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PARTE 1 – PÁRODO

2.2 O que faz de uma pessoa uma liderança?

Esses sete líderes aqui apresentados perfizeram trajetórias particulares e estão hoje em posições diversas em relação ao movimento indígena. Mas, há pontos comuns nessas trajetórias que gostaríamos de ressaltar. O primeiro deles é o estudo. A entrada de muitos líderes no movimento indígena é justificada e impulsionada pela capacidade de ler, escrever e lidar com diferentes instrumentos da burocracia que envolve e da qual depende o movimento. Para muitos desses líderes a primeira “saída”, portanto, que posteriormente possibilitou a “entrada” no movimento, foi a saída de suas comunidades de origem para localidades onde havia colégio. Dentre os sete casos aqui apresentados, a exceção à mínima formação até o Ensino Médio é Bráz. Todos os outros cursaram até o Ensino Médio, e, em sua maioria, em colégios internos em distritos de São Gabriel ou em Manaus. Concluídos os estudos quase todos voltaram para suas comunidades e começaram a se envolver no movimento indígena em associações de base.

No entanto, é preciso ter em mente que a escolaridade também entrou na hierarquia já existente no alto rio Negro, de diferentes modos. A ordem (hierárquica) de nascimento dos filhos tendeu a ser um dos critérios de escolha de quais filhos de uma família iriam para escola: em alguns casos optou-se que os filhos mais velhos estudassem, o que tendeu a reforçar a hierarquia em seus termos tradicionais; em outros, quando os mais novos é que estudavam, alguma transformação na hierarquia (tradicional) podia ocorrer. O fato é que, na medida em que a escolaridade passa a ser um critério para a entrada no movimento indígena, ela passa a ter efeitos também sobre as estruturas e dinâmicas tradicionalmente operantes no mundo indígena até então. André remete sua entrada e de seu irmão no

movimento indígena ao fato de saberem ler e escrever, que fazia com que sempre fossem chamados para escrever a programação de muitas reuniões. Além disso, como na “escola haviam estudado associativismo” acabavam falando nas reuniões para “ajudar a esclarecer”. Segundo ele, aconteceu que “os novinhos foram treinando os mais velhos”. Ele está falando da perspectiva Baniwa de como aconteceu o movimento indígena e de como se deu e se dá, nesse espaço, a relação entre os jovens e os mais velhos.

Outro ponto em comum é que em algum momento de suas trajetórias foram indicados por suas associações de base a concorrerem a cargos eletivos na Foirn. Todos são taxativos em afirmar que assumir essas indicações está para além de uma vontade individual, fazendo parte sempre de um projeto comunitário, associativo e coletivo. Bráz, por exemplo, fala que teve que “emprestar seu nome para ser sacrificado em nome do movimento”. Outra característica notável é que em geral esses líderes apresentam a capacidade híbrida de lidar com escrita, documentação e burocracia, ao mesmo tempo em que têm uma fala hábil, capacidade discursiva e de atuar como linha de transmissão entre a opinião dos mais velhos e a interface burocrática do movimento. Nesse sentido, nenhum deles acenou um movimento de possível rompimento com elementos considerados “tradicionais”, por assim dizer. Antes, é possível falar em torção e retransmissão de qualidades tradicionais, que agora engancham e reverberam em instituições senão exatamente brancas, pelo menos híbridas. Interessante que na trajetória de Max a “discussão”, e não o domínio da escrita, se coloca como elemento central para entrada no movimento indígena. De todo jeito, é preciso notar que nunca houve a total minimização da “palavra” do chefe. Os discursos, aparentemente, sempre tiveram bastante efeito no movimento indígena. Porém, não se trata aqui daquele discurso vazio da chefia clastreana (2003). Além disso, surge aqui novamente uma reflexão sobre o “nome”, mas em outro sentido, travestida de representação na expressão “falar em nome da comunidade”.

Conforme avançarmos na compreensão do modo de funcionamento da Federação e do movimento indígena no alto rio Negro aprofundaremos nessa questão da indicação, da “construção de nomes” e dos próprios líderes. Por ora, guardemos a ideia de que

entrar no movimento significa sair de sua comunidade de origem, um deslocamento que, geralmente, envolve a família e que é revestido por um discurso em prol da coletividade, de uma comunidade que permanecerá, portanto, cada vez mais distante (geográfica e sociologicamente). Entrar no movimento significa, em certa medida, afastar-se de um modo de viver tradicional, da comunidade, pois se passa a ter menos tempo para fazer roça ou pescar (embora vários líderes não abandonem completamente essas atividades). Isso não significa, porém, abandonar diversos outros princípios norteadores do que se costuma chamar sistema rionegrino, como, por exemplo, a etnia e suas marcações hierárquicas e tradicionais, por vezes, também transformadas e agenciadas de novos modos.

Em continuidade com esse movimento de saída das comunidades está o crescente envolvimento indígena nas chamadas instituições de branco, sobretudo as estatais (para além do próprio movimento indígena, que é realizado, em certa medida, segundo um modelo de instituição de branco). E, aqui, também ocorrem novas transformações e agenciamentos, para além de reinvenções, apropriações e englobamentos. Além disso, vimos que há casos em que as saídas dos líderes de suas comunidades não foram exatamente individuais. Diversos foram os relatos de comunidades que se desfizeram com o deslocamento de grupos ou clãs inteiros.

Recentemente tem se fortalecido uma prática citada por Bráz que é a realização de cursos de liderança. Eles parecem se enquadrar naquela ideia apontada acima por André (e também por seu irmão Bonifácio, no capítulo anterior) de que a liderança se deslocou da tradição para a educação, quase como uma passagem do oral para o escrito, o que tem implicações históricas e antropológicas: esse é um movimento que classicamente foi tomado como uma das condições necessárias (embora não suficientes) para o aparecimento de burocracias (Suméria, Egito, Maias, etc.). Essa também é uma discussão que resvala, como foi notado acima, em Clastres (2003), o qual embora diga algo sobre sociedades “sem história, sem escrita e sem estado” (e usa isso para construir a noção de “contra-o-estado”), não deixa de ser irônico ao optar por permanecer no registro arqueológico que liga esses três termos, colocando-os em um conjunto, mesmo que para confrontá-los. O fato é que também não

podemos estar seguros se “história e escrita” (no singular, entenda-se) são efeitos de Estado (particularmente, tendo mais para essa hipótese), ou se o Estado é uma decorrência possível do manuseio dessas técnicas e práticas.

Além disso, sabemos que, no caso dos cursos de formação de liderança e principalmente na história do movimento nunca se efetivam versões finais. Neste ponto, inclusive, fico pensando o quanto esta própria etnografia não gera a expectativa de se constituir como mais uma dessas versões da história, aquela que talvez, em termos malinowskianos, reconstituiria alguma pretensa totalidade, ao ligar num único material posições dissonantes. Evidentemente tudo indica que haverá um desapontamento se esse for o caso, pois na melhor das hipóteses essa é apenas mais uma das versões.

Notamos também que nas autobiografias por mim coletadas tanto Pedro quanto André assumem o pertencimento a clãs de guerreiros. Não está em questão aqui averiguar o pertencimento ou não de ambos a um clã de guerreiros, pois a própria noção de pertencimento a uma linhagem ou a um clã que ocupa determinada função/posição não é algo de fácil definição. De início, as etnografias que começaram com Goldman (1963), e se estenderam principalmente pelas de Jackson (1983 [1972]) e Christine Hugh-Jones (1979), tinham vários dissensos sobre as unidades sociais dessa suposta “área cultural” do noroeste amazônico. Um dos pontos diz respeito justamente ao fato de se observar “clãs especializados”, conceito mais ou menos consensual, mas que, no entanto, apresenta divergências em seu conteúdo. Isso se deve basicamente ao fato de que dependendo da área em que se pesquisa, e, principalmente, com quem, as versões variam. De maneira geral, há uma aceitação de que a própria revisão que C. Hugh-Jones faz recobre cinco possibilidades lógicas dentro do universo social altorionegrino. Seriam elas, em ordem hierárquica descendente, chefes, dançarinos/cantadores, guerreiros, xamãs e servos. No entanto, é preciso notar que esses “papéis” atuam em “domínios” específicos: chefes e servos no “político-econômico”, cantadores e xamãs no “metafísico”, guerreiros no “externo” (1979, p. 56). Contudo, é verdade que dependendo de onde se está, possivelmente se verá versões parciais dessa rede. E, é notável, se tomarmos as etnografias desse primeiro período mais “clássico” da região

(Goldman (1963); Jackson (1983[1972]); C. e S. Hugh-Jones (ambos 1979); Chernela, 1982; Arhem, 1981), que é pouca a descrição sobre clãs ou sibs “guerreiros”. Nesse sentido, inclusive, C. Hugh-Jones nota que a guerra tem poucos rastros empíricos, tendo permanecido talvez mais em um plano ideal. No entanto, ela ocupa um lugar não tão secundário nas narrativas míticas; e, aparentemente, tem também uma história a ser considerada, como sugerem as evidências associadas à chamada de Guerra de Boupés (cf. Neves, 2012).

Nesse sentido, há que se considerar seriamente a possibilidade de permutação dessa atividade-fim dos guerreiros (tanto dos que assumem o pertencimento a um clã guerreiro quanto dos que descrevem o trabalho de liderança indígena como uma espécie de guerra) para a prática da “política dos (com) brancos”, dado que estes são colocados como um dos extremos da afinidade em várias versões do mito de origem Tukano, inclusive aquela que associa os brancos aos wa’î masa – gente-peixe, inimigo (mas inimigo-parente) por excelência da humanidade (cf. Lasmar, 2005; Andrello, 2006). Contudo, como disse anteriormente, é preciso muita cautela ao assumir uma permuta como essa. Sobretudo porque não acredito que se trata da substituição de uma situação de “sociedade-para-a-guerra” por uma “sociedade-para-o-estado”, comprando a versão de que o Estado seria um instrumento de pacificação, etc. Pelo que vimos nas biografias dos líderes, haveria certa compatibilidade na visão nativa entre a guerra e a política, para dizer o mínimo. Por isso, é preciso atentar ao fato de que no rio Negro as coisas nunca são tão simples assim (aliás, não só lá), e possivelmente vejamos conexões entre outros clãs, particularmente de xamãs, ocupando posições de destaque no universo político.

Esta posição dos guerreiros foi também observada por Luiza Garnelo (2002), que argumenta que eles teriam se tornado agentes políticos, a serviço, sempre, dos chefes tradicionais:

Se outrora os jovens guerreiros serviam às chefias mais velhas que os enviavam para os “raids” de guerra, mantendo a si próprios como coordenadores/mentores da ação guerreira, hoje líderes de Organização Indígena, professores e Agentes de Saúde, também se colocam a serviço das chefias mais velhas numa guerra de papel e caneta travada no violente aparato institucional de dominação, um espaço externo às relações de parentesco onde predominam relações de reciprocidade negativa, que

eles buscam inverter ou amenizar através de estratégias de tipo simbólico. (Garnelo, 2002, p. 209)

Garnelo considera que no espaço das relações interétnicas, que inclui a relação com os brancos, a atuação das lideranças pode ser pensada como espécie de atualização das relações guerreiras com uma alteridade perigosa e potencialmente destrutiva. Nesse sentido, a autora sublinha que uma das características mais valorizadas na atuação das lideranças é a “coragem de enfrentar os brancos”, por exemplo. Se nessa “nova guerra” não há raptos e roubos de caixas de enfeites cerimoniais, pode-se elucubrar que esses saberes dos brancos são vistos como uma riqueza a ser incorporada pelo mundo indígena.

A alusão ao movimento indígena enquanto uma forma atualizada de guerra e ao líder como guerreiro fazer pensar em Clastres, para quem a guerra é o dispositivo com que uma sociedade primitiva mantém sua autonomia, sua diferença em relação às outras que estão a sua volta; ao mesmo tempo em que é também um mecanismo de conjuração do Estado, que impede a emergência do poder acima de todos aqueles que são a própria sociedade (Clastres, 2003). O que sugere algumas reflexões sobre a leitura que se faz, atualmente, sobre o pertencimento ou não a um clã guerreiro, ou, sobre o que seja e quais os espaços onde se faz uma guerra atualizada (por assim dizer). Além de quem são os inimigos. Penso que uma reflexão cuidadosa sobre a ideia de guerra e de guerreiro poderá ser parte da explicação das fragilidades da suposta aliança estabelecida entre Pedro e André, na prefeitura, e voltaremos a isso mais tarde.

De todo modo, um termo bastante utilizado pelos líderes para se referirem a suas atividades é a luta. E é nesse sentido que muitas vezes os líderes políticos do movimento indígena se reconhecem como guerreiros (tudo bem que essa também é uma acepção do movimento sindical em geral; mas, no caso, creio que a tradução para o português que se fez no rio Negro segue mais o sentido que a liga à guerra). Na condição de guerreiros, muitos deles desenvolvem outra das atividades recorrentes dos líderes: viagens. Nas narrativas acima e em outras não mencionadas aqui viagens são recorrentes, tanto dentro da área indígena quanto para fora dele, até mesmo para fora do Brasil. Líderes viajam para conhecer a região,

para participar de assembleia e reuniões, para estudar em outras cidades, para representar suas comunidades ou associações em diferentes contextos, até mesmo fora do Brasil. Essas viagens quase sempre promovem espaços de negociação com outras autoridades, geralmente brancas e, a partir dessas negociações os líderes têm a prerrogativa de organizar parte do tempo e da vida social de uma comunidade, pelo menos no que diz respeito aos calendários de reuniões, assembleias e dos projetos nos quais uma comunidade se envolve. Esse é o aspecto que confere certa continuidade entre o que fazia um líder tradicional, penso aqui nos chefes de maloca, e este novo tipo de líder – político – surgido com o movimento indígena. Ambos têm como tarefa a organização do tempo e do espaço daqueles que o seguem, por assim dizer.

Nesse sentido, não deixa de ser interessante pensar como esses novos agentes políticos entrariam naquele esquema tradicional de papeis especializados proposto por C. Hugh-Jones (1979). A autora define o grupo exogâmico composto como agrupamentos de clãs organizados hierarquicamente de acordo com a sequência de nascimento de um grupo de irmãos de uma mesma anaconda. Os limites deste grupo quase sempre coincidem com limites linguísticos (o que significa, dentre outras coisas que, na grande maioria dos matrimônios no Uaupés os pais dos esposos são falantes de línguas diferentes), embora a adoção de línguas francas – como o tukano e o português – além de outras sutilezas como casamentos “fora do script” possam por muitas vezes borrar uma fórmula certeira para a identidade linguística. Este grupo exogâmico composto é dividido em cinco grupos de papeis especializados, também organizados hierarquicamente, cada um dos quais é conferido a um clã individual: chefe, dançarino/cantor, guerreiro, xamã, servo. A própria autora adverte, no entanto, que este modelo é totalmente ideal.

Nesse esquema os líderes do movimento indígena tanto se veriam como chefes quanto como guerreiros, por conta de três características fundamentais: i) em alguma medida, a vida atualmente nas comunidades passou a ser organizada em função do calendário das associações, do movimento indígena e dos projetos, ou, de outro modo, esses elementos

entraram de modo mais ou menos cotidiano no calendário das comunidades38; ii) novamente, na comparação com os antigos chefes, os líderes são aqueles que iniciam algo – uma associação, um projeto, uma reunião, uma assembleia, um documento. No mundo ameríndio, uma das prerrogativas do chefe é justamente começar algo. Dialogando com Clastres, Beatriz Perrone-Moisés (2011, p. 875) argumenta que o “chefe é aquele que inicia um movimento, movimento este que simultaneamente constitui o grupo e o constitui como chefe. (...) Na América do Sul, chefe é frequentemente aquele que abre uma roça, funda uma aldeia. Chefe é quem começa algo.” No alto rio Negro, por exemplo, cumpria aos chefes de outros tempos articularem a comunidade para a construção de novas malocas; iii) por fim, na comparação com a função de guerreiro, é este novo tipo de líder quem dialoga, e trava disputas, com o mundo externo, ou, com outros mundos (e aqui, haveria também um pouco de xamã no chefe, dado que ele viaja por outros mundos); nesse sentido, podem também conquistar alguma coisa que “já devia ser dos índios”.