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PARTE 1 – PÁRODO

2.3 O que uma liderança faz?

2.3.1 Papéis

O trecho acima não é uma exceção. O relatório apresenta os balanços formais que qualquer relatório de gestão financeira realiza, mas acrescenta na maior parte de seu corpo esta série de práticas que foram levantadas em reuniões, não poupando em nada a

própria diretoria da Foirn.41 Tratar-se-ia, no jargão antropológico, de um “diário no sentido estrito do termo”. Este é um exemplo que abre uma perspectiva para um agenciamento dos procedimentos burocráticos transversais ou reversos àqueles que nos são comuns. Poder-se-ia argumentar que isto é similar a um auto processual, mas é preciso notar que a finalidade desses papéis não é estabelecer um julgamento que resulta em processo punitivo. Antes disso, têm muito mais a ver com uma série de procedimentos que imbricam as relações políticas no sistema altorionegrino através da memória, as formas como as lideranças se estabelecem no jogo político da Foirn e das associações, e, finalmente, com o modo como o papel e as reuniões que ele registra converteu a prática burocrática em um instrumento “positivado” nos agenciamentos políticos dos índios da região.

Note-se, contudo, que os papéis são tão variados quanto as ocasiões. Não se trata de pensar que os papéis no alto rio Negro seguem uma espécie de “obsessão memorialista”, muito pelo contrário. Por exemplo, veja-se essa narrativa desana:

Para nós, que somos os irmãos maiores do homem branco, Yebá-gõâmi deu o poder da memória, a faculdade de guardar tudo na memória, os cantos, as danças, as cerimônias, as rezas para curar as doenças... Nós guardamos tudo isso na nossa memória! Nosso saber não está nos livros! Mas ao branco, que foi o último a sair da Canoa-de-Transformação, ele deu o poder da escrita, com os livros. Assim, Yebá-

gõãmi havia dito!

Que modo mais eficaz para obter os benefícios do mundo dos brancos que incorporar a escrita na faculdade dessa super-memória indígena... Como se o papel tivesse sido englobado pela memória e não o contrário. Segundo S. Hugh-Jones, os mitos de origem dos brancos “tornam claro que o conhecimento e o poder dos brancos são concebidos como uma transformação e concentração dos poderes e conhecimentos xamânicos pelos quais a sociedade indígena foi criada e que asseguram a sua reprodução hoje” (1988, p. 150). Em diversas ocasiões, ouve-se que os líderes têm verdadeiros depósitos de papéis. Além deles, é

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A Comissão Fiscal é composta por três integrantes: o presidente (que também é diretor da Foirn); e outros dois membros. Essa é uma instância fiscalizadora e sua atuação é, geralmente, acompanhada por assessores e/ou auditores externos. Além disso, colocar no papel o que “não dá certo” parece ser uma prática comum da burocracia de ONGs, que são obrigadas a se submeter a auto-avaliações e avaliações externas, que foi incorporada pela Foirn. Esse tipo de avaliação tem se prestado para atualizar uma prática muito apreciada no alto rio Negro: criticar diretores da Foirn, que muitas vezes são vistos como pessoas que só querem saber do seu salário e de viajar para fora da região.

notório que nas reuniões há várias pessoas anotando e filmando a mesma cena. Por vezes essas anotações, repetidas, se transformam nas atas, em princípio idênticas ao que está anotado. Por que, deste modo, tantos papéis são produzidos e arquivados?

Uma hipótese bastante plausível, baseada no fato de que os papéis no alto rio Negro não perdem sua agência, vem colada no suposto de que seus registros funcionam como “propriedade do grupo”, em um sentido semelhante àquele que se tomam as narrativas míticas que são trabalhadas e reinventadas a todo o momento na região (Hugh-Jones, 2012; Andrello, 2010). Diferentes pessoas precisam guardar as suas versões das anotações precisamente porque seu poder narrativo é próprio, e está contido no artefato. Além de ser uma questão de propriedade, ou um bem, assim como no caso a maloca é de “um dono”, o papel pode ser tomado como um agente transformador, daí sua importância crucial em um contexto político complexo, com muitos grupos no jogo. Ter o papel, em alguma medida, pode significar ter o poder de efetivamente mudar um jogo, mas sem necessariamente sabê-lo ao certo. Nesse caso, ele funciona como a memória dos antepassados, e assim como há clãs que se especializaram em ser “bibliotecas” dessas memórias, há lideranças e pessoas estrategicamente posicionadas para acionarem a papelada, caso necessário.

Isso explica, por exemplo, porque numa reunião ordinária pode haver até cinco ou mais pessoas registrando por escrito as falas (para redação posterior da ata), mesmo sabendo que ao mesmo tempo tudo está sendo registrado em vídeo e áudio. Ou seja, não dá para pensar que o papel aqui tenha a característica de registro de uma verdade unificada. Cada registro, ainda que “igual” em seu conteúdo, pode ser tomado como um artefato independente, que será conectado a uma agência parcial e a uma rede de agentes em tensão. Assim me foi dito que existe essa característica mais ou menos geral de se guardar cópias e mais cópias dos papéis referentes às reuniões, bem como de exibir com certo orgulho os papéis com um número de CNPJ, uma conta em banco, uma razão social registrada em cartório, cuja importância reside também no papel, e não só no fato enunciado por ele.

No entanto, não é possível ignorar o fato de que associações civis de modo geral não prescindem de atas de assembleias, que devem ser registradas em cartórios e

arquivadas de modo que possam comprovar que tais instituições cumpriram seus próprios estatutos. Após uma assembleia eletiva, por exemplo, é a ata que, uma vez registrada, é apresentada ao banco para que o novo presidente e o novo tesoureiro possam passar a assinar cheques. Isso para lembrar que, ainda que as associações e os líderes valorizem notoriamente o formalismo burocrático, isso se justifica, em parte, pela percepção de que para os brancos os papeis parecem ter (e têm, efetivamente) poder.

Esta leitura que estou propondo de certa maneira está em contínuo com aquilo que foi notado por Andrello (2010) a respeito dos livros que foram produzidos a partir das narrativas míticas de diversos personagens do alto rio Negro. Ele argumenta a respeito do valor que esses objetos-livros adquirem entre os índios de lá:

índice material e repositório de conhecimento, os livros de mitologia parecem, portanto, objetos particularmente adaptados ao processo de fabricação xamânica da pessoa, no qual a distinção entre corpo e alma é essencialmente borrada. O livro é corpo, pessoa, ou uma parte destacável da pessoa; materialmente visível, é inequivocamente investido de sua essência metafísica, de seu nome” (p. 17).

Assim, ainda segundo ele, os livros de mitos dos índios do rio Negro são “objetos plenamente aptos a serem subsumidos em um conceito Tukano utilizado tanto para a riqueza cerimonial como para as mercadorias dos brancos: ahpeka, termo composto por ahpe, ‘outro’, e ká, ‘coisas’” (p. 18). Os livros, enquanto “coisas outras” se encaixam, portanto, nesse grupo de artefatos que engloba tanto as especializações artesanais dos diferentes grupos (o ralador Baniwa, o banco Tukano, a canoa tuyuka, etc.) quanto as mercadorias, o dinheiro e os papéis dos brancos. Nesse caso, talvez possamos imaginar que os papeis, de uma maneira geral, teriam essa capacidade de serem extensões de uma política da memória, e, portanto, possuem agência com os diferentes grupos.

Evidentemente, não é todo e qualquer papel que merece esse tratamento. Outro, talvez o mais importante e inicial na relação entre indígenas e o mundo dos papéis, é o dinheiro. Andrello lembra que “houve um tempo em que o dinheiro dos brancos era chamado de “papéra”, papel, instrumento por meio do qual eles exerciam seu poder sobre as coisas” (2006, p. 253). Mas, desde os primeiros contatos entre índios e brancos na região, outros

papéis, que não apenas o dinheiro, eram tidos como possuidores de algum poder especial. Tanto que se usava a expressão kumua-papéra (xamã do papel) para aqueles que tinham a capacidade de escrever cartas, ofícios ou projetos. Capacidade que hoje, bem demonstrado está, não é mais exclusividade dos brancos. Mas, o que a expressão kumua-papéra efetua é um paralelo entre os poderes dos brancos e as capacidades xamânicas dos kumua, enfatizando que uma das fontes de poder dos brancos é justamente seus papéis. Como afirma novamente Andrello, “se os xamãs indígenas sopram palavras, os brancos colocam-nas no papel” (2006). Os indígenas logo perceberam o poder e a eficácia dos papéis. Assim, obter dinheiro ou mercadoria dependeu sempre de algum trabalho e, logo deu-se conta que obtê-los em maiores quantidades e em uma gama maior de variedades dependida da aquisição de novas capacidades, aquelas que eram controladas pelos brancos.

Fato é que estas práticas, momentos e pessoas – os papéis, as reuniões e os líderes – estão em relação, e merecem um tratamento, digamos, “estrutural”. Aliás, para dizer melhor, de uma estrutura que é transformação, porém, como nos termos de Sahlins (1990), de algo que já estava lá: a “estrutura performativa”. Ou ainda, recorrendo a um instrumento conceitual do qual já lançamos mão nessa tese para pensar, por exemplo, os novos usos da maloca, papeis, reuniões, eleições e outros instrumentos “burocráticos” adentram no mundo indígena de um modo complexo, transformado e transformando. Penso aqui com a noção de “transformação de uma transformação”, de Peter Gow (2001). Esses instrumentos “externos”, por assim dizer, não passam por uma simples incorporação. Eles são transformados e ganham novos sentidos e significados, difíceis de mensurar, evidentemente. Assim, se o líder do movimento indígena pode ser pensado como uma espécie de transformação composta por características tanto da chefia tradicional quanto dos “chefes” brancos (sejam eles políticos ou burocráticos), o papel pode ser lido como uma transformação da memória narrada (indígena) e dos papeis dos brancos (documentos, livros, dinheiro, etc.), e a reunião, por sua vez, pode ser tomada também como espaço desdobrado de algo, como veremos.