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Painel do desafio da leitura silenciosa

A cada trimestre é contabilizado o total de estrelas acumuladas por turma, e a que obteve mais estrelas em cada turno recebe alguma premiação.

Para Marcela essa atividade não visa o silêncio por si só, mas a tentativa de exercitar a concentração das crianças num momento mais íntimo com o livro. Obviamente o silêncio absoluto quase nunca se alcança, mas na opinião de Marcela esse exercício tem sido muito interessante e desafiador para ela e para os alunos (DIÁRIO DE CAMPO, 17 DE SETEMBRO DE 2014).

Além do objetivo de estimular nas crianças a concentração num momento de leitura silenciosa, percebi que Marcela também recorre a essa atividade como que se fosse uma “carta na manga”, ou seja, sempre que ela deseja que a turma se tranquilize um pouco mais ou quando a atividade que ela havia pensado termina antes do tempo planejado, ela lança o desafio da leitura silenciosa.

O interessante é que inicialmente poderíamos pensar que essa atividade seria encarada pelas crianças como nada agradável, pois elas precisam fazer silêncio e ler partes de um livro. No entanto, creio que, pelo fato de serem desafiadas a ficar em silêncio, todas as vezes que essa atividade foi proposta ao longo dos dias que estivemos na escola, as crianças comemoravam e ser esforçavam ao máximo para concluí-la e receber a estrela. Além disso, por várias vezes, os próprios alunos pediam que o desafio fosse feito, antes mesmo de Marcela propô-lo.

Observando e analisando essa situação por diversas vezes, recordamo-nos de Certeau (1994). Mas uma vez me remeti ao conceito certeauniano de táticas, pois provavelmente não estava planejado por Marcela fazer o desafio da leitura silenciosa naquele momento, mas ela lançou mão de uma atividade chave de seu repertório para garantir o envolvimento das crianças enquanto se aguardava o soar do sinal de saída. O silêncio que muitas vezes é ordenado equivocadamente aos gritos pelas pessoas para se destacarem sobre o barulho, é conquistado por Marcela com um desafio lançado às crianças (DIÁRIO DE CAMPO, 17 DE SETEMBRO DE 2014).

Em 4 de novembro, uma turma do 3.º ano matutino estava sem professora e ficou sob a responsabilidade de duas estagiárias. Por volta de 10h, como era o horário agendado para essa turma ir à biblioteca, Marcela a recebeu. Como antes dessa turma foi feita a atividade do ensaio da música para ser apresentada no Sarau Geográfico, Marcela aproveitou novamente o equipamento montado para fazer uma sessão de músicas com esses alunos.

Ao entrarem na biblioteca, os alunos chegaram agitados e uma das estagiárias imediatamente repreendeu os alunos dizendo: “Aqui é uma biblioteca, lugar de silêncio!” Mas contraditoriamente não haveria silêncio ali, e sim muita música e ritmos.

Ao recuperarmos a etimologia da palavra biblioteca, observamos que seu significado é o seguinte: biblion - théke¸ ou seja, compartimento de guarda. Em razão dessa atribuição original, ainda hoje se reforça a perspectiva de que esta seja um lugar de aprisionamento, passividade, de tristeza e onde se deve imperar a cultura do silenciamento. Nóbrega (2011, p. 127-128) procura, em oposição a esse paradigma de petrificação da memória, discutir ações que transformem a biblioteca escolar em territórios de produção de sentidos, vida, mudança e movimentos e compara a biblioteca a uma cristaleira

[...] onde tudo pode ser visto, escolhido, tocado, usado, pois a cristaleira se diferencia de um baú, uma caixa fechada a sete chaves. Tal qual a cristaleira que atrai recordações - lembranças representadas, por exemplo pela última xícara do jogo de porcelana da avó, ou a vela enfeitada com laço de fita de cetim com a qual se dançou a valsa dos 15 anos -, nossas bibliotecas precisam ser também lugares [diríamos espaços] de convívio, que permitam a troca, a interlocução; onde a ambiência convide e, não, empurre o leitor para fora, para o nunca mais (NÓBREGA, 2011, p. 128).

A sedimentação da cultura do silêncio nas bibliotecas escolares ao nosso olhar afasta os seus usuários desse espaço, tendo em vista as barreiras que, em muitos casos, ainda são erguidas em razão de uma cultura passada, que já se transformou, mas que ainda vem sendo reproduzida nos dias atuais, conforme pudemos observar no posicionamento de alguns professores e estagiários da EMEF ABL, contrapondo-se às práticas de Marcela.

4.3.4 Os usos da música na biblioteca escolar

A musicalidade é uma das principais marcas das atividades realizadas no dia a dia da biblioteca da EMEF ABL. Já na entrevista inicial desta pesquisa, Marcela nos relatou que, desde o seu primeiro trabalho como bibliotecária escolar, ela utiliza suas habilidades musicais para o incentivo à leitura com seus alunos.

Em nossos diálogos, Marcela relata que muitos dos alunos que estão no 9.º ano e estão prestes a sair da escola frequentaram a biblioteca e participaram das atividades que ela vem promovendo por meio da musicalidade. Ou seja, por mais que os alunos do 6.º ao 9.º ano não sejam mais contemplados sistematicamente com as atividades que Marcela realiza, anteriormente eles tiveram a oportunidade de vivenciá-las na primeira etapa do ensino fundamental e trazem consigo as impressões construídas naquela etapa.

Entre os vários ritmos utilizados por Marcela, o hip-hop feito com base em poemas e contos é o que mais se destaca e atrai a atenção dos alunos, por se tratar provavelmente de um estilo musical bem presente no dia a dia dos alunos, inclusive fora da escola.

Diante disso, pudemos perceber, em várias oportunidades, que realmente esses alunos dos anos finais sempre que vão à biblioteca se recordam da atividade com o hip-hop. Em 24 de setembro, a turma do 8.º ano vespertino foi à biblioteca para realizar uma atividade com crônicas promovida pela Professora D, e, não envolvidos na dinâmica proposta, ficaram de certa forma ociosos. No decorrer da atividade, percebemos que esse grupo de alunos cantava sussurrando o hip-hop produzido por Marcela com base no poema “O Beco da Lua”, do escritor Humberto Borém. O texto do poema estava fixado numa das janelas da biblioteca, num velho papel cenário, e, enquanto a professora não percebia a desatenção dos alunos, eles se divertiam cantando.

Nessa oportunidade veio uma vontade quase que incontrolável de estimular ou de participar da burla dos alunos, potencializando a memória que se ativou naquela hora em função de um certo “ócio” e do velho cartaz colado na parede da biblioteca (DIÁRIO DE PESQUISA, 24 DE SETEMBRO).

A apropriação da música como uma atividade característica da biblioteca é bem clara quando convivemos no espaço da EMEF ABL e observamos que, a todo o tempo, ela surge por iniciativa dos alunos, e não somente mediados pela bibliotecária. Segundo Moraes, Valadares e Amorim (2013, p. 33), a musicalidade é inerente às nossas características, pois

O ritmo humano faz-se presente em sua produção artística, sendo claramente perceptível na música e na poesia. Enquanto na música e na canção ele pode ser detectado de modo claro nas combinações de sons e pausas, na poesia sua percepção requer do leitor uma atenção que o leva a comportar-se ao mesmo tempo como leitor e ouvinte em razão do caráter oral [...].

Em 25 de outubro, logo depois de ter concluído um ensaio com os alunos do 6.º ano para apresentação de uma música no Sarau Geográfico, chegou à biblioteca a turma do 3.º ano, que estava agendada previamente para aquele horário. Como o teclado estava sendo utilizado para o ensaio, Marcela lançou mão da tática de realizar um momento de canto com esses alunos.

Dirigindo-se ao flipchart onde está a maioria das músicas que ela utiliza, Marcela canta com os meninos algumas músicas, como Jardim da Fantasia, A Casa, músicas de Paulinho Pedra Azul, Vinícius de Moraes e várias outras que têm sua letra registrada no flipchart da biblioteca. A participação e a alegria das crianças naquele momento de descontração e aprendizado são claras e fluem de maneira descontraída.

Ao término das músicas, a atividade foi encerrada, pois já era horário da saída, mas os alunos reclamaram:

Poxa tia, estava tão legal! A outra aula é tão chata!

(ALUNOS DO 3.º ANO MATUTINO)

Além dessas situações que apresentamos, um fato interessante que tem acontecido em razão da nossa pesquisa é o reconhecimento por parte da própria Marcela dessas manifestações dos alunos, não como um gesto de indisciplina, mas de criação e reflexo do trabalho desenvolvido por ela.

Em 11 de novembro, não estava programada nossa ida à escola para realização da pesquisa, mas, no meio da manhã, fomos surpreendidos com uma mensagem do aplicativo WhatsApp enviada por Marcela, conforme demonstramos na Foto 14.