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Friedmann (1978) se dedicou a pesquisar e entender o porquê da agricultura familiar prosseguir existindo enquanto categoria social, apesar da literatura marxista ortodoxa prognosticar o seu desaparecimento conforme o avanço do desenvolvimento capitalista. Friedmann (1978) utiliza um conceito de Produção Simples de Mercadorias (PSM), já exposto por Marx para delinear as diferenças da agricultura com os demais setores capitalistas de produção.

A agricultura, mesmo estando em uma realidade capitalista, conserva um traço distinto, que é a não divisão entre a gestão e o trabalho, não se apresentam de forma distintas e antagônicas; os meios de produção não estão na posse daqueles que não os utilizam.

A principal diferença entre a Produção Simples de Mercadorias e a Produção Mercantil Capitalista é que a PSM propõe a reprodução da essência familiar, enquanto a produção capitalista busca acumulação de capital e lucro. O principal objetivo da agricultura é garantir a continuidade da família na atividade. A essa concepção se integra a ideia de laços de sangue, onde é baseada a unidade de produção, e também de ciclo de vida, buscadas em Chayanov (1974).

Por apresentar estas especificidades, a produção familiar apresentaria um benefício competitivo sobre a produção capitalista direcionada para o lucro (FRIEDMANN, 1978). É importante lembrar que a PSM é localizada em ambientes onde há um organizado sistema capitalista mercantil, e onde se localiza unidades de produção moderna, com a utilização de tecnologias. É justamente nesse ambiente que se confere a capacidade das unidades familiares de produzirem alimentos a baixo custo, devido a não remuneração da força de trabalho explorada na atividade.

A vantagem competitiva baseia-se tanto em elementos sociais como técnicos. Friedmann (1978, p.582) analisa que, sob condições de disponibilidade de terra e crédito, as unidades de produção simples de mercadorias oferecem uma vantagem competitiva: “Sob tais circunstâncias, a ausência do lucro e da flexibilidade de consumo pessoal deram as famílias uma vantagem competitiva” (tradução nossa). Essa prerrogativa vem da flexibilidade do consumo apresentada pela família produtora, da inexistência da busca pelo lucro e, por decorrência, da renda das unidades, que também é altamente ajustável à circunstância.

Para Friedmann (1978), os resultados das intervenções do Estado, através das políticas de expansão e de comercialização da atividade agrícola, irão determinar as

vantagens competitivas pelas condições locais. Deste modo, comprova-se que em condições de agricultura familiar mercantilizada, inserida nas esferas do capitalismo, o Estado adquire fundamental importância para a reprodução das unidades de Produção Simples de Mercadorias.

Para a mesma autora, alguns elementos são importantes para compreender qual o método que permite a persistência em ambientes capitalistas das unidades de produção familiar. O Estado desempenha um papel fundamental, através de suas políticas, principalmente de crédito e de regulação dos mercados. Contudo, diferentes autores enraízam a discussão, à medida que procuram entender qual é o objetivo do Estado em oferecer essas políticas e porque interessa fazer com que essa agricultura permaneça.

Abramovay (1992) corrobora com esse tema, e trata mais especificamente dos interesses do Estado em agenciar e garantir a continuidade da agricultura familiar. O autor afirma a importância atual da agricultura familiar, e sua categoria particular no ambiente econômico capitalista contemporâneo: “[...] é em torno do estabelecimento familiar que se estrutura socialmente a agricultura nos países capitalistas avançados.” (ABRAMOVAY, 1992, p. 210).

Admitindo como referência empírica a realidade dos países capitalistas desenvolvidos, o autor sustenta que se tem origem um setor com um amplo número de pequenas unidades familiares, mas que possuem uma articulação proveniente tanto de suas organizações profissionais quanto do controle do Estado.

O Estado previdenciário agrícola não consiste apenas na contemplação dos problemas sociais ligados ao desenvolvimento agrícola. Além da administração do êxodo rural, das políticas de ocupação do território e da formação profissional, o Estado acaba por responder pela própria formação da renda do setor (ABRAMOVAY, 1992, p. 210).

Existe uma suplementaridade entre os papéis exercidos pelo Estado e a agricultura familiar. À medida que a agricultura produz alimentos com custo baixo, permite a diminuição dos gastos com a reprodução da força de trabalho indispensável à continuidade do próprio capitalismo, exerce uma função estratégica nos países capitalistas.

Veiga (1991), explica pelo mecanismo do treadmill, esta capacidade da agricultura familiar de gerar alimentos a baixo custo. Logo que as novas tecnologias forem sendo incorporada a produção, e que essas tecnologias forem de uso comum dos agricultores, o aumento de renda proporcionado pela tecnologia vai diminuindo, até

tornar-se equivalente à renda antes do uso da inovação. Com esse procedimento, os valores dos produtos agrícolas seriam pressionados para baixo, já que resultado da utilização de novas tecnologias proporciona uma elevação na produção. Cabe lembrar que neste ponto que o Estado age em benefício da agricultura familiar, conservando um patamar mínimo de preços para os produtos agrícolas.

Os argumentos de Veiga (1991) são utilizados por Abramovay (1992), como nessa passagem:

[...] a agricultura tem um papel decisivo no processo de rebaixamento permanente do custo de reprodução da força de trabalho. Neste sentido, o mecanismo de preços permite uma verdadeira transferência intersetorial de renda, na qual se beneficiam não só os setores que lidam diretamente com a compra de produtos agrícolas e a venda de insumos e máquinas, mas o conjunto do sistema econômico, pelo caminho da redução da parte do orçamento das famílias dedicada diretamente à alimentação (ABRAMOVAY, 1992, p. 222).

O acréscimo obtido na produtividade é apropriado por outros setores, proporcionando para as famílias o barateamento do custo de alimentação. “Neste sentido, a política agrícola contemporânea compõe-se de um compromisso entre a manutenção de um piso mínimo para a renda agrícola e, ao mesmo tempo, de controle sobre os preços alimentares” (ABRAMOVAY, 1992, p. 226). A decorrência disto é que os preços agrícolas passam a ser gradativamente definidos institucionalmente, pelo Estado.

O agricultor moderno possui três características simultâneas que determinam sua identidade, ele é empresário privado, proprietário da terra e ainda um trabalhador. Contudo, ao invés de reunir três rendas, provenientes de suas três situações econômicas, o agricultor “[...] teve que doar a renda fundiária e o lucro capitalista à economia e à sociedade, para sobreviver, buscando apenas um salário mínimo para subsistir” (JEAN, 1994, p. 05).

O agricultor familiar não busca o lucro ao praticar sua atividade, se satisfaz com uma pequena renda que possibilite a reprodução de sua unidade familiar. É a sociedade inteira que acumula três tipos de renda, esse fato atribuía à agricultura familiar uma superioridade competitiva sobre a agricultura empresarial.

Alguns fatores são essenciais na explicação da permanência da agricultura. O que diz respeito à racionalidade do produtor rural, as especificidades da própria agricultura e o papel do Estado, que por meio de sua política agrícola ajusta os mercados e intervém sobre a lei da oferta e da procura nesta parcela. As políticas agrícolas têm

deste modo, o poder de admitir que uma determinada conjuntura agrícola persista ou não (ABRAMOVAY, 1992; JEAN, 1994).

A justificativa para a intervenção estatal na agricultura é garantir a produção barata e farta de alimentos e “[...] remunerar o trabalho do agricultor e não garantir a rentabilidade de seus investimentos em níveis comparáveis à rentabilidade dos investimentos industriais, comerciais, bancários etc.” (VEIGA, 1991, p. 196). É desta maneira acaba privilegiando um tipo de agricultura, a familiar, em detrimento da patronal.

Segundo Abramovay (1992, p. 256), há no Brasil um diagnóstico de que o próprio desenvolvimento do capitalismo se incumbiu de resolver a “questão agrícola”, deixando-se que o capital atuasse no que fosse necessário através do mercado. Essa experiência de decidir a questão agrícola pelo mercado trouxe resultados econômicos e sociais fortemente danosos à sociedade, que impedem o desenvolvimento à similaridade dos exemplos dos países capitalistas centrais.

Podemos perceber algumas similaridades nas interpretações dos autores abordados até o momento. Algo continua muito importante em todos: o privilégio do Estado para com a agricultura familiar, para que esta produza alimentos baratos e fartos, condição imprescindível à obtenção de um determinado estágio do desenvolvimento capitalista. Desta mesma maneira, a persistência da agricultura familiar e a sua reprodução no interior do capitalismo se devem à existência de políticas públicas.