário, complexificar-se-iam demais para os moldes midiáticos.

Para o leitor/ouvinte/telespectador, a desvantagem dessa postura é enorme, já que a dualidade é divisão tosca, discriminadora e violenta, não permitindo o espaço para variações.

Dessa forma, não é difícil imaginar as desastrosas conseqüências que podem recair sobre a percepção crítica que o leitor/ouvinte/telespectador deveria ter despertada e não abafada.

A polaridade é o segundo universal da cultura apresentado por Bystrina. Como a estrutura binária dos códigos culturais é organizada em polaridades, há a necessidade de valorar os componentes para facilitar as decisões, atitudes, comportamentos ou ações em relação a eles.

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A polaridade cria as condições para o terceiro universal: a assimetria. De acordo com Bystrina, constatada a polaridade, ela será sempre assimétrica, ou seja, com um pólo mais forte do que o outro. O animal é mais forte que o homem, a noite é mais forte que o dia, a morte é mais forte que a vida. E o pólo sinalizado negativamente é percebido mais fortemente do que o pólo marcado positivamente; é ele que mais atrai o homem, mais o captura em todos os sentidos.

Portanto, do ponto de vista da preservação da vida, é sempre o pólo negativo (a morte) que comemora a vitória. Esta é a assimetria: a morte é mais forte que a vida, na percepção comum. Por isso, em todas as culturas o homem aspira sempre a uma imortalidade, ou seja, à vida após a morte. (BYSTRINA, 1995: 8)

Para superar as desvantagens criadas pelo próprio homem com os três universais acima citados, Bystrina (1995: 8-12) apresenta o quarto universal: as ações de superação, mecanismos que se desenvolveram paralelamente ao próprio desenvolvimento dos códigos culturais.

Diante da assimetria, o homem age materialmente, criando instrumentos, ferramentas, textos, ciência, conhecimento. Como contra a morte não há criação material eficiente, ele cria os textos imaginativos. O homem tem, portanto, ações materiais e ações simbólicas. A história do conjunto das ações simbólicas é a cultura, a segunda realidade, o repertório do imaginário humano. E é utilizando-se do aparato da segunda realidade que o homem realiza incursões na primeira realidade, modificando-a.

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Atuando na polaridade, a inversão troca os rótulos entre o positivo e o negativo, invertendo os valores. A morte, por exemplo, com sua faceta universalmente assustadora, pode passar a ser percebida positivamente, como o início de um novo e promissor caminho rumo ao esplendor da vida eterna.

A negação do pólo negativo como meio de afirmação do pólo positivo, artifício que, como veremos mais adiante, a imprensa utiliza ao ocultar ou descontextualizar determinados acontecimentos ou parte deles, também configura uma inversão deliberadamente aplicada para penetrar na primeira realidade, modificando-a na segunda realidade, no imaginário, já que na primeira realidade não é possível fazê-lo. É a decretação de morte da complexidade, que se perde totalmente ao querer mostrar-se apenas um dos pólos de determinado objeto.

1.2Com Mikhail Bakhtin, carnavalizando a notícia

O teórico russo Mikhail Bakhtin foi um dos primeiros a falar em inversão como meio para subverter a primeira realidade com a utilização do aparato da segunda realidade, embora sem valer-se da terminologia que só posteriormente seria utilizada por Bystrina.

Ao analisar a cultura cômica popular na Idade Média e no Renascimento4, Bakhtin destaca que os festejos carnavalescos propiciam ao

4 Na obra A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de

François Rabelais, Mikhail Bakhtin (1996) faz um estudo das festas populares, da

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povo a libertação das “verdades”, da opressão dos superiores, fazendo-se momento em que todas as regras e hierarquizações são abolidas.

Todos esses ritos e espetáculos (...) ofereciam uma visão do mundo, do homem e das relações humanas totalmente diferente, deliberadamente não-oficial, exterior à Igreja e ao Estado; pareciam ter construído, ao lado do mundo oficial, um segundo mundo e uma segunda vida aos quais os homens da Idade Média pertenciam em maior ou menor proporção (...) Isso criava uma espécie de dualidade do mundo... (BAKHTIN, 1996: 4-5)

Interessa-nos observar com Bakhtin não o aspecto da comicidade popular, do riso carnavalesco, mas tão somente a transposição de traços carnavalescos para a vida cotidiana, fecundando os diversos domínios da vida e da cultura, como uma percepção diferente de mundo, aqui partindo da perspectiva das instituições e não da ótica popular. Cabe destacar que, na avaliação do autor, um dos problemas mais complexos e interessantes da história da cultura é justamente o problema do carnaval (no sentido de conjunto de todas as variadas festividades, dos ritos e formas de tipo carnavalesco), sua essência, suas raízes profundas na sociedade primitiva e no pensamento primitivo do homem, seu desenvolvimento na sociedade de classes, sua excepcional força vital e seu perene fascínio. (Cf. BAKHTIN, 1996: 105)

Com ênfase nas mudanças e transformações, a cosmovisão carnavalesca tem, na inversão, uma de suas constituições primordiais, operando como um artifício de releitura do mundo. A vida carnavalesca é,

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assim, uma vida desviada da sua ordem habitual, em certo sentido uma vida às avessas, um mundo invertido. (Cf. BAKHTIN, 1996: 105)

1.2.1 Ambivalência

Com sua ambivalência característica, a imagem carnavalesca tende a abranger e a reunir os dois pólos do processo de formação ou os dois membros da antítese: nascimento-morte, mocidade-velhice, alto-baixo, face-traseira, elogio-impropério, afirmação-negação, trágico-cômico etc., sendo que o pólo superior da imagem biunívoca reflete-se no inferior segundo o princípio das figuras das cartas do baralho. Isto pode ser expresso assim: os contrários se encontram, olham-se mutuamente, refletem-se um no outro, conhecem e compreendem um ao outro. (Cf. BAKHTIN, 1996: 153)

A coroação e o posterior destronamento dos reis bufões é outra expressão da ambivalência dos festejos carnavalescos: na primeira, já está contida a idéia do segundo. Coroa-se o antípoda do verdadeiro rei, ou seja, o escravo ou o bobo, inaugurando-se o mundo às avessas. No destronamento, o coroado é despojado de suas vestes reais, da coroa e de outros símbolos do poder, e é surrado e ridicularizado. Os símbolos carnavalescos sempre incorporam a perspectiva de negação (morte) ou o contrário. O nascimento é prenhe de morte; a morte, de um novo nascimento. (Cf. BAKHTIN, 1996: 107)

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... mas uma espécie de objeto às avessas, de objeto denegrido, uma inversão carnavalesca. A negação remaneja a imagem do objeto denegrido, muda principalmente sua situação no espaço, tanto do objeto inteiro como de suas partes; transporta-o inteiro para os infernos, põe o baixo no lugar do alto, ou o traseiro no lugar do dianteiro, deforma as proporções espaciais do objeto, exagerando desmesurada-mente um único de seus elementos em detrimento dos outros etc. (BAKHTIN, 1996: 360)

Assim como a forma de negação cronotópica acima referida, a cultura apropria-se de uma outra forma de negação: a da construção da imagem positiva por meio da negação de certos aspectos do objeto. O exemplo apontado por Bakhtin a respeito da substituição da negação pela afirmação é o da abadia de Télema, construída por Rabelais, como uma antítese do mosteiro: o que é interdito naquele, é autorizado, até mesmo exigido, em Télema. (Cf. BAKHTIN, 1996: 362)

O que podemos depreender dos apontamentos de Bakhtin que trazemos em diálogo com Bystrina é que a inversão configura uma solução cultural, uma liberação das amarras da primeira realidade, um extravasamento de determinados formatos rígidos presentes na sociedade, um meio que o homem utiliza para resolver, ou afastar, seus medos, modificando sua percepção a respeito deles e, assim, passando a melhor conviver com eles.

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cotidiana, como, por exemplo, quando quer transmitir nas notícias um tipo de mensagem em detrimento de outro tipo.

Solucionar uma questão é concluí-la, encerrá-la - ao menos naquele momento e para o seu produtor -, podendo esta solução ser favorável ou não, de acordo com as percepções individuais e suas implicações para os envolvidos. No caso das análises desta dissertação, acreditamos que a imprensa utiliza-se dos padrões de inversão presentes na cultura, “carnavalizando” a notícia e liberando-se, assim, das regras vigentes de organização social. Será que não é possível ver, com Bakhtin (1996), nos exemplos de coroação/destronamento, de negação ou de escárnio, algumas práticas da imprensa, que aniquila o velho e coloca em seu lugar o novo, na ânsia de buscar elementos da matéria-prima da notícia, como a novidade, a surpresa, o inusitado, a fim de bem seduzir seu público?

No jornalismo, se a inversão é uma solução para o meio, contrariamente - podemos dizer até, em uma espécie de inversão da própria inversão -, para o receptor, esta mesma solução pode transformar-se em um problema.

1.3 O estabelecimento de novos sentidos

Para tratar mais detidamente das várias formas de inversão que se encontram presentes em matérias jornalísticas, lançamos mão da classificação efetuada pelo jornalista e sociólogo Perseu Abramo (2003)5 e por ele denominada de “padrões de manipulação”.

5 Abramo nasceu na capital paulista em 1929. Célebre jornalista e sociólogo,

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Por tratar-se a manipulação de uma categoria de recepção, o que não é o caminho desta pesquisa, que quer tão somente discutir a produção jornalística, e ainda por tratar-se de um conceito que suscita discussões quanto a seu caráter ultrapassado, por pressupor poder ilimitado aos meios de comunicação e nenhuma resistência por parte dos receptores, não discutiremos este modelo teórico6. Concedemo-nos licença para utilizar as categorias de Abramo, já que a entendemos como de pleno acordo com nosso interesse e argumentação - já introdutoriamente apresentados -, independentemente da terminologia utilizada.

Embora esse autor diferencie nominalmente os padrões, podemos objetar, tentando demonstrar nesta dissertação que os procedimentos por ele apresentados - fatos apresentados de maneira fragmentada, com seus aspectos descontextualizados ou ordenados de forma inversa quanto a sua relevância e seu significado; uma versão particular tomando o lugar do acontecimento; uma opinião, introduzida no meio da matéria, aparecendo travestida de informação; a ocultação de determinado aspecto do fato como forma de ressaltar um aspecto contrário do mesmo fato etc. - caracterizam-se todos como modalidades de inversão, já que constituem soluções

função de sua participação na greve dos jornalistas. No magistério superior, atuou, entre outros, na Cásper Libero, Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Nas áreas política, sindical e social, sua participação foi muito ativa, podendo ser citados como alguns, entre tantos exemplos de atuação, as campanhas pela anistia e contra a ditadura militar e a fundação do Partido dos Trabalhadores (PT). Morreu em 6 de março de 1996.

6 Ao apresentar um quadro comparativo dos modelos teóricos para o estudo das

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culturais encontradas pela imprensa e que, ao distorcerem os acontecimentos, acabam por estabelecer novos sentidos a eles.

Antes, porém, da apresentação dos padrões específicos, trazemos os estudos do sociólogo francês Pierre Bourdieu, que podem nos ajudar a esclarecer alguns fatores que desencadeiam a incidência dos procedimentos apontados por Abramo.

Bourdieu (1997: 101)7 analisa a ascendência dos mecanismos inerentes ao campo jornalístico, que cada vez mais atende a exigências do mercado - leitores e anunciantes -, sobre os jornalistas em primeiro lugar e, a seguir, em parte por meio deles, sobre os diferentes campos de produção cultural, campo jurídico, campo literário, campo artístico e campo científico.

... atualmente todos os campos de produção cultural estão sujeitos às limitações estruturais do campo jornalístico, e não deste ou daquele jornalista, deste ou daquele diretor de emissora, eles próprios vencidos pelas forças do campo. E essas limitações exercem efeitos sistemáticos muito equivalentes em todos os campos. O campo jornalístico age, enquanto campo, sobre os outros campos. Em outras palavras, um campo, ele próprio cada vez mais dominado pela lógica comercial, impõe cada vez mais suas limitações aos outros universos. Através da pressão do índice de audiência, o peso da economia se exerce sobre a televisão, e, através do peso da televisão sobre o jornalismo, ele se exerce sobre os outros jornais... (BOURDIEU, 1997: 81)

7 Apesar de ser intitulada Sobre a televisão, a obra em referência não restringe sua

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Para o autor, a apreensão dos mecanismos explicativos das práticas jornalísticas passa justamente pela compreensão do mundo do jornalismo como um microcosmo que tem leis próprias e que é definido por sua posição no mundo global e pelas atrações e repulsões que sofre da parte dos outros microcosmos. Assim, destacar a autonomia do campo jornalístico, que possui suas próprias leis, equivale a dizer que apenas os fatores externos - como os econômicos - não são suficientes para explicar o que ocorre neste campo (Cf. BOURDIEU, 1997: 55). Há, portanto, mais elementos envolvidos; há toda uma estrutura interna invisível que o sociólogo consegue desvelar.

Os efeitos que o campo jornalístico e, por meio dele, a lógica do mercado impõem aos outros campos de produção cultural têm ligação com a distribuição dos diferentes jornais e jornalistas, de acordo com sua autonomia em relação às forças do mercado dos leitores e do mercado dos anunciantes.

Segundo Bourdieu, para se medir o grau de autonomia de um órgão de difusão, por exemplo, deve-se considerar a parcela de suas receitas advindas da publicidade e da ajuda do Estado, seja como publicidade ou como subvenção, e o grau de concentração dos anunciantes.

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Segundo o autor, para que possa ser compreendido como o campo jornalístico contribui para reforçar, no seio de todos os campos, o pólo comercial, ou seja, com produtores mais sensíveis às seduções dos poderes econômicos e políticos, em detrimento do pólo puro, isto é, autônomo em relação às pressões comerciais, com produtores mais aplicados em defender os princípios e os valores da profissão, é necessário “perceber que ele se organiza segundo uma estrutura homóloga à dos outros campos e que nele o peso do ‘comercial’ é muito maior”. (BOURDIEU, 1997: 104)

A constituição do campo jornalístico como tal, explica o sociólogo, deu-se, no século XIX, em torno da oposição entre os jornais que continham notícias sensacionalistas e os jornais que, com análises e comentários, buscavam distinguir-se daqueles por meio da afirmação de valores de objetividade. Assim, o campo jornalístico abriga a oposição entre duas lógicas e dois princípios de legitimação, ou seja, de um lado, o reconhecimento pelos pares, outorgado aos que privilegiam os valores e princípios internos; e, de outro lado, o reconhecimento da maior parte das pessoas, expresso pelo sucesso de vendas e pelos lucros financeiros obtidos.

Como o campo literário ou o campo artístico, o campo jornalístico é então o lugar de uma lógica específica, propriamente cultural, que se impõe aos jornalistas através das restrições e dos controles cruzados que eles impõem uns aos outros e cujo respeito (por vezes designado como deontologia) funda as reputações de honorabilidade profissional. (BOURDIEU, 1997: 105)

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aqueles com posições hierarquicamente superiores, que, segundo Bourdieu, são mais propensos a adotar critérios mais comerciais na produção, como os de notícias curtas, simples e que vendem melhor; e outra frente em que se situam aqueles que, mais jovens e menos estabelecidos, tendem a opor os princípios e valores da profissão às exigências dos primeiros. Julgamos necessário destacar aqui, mais uma vez, nossa consideração apresentada na Introdução da presente pesquisa acerca dos profissionais que, independentemente de sua posição hierárquica, resistem como e o quanto podem às imposições estruturais do campo jornalístico.

Por ser a lógica da concorrência o mais importante dos mecanismos do campo jornalístico, o anseio pelo maior número de clientes, especialmente nos veículos mais próximos do pólo comercial, faz com que a busca incessante das notícias mais novas, o chamado “furo” jornalístico, torne-se prioridade absoluta. Com isso, os profissionais são levados, muitas vezes, a produzir uma “representação instantaneísta e descontinuísta do mundo”. Em ressonância com o conceito de padrão de fragmentação que veremos com Abramo, os fatos são apresentados pelos jornalistas sem as devidas conexões com seus antecedentes e conseqüentes.

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Ainda pela lógica da concorrência, as atividades dos outros veículos de comunicação e seus jornalistas são alvo de especial atenção, seja para tirar proveito dos fracassos alheios, para aprender com os erros dos outros a fim de evitá-los ou para contrapor-se aos sucessos dos concorrentes.

Aqui, também podemos pensar nos padrões que veremos com Abramo, especialmente os de ocultação e de inversão. Além de serem informados por fontes diversificadas, os jornalistas pautam-se pelos concorrentes, ou seja, a decisão sobre o que deve ou não ser transmitido ao público advém, em grande parte, dos informantes. Isto é, a lógica da concorrência também determina os fatos que serão incluídos no noticiário, bem como de que forma e em que ordem, e aqueles que serão excluídos. “E isso leva a uma espécie de nivelamento, de homogeneização das hierarquias de importância.” (BOURDIEU, 1997: 36)

1.4 Os fundamentos dos padrões apontados por Abramo

Explicitados, mesmo que sucintamente, os mecanismos estruturais do campo jornalístico - os quais também, mas não somente, envolvem interesses econômicos e políticos -, retomamos as reflexões de Abramo, cientes de que a incidência dos padrões apontados pelo autor nas matérias jornalísticas pode explicar-se em grande parte por estes “mecanismos invisíveis que orientam ações e pensamentos” (BOURDIEU, 1997: 132), por interesses específicos dos veículos de comunicação e dos jornalistas ou por uma conjugação desses fatores.

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imprensa. Deles, quatro são válidos para a imprensa em geral e um é ligado especificamente ao jornalismo de televisão e rádio. São eles: ocultação, fragmentação, inversão, indução e, por fim, global ou específico do jornalismo de televisão e rádio. Embora tratem-se de reflexões desenvolvidas em época distinta da atual, em termos políticos, sociais e econômicos, a presente pesquisa mostra, com a exemplificação de casos, que o pensamento de Abramo pode ser aplicável hoje em dia tanto quanto o era naquela época, posição que se ratifica pelas reflexões mais recentes de Bourdieu e pela própria decisão editorial de publicação da obra após 15 anos do ensaio escrito pelo autor - e que também é expressa em seu prefácio intitulado “A atualidade dos estudos do jornalista e professor Perseu Abramo”. Vamos à apresentação dos padrões.8

1.4.1 Padrão de ocultação

Este padrão diz respeito à opção do veículo de comunicação em noticiar ou não noticiar determinado acontecimento, decisão esta que, naturalmente, não se dá de maneira aleatória.

Há uma concepção geral entre os profissionais da comunicação - empresários ou empregados - sobre a existência de fatos jornalísticos e não jornalísticos e é a partir dela que freqüentemente é tomada a decisão. Abramo critica esta concepção, destacando que:

8 Neste capítulo, tratamos dos padrões apenas teoricamente, ficando a

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Ora, o mundo real não se divide em fatos jornalísticos e não-jornalísticos, pela primária razão de que as características jornalísticas, quaisquer que elas sejam, não residem no objeto da observação, e sim no sujeito observador e na relação que este estabelece com aquele. O ‘jornalístico’ não é uma característica intrínseca do real em si, mas da relação que o jornalista, ou melhor, o órgão de jornalismo, a imprensa, decide estabelecer com a realidade. (...) toda a realidade pode ser jornalística, e o que vai tornar jornalístico um fato independe das suas características reais intrínsecas, mas depende, sim, das características do órgão de imprensa, de sua visão de mundo, de sua linha editorial ... (ABRAMO, 2003: 26)

A considerar a crítica do autor, haveria, então, uma opção militante do veículo de comunicação, de acordo com sua linha editorial e seus interesses, opção esta que determinaria a presença parcial ou camuflada pela diagramação ou a ausência total do acontecimento na edição.

Com esta decisão, o leitor é, naturalmente, o maior prejudicado, pois a ele é negado o direito de conhecer o fato pela imprensa.

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principais de cada região, e abrangendo 667 veículos, dos quais 309 emissoras de TV e 358 outros veículos, como emissoras de rádio e jornais.9

Naturalmente, essa concentração pode favorecer o monopólio da informação por parte daqueles que controlam a imprensa, assim decidindo o que é ou não noticiado. Podemos, aqui, falar em inversão, já que o compromisso do jornalismo deve ser primeiramente com a defesa dos interesses da sociedade e não com os interesses políticos ou econômicos dos empresários de comunicação. Se um acontecimento é deliberadamente alijado da edição para atender aos interesses do veículo de comunicação, está-se, assim, procedendo a uma mudança na ordem de prioridades.

Por outro lado, se a alegação para a ocultação é a falta de espaço na edição, também pode, em alguns casos, configurar-se em uma sutil inversão de pauta: alguns acontecimentos que, por sua relevância para a sociedade, deveriam estar no alto da lista de matérias prioritárias, vão para o final e, “somente por absoluta falta de espaço”, acabam por ser cortados. É cômodo para a direção e os editores, e todos ficam com suas consciências tranqüilas.

1.4.2 Padrão de fragmentação

Após a decisão sobre o que será descartado, resta noticiar o que passou pelo crivo do veículo de comunicação. Esta apresentação ao leitor, em grande número de vezes não será, porém, em sua totalidade, mas particularizada, caracterizando um posicionamento pobre diante de um acontecimento muitas vezes complexo.

Na elaboração da notícia, são ignoradas as conexões com os antecedentes e conseqüentes do acontecimento, o contexto em que ele foi

9 Uma síntese da pesquisa pode ser encontrada no artigo “Quem são os donos”,

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gerado e sua dinâmica, implicando, então, segundo o autor, duas operações básicas: a seleção de aspectos/particularidades e a descontextualização.

De forma similar ao que ocorre no padrão de ocultação, a seleção de aspectos tem a função de determinar o que será ou não permitido dar a conhecer ao leitor, de acordo com o projeto editorial adotado pelo veículo de comunicação. Como alerta Abramo:

Novamente, os critérios para essa seleção não residem necessariamente na natureza ou nas características do fato decomposto, mas sim nas decisões, na linha, no projeto do órgão de imprensa, que são transmitidos, impostos ou adotados pelos jornalistas desse órgão. (ABRAMO, 2003: 28)

Fruto da seleção de aspectos, a descontextualização é evidente. Se algo é apresentado isoladamente e apenas em parte, a apreensão de significados fica prejudicada por não haver elementos suficientes para que o leitor possa fazer as necessárias relações, a fim de bem estruturar sua compreensão de mundo. O acontecimento passa, então, a não ter significado aparente ou adquire novo significado, que pode ser não somente diferente, como também antagônico ao original, o que nos remete aos conceitos de criação da segunda realidade apontados por Bystrina. Vejamos o que diz Abramo:

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O jornalista Leão Serva (2001: 59)10 também aborda a questão da fragmentação nas notícias, mecanismo que impede o estabelecimento de relações, apontando-a como um dos limites do jornalismo.

Ao ressaltar que o jornalismo tem como matéria-prima o fato novo, desconhecido, que pode causar surpresa, o autor assevera que, diante disso, para não excluir esta surpresa do leitor, os jornais “deixam de buscar em primeiro lugar uma compreensão genuína dos acontecimentos”.

É como dizer: se os leitores entenderem a notícia, seus antecedentes, seu contexto e sua repercussão, não vão se surpreender com ela, não vão dar valor ao noticiário. E quem sabe no dia seguinte não “renovarão a eleição” do veículo, entendida pelo ato de compra repetido diariamente. (SERVA NETO, 2001: 59-60)

Valendo-nos do conceito de Complexidade, que tem em Morin seu maior expoente, podemos afirmar que a fragmentação das idéias ou das informações é exatamente o inverso a tudo que se situa em termos daquele conceito.

10 Em ressonância com o que discutimos nesta pesquisa, Leão Serva, em seu livro

Jornalismo e desinformação, aponta algumas razões que determinam lacunas de

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A complexidade, que, no sentido original do termo, significa “o que foi tecido junto”, pressupõe o rompimento com o isolamento dos objetos, ou seja, a pertinência de todo o conhecimento está no estabelecimento de relações com o contexto em que esses objetos se inserem. Por exemplo, uma pessoa que se limita somente ao seu grupo possui um imaginário restrito e, assim, deixa de conviver com a cultura. É preciso abrir-se às mudanças, observando claramente o mundo das coisas e as instituições em que se vive, abandonando velhas idéias pré-concebidas e conceitos que dividem o mundo dicotomicamente. É a busca de uma nova percepção de mundo por meio da ótica da complexidade.

Morin (2002: 12) destaca dois bons e cotidianos exemplos da importância do pensamento complexo, para que as pessoas possam, de fato, obter um conhecimento mais efetivo a respeito dos objetos.

O primeiro deles lembra-nos da necessidade de busca dos antecedentes, das origens dos fatos, a fim de rejuntar as informações ao contexto ao qual elas pertencem. Morin destaca que, quando pela primeira vez ouviu-se falar sobre a guerra da Bósnia, a palavra Sarajevo não possuía significado algum para quem a escutava. Posteriormente, inclusive com a ajuda dos meios de comunicação, a sociedade começou a situar a cidade geográfica, política e culturalmente. Para melhor conhecimento ainda, é necessário saber sobre o passado dos Bálcãs, a ocupação turca, a Primeira Guerra Mundial - que começou com um atentado em Sarajevo -, a Segunda Guerra Mundial, o comunismo iugoslavo do marechal Tito, a crise desse comunismo etc.

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Morin destaca que por se tratar de uma ciência quantitativa, a Economia elimina de sua visão o que se refere à vida, às paixões, aos sofrimentos e aos gozos humanos, dimensões estas que também se fazem presentes na vida econômica. E exemplifica com a situação de uma jovem que, ao comprar um creme de beleza, pratica um ato econômico que está relacionado a seu desejo de agradar e seduzir. Desta forma, Morin ressalta que em todo ato econômico os seres humanos colocam suas necessidades e aspirações.

Para encontrar instrumentos do conhecimento que possam, de fato, permitir o enfrentamento da complexidade, Morin desenvolveu um trabalho denominado O método, publicado em quatro volumes. Esses instrumentos têm como proposta religar o que está separado e, dessa forma, enraizar uma nova estrutura de pensamento. Trazemos, a seguir, um pequeno resumo dos instrumentos - que, embora não tenham sido inventados pelo sociólogo, foram por ele desenvolvidos e reagrupados -, pois julgamos importante para o tema de nossa dissertação a apresentação e o conhecimento de caminhos que possam levar à superação das fragmentações e inversões, caminhos que permitam o estabelecimento de ligações, e, assim, conduzam ao conhecimento complexo, hoje abandonado pelos meios de comunicação social, que privilegiam as simplificações e os banais determinismos.

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Um todo organizado produz qualidades e propriedades que não existem nas partes tomadas isoladamente (...) Portanto, é necessário ter um pensamento que possa conceber o sistema e a organização, pois tudo o que conhecemos é constituído da organização de elementos diferentes ... (MORIN, 2002: 13)

A circularidade, idéia formulada por Norbert Wiener, constitui o segundo instrumento. Referindo-se ao caráter retroativo do sistema, a circularidade opõe-se à idéia linear de que toda a causa tem um efeito e em seu lugar pressupõe uma causalidade circular, em que o próprio efeito volta à causa. O exemplo apresentado por Morin é o do termostato em um local com aquecimento central. Primeiro, a obtenção da temperatura desejada (causa) leva ao desligamento do termostato (efeito); e posteriormente, quando o local volta a esfriar, o termostato (efeito) é ligado, reaquecendo (causa) o local.11

O terceiro instrumento é o da circularidade autoprodutiva. Os exemplos passam pela reprodução humana, na qual todos somos produtos e produtores; e também pela constituição da sociedade, que é produzida pela interação entre os indivíduos, mas também ela mesma, com sua cultura e linguagem, retroage sobre os indivíduos.

Morin denomina o quarto instrumento como hologramático, em uma referência à idéia de que não somente a parte está dentro do todo, mas o todo está no interior das partes. Ele destaca, por exemplo, que os indivíduos estão dentro da sociedade, mas a sociedade está presente nos indivíduos

11 Aqui, destacamos entender o processo comunicativo como probabilístico,

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desde seu nascimento, já que estes recebem daquela as proibições, as normas, a linguagem etc.

O dialógico é o quinto operador desenvolvido por Morin, que assevera que, para que alguns fenômenos complexos possam ser compreendidos, é necessário juntar duas noções que são ao mesmo tempo antagônicas e complementares, como, por exemplo, vida e morte. Para se manter vivo, o organismo humano lança mão da morte de células e moléculas degradadas. Também as sociedades vivem da morte de seus indivíduos, já que, lembra-nos Morin, a cultura é transmitida às novas gerações e assim se regenera. Desta forma, o sentido do operador dialógico é o de que a própria vida integra seu maior oposto, a morte.

Por fim, Morin aborda o princípio de integração do observador à sua observação e do conhecedor ao seu conhecimento. O profissional sociólogo, por exemplo, é a parte do todo social, que, por sua vez, também está dentro dele. Para que possa realizar um efetivo trabalho diante do conjunto da sociedade, ele deve, então, fazer uma auto-análise com o objetivo de situar-se e perceber que não possui inicialmente o verdadeiro conhecimento, mas, sim, um conhecimento relativo. Os antropólogos ocidentais do início do século 20, e suas descobertas acerca da riqueza de conhecimento das populações arcaicas em contraposição à postura deles mesmos, que se consideravam os donos da razão e do conhecimento objetivo, também são citados por Morin. Vejamos:

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de novas condições históricas, (...) houve uma mudança no ponto de vista dos antropólogos, que descobriram que havia riquezas de conhecimento nas populações arcaicas, que havia conhecimento de plantas e remédios (...) É preciso notar que toda a cultura, que poderia ser considerada por nós arcaica e primitiva, contém, nela própria, uma mistura de sabedoria, de verdades profundas, de conhecimentos, e de erros e superstições. Mas nossa sociedade também tem os mesmos elementos de conhecimento, de verdade, de erros e superstições. Freqüentemente o que chamamos de razão é algo profundamente irracional. (MORIN, 2002: 17)

Indo ao encontro de como a Semiótica da Cultura trabalha com os objetos, ou seja, a partir da transdisciplinaridade, Morin destaca a necessidade de que rompamos com o paradigma da disjunção que comanda a história do mundo e do pensamento ocidental e que separa o espírito da matéria, a filosofia da ciência, o conhecimento particular que vem da música ou da literatura do conhecimento advindo da pesquisa científica, o sujeito do conhecimento do objeto do conhecimento.

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Com esses instrumentos, Morin desafia-nos a compreender e empreender as mudanças necessárias em nossa forma de conhecer e interagir com os objetos à nossa volta.12

Se a imprensa distancia-se da complexidade, utilizando com freqüência, deliberadamente ou não, mecanismos que impedem que as tão necessárias ligações sejam feitas pela sociedade, aprendermos a reconhecer tais estratégias e darmos forma a uma nova estrutura de pensamento pode ser um bom começo para mudanças rumo ao desalojamento de idéias pré-concebidas e enraizadas.

1.4.3 Padrão de inversão

Retomando a classificação de Abramo, após fragmentar o acon-tecimento em seus aspectos particulares e descontextualizados, é hora de reordenar as partes, trocar seus lugares e ordem de importância, prosseguindo, assim, com a construção do real midiático.

Apresentamos, a seguir, o que Abramo aponta como as principais formas do padrão de inversão:

12 No livro Os sete saberes necessários à educação, Morin (2000) apresenta os

conceitos homônimos que julga imprescindíveis para a reorganização da educação diante dos problemas do sistema. São eles: as cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão, os princípios do conhecimento pertinente, ensinar a condição humana, ensinar a identidade terrena, enfrentar as incertezas, ensinar a compreensão, a ética do gênero humano.

Do mesmo modo, dialogando com Paulo Freire (1996: 25) em A pedagogia da

autonomia, é preciso lembrar que “quem forma se forma e re-forma ao formar e

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1.4.3.1 Inversão da relevância dos aspectos

Nos textos, o secundário é apresentado como principal; o particular, como geral; o acessório e supérfluo, como importante e decisivo etc.

Podemos falar aqui, em nosso entendimento, de uma inversão do centro com o periférico, o que pode confundir o leitor e desviar sua atenção. A repetição constante de uma “ilusão” faz com que ela acabe virando “realidade”, assim como o deslocamento também favorece a tática, ou seja, de acordo com o local em que se coloca a informação, ela pode transformar-se em “realidade”.

1.4.3.2 Inversão entre forma e conteúdo

O texto passa a ser mais importante do que o acontecimento; o ficcional e o espetaculoso se sobrepõem à realidade; a palavra ou a frase entram no lugar da informação. Com relação à diagramação, o espaço destinado à matéria predomina sobre o que seria de fato necessário para assegurar a clareza da informação.

1.4.3.3 Inversão entre versão e fato

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freqüente e contundente sustentação da versão apresentada, mesmo quando outros fatores a contradizem.

Muitas vezes, [o órgão de imprensa] prefere engendar versões e explicações opiniáticas cada vez mais complicadas e nebulosas a render-se à evidência dos fatos. Tudo se passa como se o órgão de imprensa agisse sob o domínio de um princípio que dissesse: se o fato não corresponde à minha versão, deve haver algo errado com o fato. (ABRAMO, 2003: 29)

Caracterizam extremos deste padrão, por exemplo, a utilização exacerbada do que Abramo denomina de frasismo e oficialismo.

No frasismo, trechos de frases ou até mesmo uma frase inteira são utilizados de maneira descontextualizada ou fragmentária, como se representassem o fato em sua totalidade. A seção de “frases”, presente em grande parte dos veículos da imprensa escrita, é um exemplo de como o artifício é por eles abusivamente utilizado, isentando-os de dar a conhecer apenas uma versão; afinal, ela foi “apresentada” não pelo veículo, mas por terceiros. Com a utilização da fala dos envolvidos nos acontecimentos, o veículo pretende produzir uma nítida sensação de que aquela versão, ancorada pelos testemunhos, é a única e, é claro, a “real”.

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1.4.3.4 Inversão entre opinião e informação

Este padrão ocorre quando o juízo de valor é utilizado como se fosse juízo de realidade. O que interessa para o veículo de comunicação é transmitir sua teoria sobre o assunto e não o que ocorreu; não há distinção clara entre o que é editorial e o que é informação.

Destacamos, aqui, o fato evidentemente saudável de que os veículos de massa também expressem suas posições e opiniões, mas nos lugares destinados a isso, como, por exemplo, os editoriais. E não nas matérias jornalísticas, que devem primar pela isenção - afirmação esta que fazemos mesmo correndo o risco de ratificarmos uma posição ingênua a respeito da prática jornalística.

Com a coexistência, na mesma edição, de matérias informativas e matérias opinativas, devidamente caracterizadas e identificadas, seria dada ao leitor a oportunidade de formar sua própria opinião, a partir dos dados apresentados, o que infelizmente não ocorre. Vejamos o que destaca Abramo:

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1.4.4 Padrão de indução

Corresponde ao resultado das sistemáticas e constantes vezes em que o leitor é submetido aos outros padrões e, com isso, submetido também às tentativas de fazê-lo ver, compreender e consumir uma realidade que foi artificialmente criada, ou seja, a realidade midiática.

... o leitor é induzido a ver o mundo não como ele é, mas sim como querem que ele o veja. O padrão de indução é, assim, o resultado e ao mesmo tempo o impulso final da articulação combinada de outros padrões de manipulação dos vários órgãos de comunicação com os quais ele tem contato. (ABRAMO, 2003: 33)

1.4.5 Padrão global ou específico do jornalismo de televisão e rádio

Tomando como referência o jornalismo de televisão, o padrão global - termo utilizado pelo autor com o sentido de total, completo, ou seja, do problema à sua solução - divide-se em três momentos básicos:

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2) No momento da “sociedade fala”, as imagens e os sons privilegiam as particularidades dos envolvidos no fato, apresentando seus testemunhos, suas dores, alegrias, críticas, queixas e propostas.

3) O momento da “autoridade resolve” conclui o padrão. É o instante em que são anunciadas pelas autoridades - o presidente da República, o policial, o papa etc. - as providências, ou seja, as soluções adotadas ou prestes a serem adotadas em relação ao ocorrido. Com isso, destaca Abramo, a autoridade “tranqüiliza o povo, desestimula qualquer ação autônoma e independente do povo, mantém a autoridade e a ordem, submete o povo ao controle dela, autoridade”.

Abramo ressalta ainda que, com freqüência, há um “epílogo” que se segue ao momento da “autoridade resolve”, no qual a emissora, por meio do apresentador, reforça o papel resolutório, tranqüilizador e alienante da autoridade ou a substitui, quando julga que a mensagem transmitida não tenha sido suficientemente eficaz para controlar a opinião pública.

Apresentados todos os padrões, cuja presença, repetimos, é variável quanto à sua incidência nos veículos de comunicação, fica um pouco mais fácil perceber que o leitor que tem tolhido seu direito à informação precisa, clara e coesa - por meio da ausência de determinados assuntos, fragmentação e inversão de outros etc. - pode ser induzido a enxergar o mundo com olhos que não são os seus.

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CAPÍTULO 2

O cotidiano da mediação invertida

“... De fato, a questão, onde termina a realidade e onde começa a aparência está colocada de forma errada: isto porque rádio, imagem televisiva e o consumo de fantasmas são em si realidades sociais de tal massividade, que podem aceitar a luta com as outras demais realidades atuais, afirmando que elas mesmo determinam ‘o que é real’, ‘o que de fato se passou’. A frase de Karl Krauss, com a qual ele acreditou fustigar um escândalo: ‘No início havia a imprensa, depois apareceu o mundo’, já se tornou inofensiva. Pois agora se trata do seguinte: ‘No começo havia as transmissões mediáticas. Para elas o mundo acontece’...”

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2.1 Distorções abrigadas

Após tudo o que tentamos explicitar até aqui, poderia até parecer simples e fácil para o leitor detectar a presença das diversas formas de inversão no noticiário. Infelizmente, porém, não o é. Via de regra, os procedimentos são muito bem disfarçados e de difícil detecção, em particular se considerarmos que, conforme nos alerta Bourdieu (1997: 34) ao falar sobre a concorrência entre os veículos de comunicação, muitas das diferenças produzidas por eles são “absolutamente imperceptíveis para o espectador médio, que ele só poderia perceber se visse a um só tempo várias emissoras”. Este é um desafio de nossa pesquisa, isto é, conseguir colaborar para que a práxis jornalística seja ao menos parcialmente desnudada, limpando a maquiagem - quem sabe, possamos dizer, carnavalesca - que dá colorido aos textos e os torna atraentes.

Por compreendermos a inversão como uma prática que pode perpassar todo o fazer jornalístico, as matérias analisadas neste segundo capítulo são utilizadas apenas como exemplos que permitem explicitar aspectos de um procedimento presente em maior ou menor grau no conjunto da imprensa, assim como Abramo o entende quando se refere à totalidade do que denomina de padrões de manipulação, aí incluída a inversão.

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Nosso recorte de análise contempla três temas freqüentemente presentes - muitas vezes, de forma polêmica - na imprensa: reforma agrária e sem-terra, marketing pessoal de personalidades e disputa eleitoral. É necessário destacar que, naturalmente, não temos a pretensão de explorar qualquer um dos assuntos em sua totalidade, esgotando a questão, mas tão somente de analisar a forma como os temas são tratados especificamente nas matérias aqui apresentadas.

Optamos por começar nossa análise com o texto sobre a reforma agrária e os sem-terra, já que é um bom exemplo para demonstrar como é possível abrigar as mais variadas formas de inversão em uma única matéria. Nos demais casos, que têm análise mais breve, destacamos apenas os aspectos que julgamos mais relevantes, o que não implica na inexistência, nestes textos, de outras formas de inversão não apontadas ou até mesmo na impossibilidade de que o mesmo exemplo se encaixe nas várias formas de inversão que perpassam umas às outras.

2.1.1 Os sem-terra existem?

A manchete da edição n.º 18 da revista Primeira Leitura (ago. 2003) é “Os sem-terra não existem”.13 Além da crença da revista na afirmação, como revela o texto da matéria à qual se refere, percebemos a inversão, aqui, principalmente como utilizada para despertar a atenção do leitor ao contradizer o senso comum: a existência de pessoas que não possuem terras no Brasil. A associação feita com a publicação, também na capa, da foto de João Pedro Stedile torna a contradição ainda maior, pois o Movimento dos

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Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que surgiu em 1984 e é por ele hoje liderado, é de grande visibilidade no país, tendo suas ações como tema de inúmeras matérias jornalísticas, independentemente de concordar-se ou não com sua atuação. Parece-nos um recurso de marketing, algo feito para ajudar a captar a atenção do leitor e, por conseguinte, vender a revista.

Abaixo da manchete está a chamada principal da capa:

Stedile é o líder de uma causa tão influente quanto inexistente. A agricultura brasileira é um sucesso, e o país tem de dar resposta aos sem-emprego e sem-renda. Isso, sim, define um governo progressista. O resto é desgoverno e leniência com o crime. (OS SEM-TERRA não existem, ago. 2003: capa)

Assim como na manchete, o que prevalece na chamada é a opinião da revista sobre os sem-terra, seu movimento e sua importância, bem como a opinião sobre o governo federal e como deveria ele agir, o que permite afirmar que há uma inversão entre opinião e informação, conforme a entende Abramo (2003: 31-2). O que chama o leitor para a matéria interna não é o fato: um acontecimento novo, uma mudança conjuntural ou estrutural no país, o acesso da revista a algum material ou depoimento exclusivo, a publicação de uma pesquisa - ainda que todos esses elementos constem da reportagem interna.

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revista utiliza mais uma vez a memória do leitor sobre Luiz Inácio Lula da Silva, que se elegeu em 2002 com a proposta de fazer um governo progressista, para cobrar deste as ações que considera pertinentes.

Por ser tema da principal matéria da revista, a questão dos sem-terra é abordada no editorial intitulado “Sem-terra com história” (AZEVEDO, ago. 2003: 9). O texto, que se refere também a matérias de edições anteriores sobre o assunto14, utiliza insistentemente o conceito de “verdade” para defender a opinião da revista, travestida em fato que, segundo ela, é evidenciado por uma “impecável reportagem” publicada na edição:

... a reforma agrária no país é coisa do passado; os números estão todos inflados pela luta política e pela peroração ideológica: a verdadeira revolução de que o Brasil precisa é a do crescimento econômico, e os sem-terra, em verdade, são sem-emprego e sem-renda. Eis aí o desafio de um país verdadeiramente progressista. (AZEVEDO, ago. 2003: 9. Grifos nossos.)

De acordo com a “verdade” defendida pela revista, a revolução pregada pelo movimento sem-terra é falsa, já que o país precisa não de uma reforma agrária, mas de crescimento econômico, ali subentendido que os dois termos são opostos e incompatíveis. A questão dos sem-terra também é falsa no entendimento da revista, pois ao contrário do emprego e da renda, que devem ser garantidos pelo governo, a propriedade da terra não é um direito de todos e, portanto, sua falta não representa um problema verdadeiro. Em conseqüência, a luta pela terra não é verdadeiramente

14 O texto, que também está reproduzido no Anexo 1 desta dissertação, refere-se a

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progressista. Por isso, a reforma agrária é coisa do passado, que serve apenas à luta político-ideológica.

O mesmo teor é encontrado no título interno da matéria: “A perigosa fantasia regressiva dos sem-terra” (NOGUEIRA, ago. 2003: 22), com destaque para a utilização do termo “fantasia” como oposto de realidade e dos termos “perigosa” e “regressiva” para firmar a noção de que a reforma agrária é coisa do passado e que sua defesa no presente representa perigo à nação. Também segue esta diretriz a abertura da matéria:

A dura e crua verdade é que o Brasil tem hoje alguns milhões de sem-emprego e sem renda. Não há mais reforma agrária a fazer. O país precisa agora é optar pela revolução do crescimento. (NOGUEIRA, ago. 2003: 22)

O padrão de ocultação - resultado da decisão da revista sobre o que é e o que não é considerado acontecimento jornalístico - é verificado na total ausência, na matéria, de elementos que reflitam o ponto de vista dos sem-terra, o que implica em distorção, já que este mecanismo impede eventuais contraposições ao que é apresentado.

Conforme o próprio texto, os líderes do MST se recusaram a conceder entrevista.

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os sem-terra estão apagados. Convidados a debater esses temas, os líderes do MST mandaram a assessoria de imprensa dizer à Primeira Leitura, por meio do escritório em Brasília, que estavam “viajando e não localizáveis”. (NOGUEIRA, ago. 2003: 31)

A impossibilidade de entrevistar lideranças do MST não justifica, entretanto, a supressão de qualquer referência à história da luta pela terra no país e à trajetória do MST. Também consiste em ocultação da voz dos sem-terra a ausência de entrevistas, por exemplo, com a base do movimento, como membros de acampamentos ou assentamentos.

Quanto às formas de fragmentação presentes no texto, a descontextualização aparece não apenas na falta de referências à trajetória do MST, mas também na transformação, criada pela revista, do problema da terra em uma briga entre o Ministério da Agricultura - encabeçado pelo “moderno ruralista Roberto Rodrigues, que apoiou José Serra (PSDB) [nas eleições presidenciais de 2002]” - e o Desenvolvimento Agrário -, dirigido por Miguel Rosseto, “aliado incondicional do MST”. (NOGUEIRA, ago. 2003: 23)

Referências

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