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O Papel dos chamados pares alternantes na descrição e análise da CAC

No documento thaisfernandessampaiodoutorado (páginas 90-95)

Matriz 6: Verbo de Argumento Cindido-lexema

5 A FAMÍLIA DE CONSTRUÇÕES DE ARGUMENTO CINDIDO NO PB

5.1 O Papel dos chamados pares alternantes na descrição e análise da CAC

A decisão de iniciar o capítulo de descrição e análise com uma breve discussão a respeito dos chamados pares de alternância decorre da crença de que, independente da perspectiva assumida, um estudo minimamente rigoroso da CAC não pode ignorar completamente os pares em (106-109).

(106) Maria queimou a mão. / A mão de Maria queimou.

(107) A máquina queimou o flash. / O flash da máquina queimou.

(108) Rubinho quebrou o carro. / O carro do Rubinho quebrou.

(109) O preço do café subiu. / O café subiu o preço.

Não é difícil reconhecer nesses pares um prato cheio para abordagens gerativistas que mantêm, nas suas diferentes versões, a tendência de tratar um determinado padrão sintático em

relação a uma possível paráfrase. Esse é o tratamento tradicionalmente oferecido, por exemplo, às chamadas alternâncias ativo-passiva e causativo-ergativa.

Como observam Gries e Stefanowitsch (2004), a gramática transformacional demonstra, via de regra, uma preocupação com a relação formal entre os membros de pares alternantes. Uma relação tipicamente capturada em termos de mecanismos derivacionais – como as regras transformacionais, que relacionam os dois membros do par à mesma estrutura profunda. Inclusive, essa é, como vimos, a análise sugerida por Ciríaco para a CAC. Segundo Ciríaco, o padrão estrutural da CAC seria resultado do alçamento parcial do complemento de uma construção causativa (ver capítulo 3). Também foi esse tipo de análise que cunhou o termo possessor raising para estruturas como as que aqui estamos chamando CAC-parte do corpo.

Ainda segundo Gries e Stefanowitsch (2004), abordagens gerativas mais modernas, embora ainda interessadas nas propriedades formais desses pares alternantes, focam especialmente em duas questões: (i) qual dos dois membros representa a 'estrutura argumental básica' de um dado verbo; (ii) quais condições semânticas determinam se uma dada palavra pode passar pela mudança na estrutura argumental necessária para que ela possa ocorrer no membro 'não-básico' (Pinker, 1989; Levin, 1993).

As abordagens discursiva-funcionais, por sua vez, também dedicam alguma atenção a possíveis fenômenos de alternância, investigando as diferenças funcionais entre os dois membros envolvidos. Nesse caso, o foco está, especialmente, na análise das diferentes maneiras pelas quais esses padrões sintáticos empacotam o fluxo informacional. Normalmente, tais abordagens procuram mostrar que os falantes escolhem uma ou outra variante dependendo de como ela permite o empacotamento do conteúdo que se quer expressar. Essa é, por exemplo, a perspectiva assumida por Lambrecht (1994), com o estudo das allosentences (ver seção 2.5). De modo geral,

as propriedades formais dos pares de alternância não são explicitamente tratadas nessa perspectiva.

Finalmente, como já mencionado, o paradigma construcionista rejeita completamente a hipótese de derivar um determinado padrão sintático de um outro supostamente mais básico. Nessa abordagem, cada membro dos chamados pares alternantes é uma Construção, que deve ser tratada em seus próprios termos (Goldberg, 2002, 2006). A proposta de Goldberg, particularmente, atribui aos verbos envolvidos a responsabilidade pela relação parcial de paráfrase observada nos pares normalmente usados para ilustrar supostas alternâncias.

Como na visão construcionista a semântica de uma construção é associada à semântica dos verbos que nela ocorrem, quando um determinado verbo é usado – com o mesmo sentido – em duas construções diferentes, o mesmo frame é evocado, com os mesmos EFs centrais perfilados; daí a forte proximidade semântica entre pares como (110).

(110) O jogador quebrou a mão. / A mão do jogador quebrou.

Observamos que, nesses enunciados – pragmaticamente distintos –, temos exatamente os mesmos verbos, os mesmos itens lexicais e as mesmas relações semânticas entre esses itens. Daí, a evocação da mesma cena conceptual. Apesar disso, na perspectiva aqui assumida, temos duas construções diferentes, entre as quais não existe qualquer relação do tipo derivacional e acerca das quais não fazemos qualquer especulação quanto ao estatuto mais básico de uma em relação à outra.

É preciso ficar claro que nossa recusa em aceitar uma análise derivacional para a CAC não significa que descartamos completamente as contribuições advindas da observação de pares como aqueles apresentados no início da seção. Pelo contrário, entendemos que as possíveis

paráfrases da CAC são um recurso valioso na obtenção de evidências a favor de sua análise como uma Construção de Estrutura Argumental do Português. Isso porque, como veremos, a observação de certas Construções Ergativas Canônicas, que a princípio serviriam de paráfrase para a CAC, ajudam na identificação de características formais e de condições de uso da Construção de Argumento Cindido. De fato, não vemos incompatibilidades entre o uso desse recurso analítico e a, aqui assumida, Hipótese da Generalização de Superfície (Surface Generalization Hypothesis), segundo a qual “there are typically broader syntactic and semantic generalizations associated with a surface argument structure form than exist between the same surface form and a distinct form that it is hypothesized to be syntactically or semantically derived from (GOLDBERG, 2002, p. 3).

Com isso, reafirmamos nossa proposta de analisar a CAC em seus aspectos sintáticos, semânticos e discursivos; e não com uma estrutura secundária, resultante da aplicação de determinada regra transformacional. Assumir simplesmente que a estrutura da CAC é resultado do alçamento do SN-possuidor do sujeito da Ergativa Canônica, ignora o fato de que a estrutura da CAC apresenta características intrínsecas, independentes de sua possível relação com a Ergativa Canônica. Só a análise da CAC e de seus subtipos em seus próprios termos pode explicar, por exemplo, a impossibilidade de se usar uma estrutura como a dos enunciados abaixo, com o intuito de expressar uma situação ergativa:

(111) *O clube encheu a festa. (= A festa do clube encheu.)

(112) *O turista extraviou a bagagem. (= A bagagem do turista extraviou.)

(113) *O funcionário atrasou o pagamento. (= O pagamento do funcionário atrasou.) (114) ??O tanque vazou o combustível1. (= O combustível do tanque vazou.)

(115) ??A panela esquentou o cabo. (O cabo da panela esquentou.)

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Embora (114-115) não pareçam totalmente improváveis, não encontramos exemplos desse tipo em nossas buscas através do google.

Outro argumento a favor da análise da CAC como uma construção independente é o predomínio massivo dessa estrutura para expressar dano em partes do corpo humano (ver dados e discussão a respeito na subseção 5.2.1.2). Embora possível, a Ergativa Canônica (EC), nesses casos, é significativamente preterida; o que não se justificaria, se assumíssemos que a EC é o padrão mais básico a partir do qual a CAC é gerada.

As restrições de uso, aliadas às especificidades da CAC, demonstram que não se trata de uma simples derivação, mas do estabelecimento de um padrão sintático-semântico-pragmático produtivo e muito freqüente.

Feitas essas colocações, poderia parecer incoerente o fato de nossa análise considerar, em diversos momentos, padrões sintáticos com os quais a CAC mantém uma possível relação de paráfrase. Contudo, especialmente no que diz respeito à semântica da construção, devemos ter em mente que o significado de uma sentença não se resume ao significado da Construção de Estrutura Argumental usada para expressá-la (GOLDBERG, 2002, 2006). Verbos e argumentos particulares – assim como informações contextuais – fazem parte do conjunto que orienta a construção do sentido. Daí a necessidade de investigar os verbos que aparecem na CAC, as especificidades dos SNs selecionados como seus argumentos e os contextos preferenciais de uso da CAC. Desse modo, a comparação com o uso de possíveis paráfrases – nas quais tais verbos remetem ao mesmo sentido veiculado pela CAC e nas quais se verifica a mesma relação PARTE/TODO e/ou POSSUIDOR/POSSUÍDO entre os constituintes que formam seu argumento semântico – revela-se um recurso eficiente na compreensão dos mecanismos envolvidos na produção, na interpretação e no uso da CAC.

Dito isso, passemos à apresentação de nossa proposta de descrição e análise da CAC. Como sinalizado anteriormente, começamos com a identificação geral da CAC e de seus subtipos.

No documento thaisfernandessampaiodoutorado (páginas 90-95)