PARTE II – O DIREITO À SAÚDE E O FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO
4. O CONTROLE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE
4.2 O papel do Ministério Público
A Constituição Federal de 1988 estabelece no seu art. 127 que o Ministério
Público é “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado,
incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses
sociais e individuais indisponíveis” e, nos termos do art. 129, II, confere ao Ministério
Público a função institucional de zelar pelo efetivo respeito aos serviços de
relevância pública assim constitucionalmente assegurados, promovendo as medidas
necessárias à sua garantia. Considerando que a saúde é um dos direitos sociais
assegurados na Constituição e que o Ministério Público tem por dever protegê-los,
pode-se afirmar a sua legítima atuação na defesa desses direitos.
A legislação infraconstitucional estabelece as funções e as formas de atuação
dos membros dos diversos ramos do Ministério Público, nos termos da Lei
Complementar 75/93, denominada Lei Orgânica do Ministério Público da União, e da
Lei 8.625/1993, chamada de Lei Orgânica do Ministério Público dos Estados. Dentre
as funções abrangidas pelo Ministério Público estão a defesa do cidadão e a defesa
dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos para a afirmação dos
direitos coletivos assegurados na Constituição Federal e, em especial, no capítulo da
ordem social.
Assim, ao Ministério Público incumbe a função de zelar pelo respeito ao
direito a saúde, seja em face da Administração Pública direta ou indireta, podendo
tomar as medidas que se fizerem necessárias na defesa da sociedade, tanto em
razão de ação como de omissão do responsável pela lesão. O papel do Ministério
Público aqui estudado restringe-se à atuação direta da Administração Pública.
A instrumentalização dessa função ocorre com a adoção de medidas judiciais
ou extrajudiciais para que os entes federativos cumpram os dispositivos
constitucionais atinentes à saúde, sejam decorrentes de atos comissivos ou
omissivos.
Assim, afigura-se legítima a atuação do Ministério Público para a defesa de
direitos e interesses indisponíveis, entre os quais se insere o direito fundamental à
saúde, pressuposto do direito à vida, exteriorizado, in casu, na busca da garantia à
universalidade de acesso ao serviço público, à integralidade e à igualdade da
assistência, a um número significativo e indeterminável de beneficiários.
Adota-se a análise das atribuições do Ministério Público efetuada por Fábio
Konder Comparato, de que são elas: impediente, ou seja, impugnar em juízo os atos
dos demais Poderes, contrários à ordem jurídica e ao regime democrático, e a
promocional, ou seja, de promover a realização dos objetivos fundamentais do
Estado, expressos no art. 3.º da Constituição, pela defesa dos interesses individuais
e sociais indisponíveis, consubstanciados no conjunto dos direitos humanos. Essas
duas atribuições fazem do Ministério Público um órgão eminentemente ativo, que
não pode nunca recolher-se a uma posição neutra ou indiferente diante da violação
de direitos fundamentais, mormente quando esta é perpetrada pelos Poderes
Públicos
343.
Ao discorrer sobre o Ministério Público na defesa dos direitos econômicos,
sociais e culturais, Fábio Konder Comparato salienta sua importância no controle da
execução orçamentária, acentuando que, no exercício de seu dever de fiscalização
da ação governamental, ele deveria pedir, com freqüência, auditorias dos Tribunais
de Contas, para a verificação do cumprimento das diretrizes, metas e objetivos dos
orçamentos plurianuais, bem como para verificar se as diferentes unidades da
Federação cumprem as determinações constitucionais de vinculação de receitas às
áreas de saúde e educação. Tal função é relevante, à medida que para alguns
direitos sociais, como a educação e saúde, áreas consideradas prioritárias pela Lei
Maior, foram assegurados recursos por meio de vinculação de receitas (CF, art. 198,
§§ 2.º e 3.º, e art. 212). Acrescenta que as unidades da Federação deveriam se
343O Ministério Público na defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais. In: Eros Roberto Grau e Sérgio Sérvulo da Cunha (Org.). Estudos de direito constitucional em homenagem a José Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 254.
preocupar em discriminar adequadamente tais verbas em suas peças orçamentárias,
possibilitando o controle do cumprimento das metas e objetivos fixados nos planos
plurianuais, mencionando que a via adequada para restabelecer a violação das
normas constitucionais orçamentárias em matéria de direitos econômicos, sociais e
culturais também é a ação civil pública, quer se trate da não-inclusão ou da
inadequada previsão, nos orçamentos, das verbas correspondentes às políticas de
atendimento dos direitos fundamentais, quer se esteja diante de um desvio de
despesa ou da não-liberação de verbas no curso do exercício financeiro
344.
Nessa linha, pode-se constatar que as diretrizes constitucionais
orçamentárias não estão sendo cumpridas, não se podendo flexibilizar direitos dos
cidadãos. O Ministério Público não admite qualquer postura dos gestores no sentido
de flexibilizar direitos na Constituição Federal, referindo-se à integralidade e à
universalidade antes de assegurados os recursos orçamentários mínimos, previstos
na EC 29 /2000
345.
O que já está previsto nos protocolos clínicos
346, nas relações de
medicamentos, sejam elas essenciais ou excepcionais, deve ser fornecido
regularmente, mas também exige-se o fornecimento de medicamentos não incluídos
nas relações do SUS, por denominação comum brasileira, ou por denominação
internacional.
Embora a princípio não possa o SUS ser obrigado a adquirir medicamento
não registrado na Anvisa, tal atribuição da agência não pode segregar
arbitrariamente a garantia do princípio da integralidade, ficando a excessiva demora
da apreciação dos pedidos e a justificativa da negativa sujeitas a controle judicial.
344O Ministério Público na defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais. In: Eros Roberto Grau e Sérgio Sérvulo da Cunha (Org.). Estudos de direito constitucional em homenagem a José Afonso da Silva, p. 257- 258.
345Alexandre Gavronski. O dever estatal de assistência farmacêutica na visão do Ministério Público.Palestra no II Encontro do Ministério Público Federal e Ministério Público do Estado de São Paulo sobre o Sistema Único de Saúde – O Ministério Público na tutela do SUS. São Paulo, 05 e 06.12.2005.
346Roteiros de indicação e prescrição, graduados de acordo com as variações e a gravidade de cada afecção. Terminologia. 7. Protocolos de intervenção terapêutica. 48. Portaria 3.916, de 30.10.1998.
O Grupo de Saúde do Ministério Público Federal também já reconheceu que é
cabível a sua atuação para incluir determinado medicamento nas relações do SUS,
devendo, sempre que possível, pleiteá-la pela denominação comum brasileira, ou,
na falta desta, pela denominação internacional (genérico), evitando-se a demanda
por determinada marca.
Neste estudo não se nega a prerrogativa da Anvisa do registro, nem se
discute a legalidade da instituição da agência e a legitimidade de suas ações, mas
se esclarece que não pode ser negado o direito ao recebimento do medicamento
pelo administrado, perante os direitos assegurados na Constituição Federal.
Quanto à alegação de ausência de recursos orçamentários, foi apresentado
no II Encontro do Ministério Público Federal e Ministério Público do Estado de São
Paulo sobre o Sistema Único de Saúde – O Ministério Público na tutela do SUS,
realizado em 05 e 06.12.2005, um estudo de Armando Raggio, que integra o
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), pela conclusão da viabilidade
econômica de assistência farmacêutica integral, desde que a regulamentação da EC
29 seja aprovada.
O importante é assistir à pessoa para a cura, atenuar e controlar a dor para
que no mínimo a morte seja digna, se não puder sobreviver, que seja dada a
oportunidade ao cidadão da sobrevida.
Não se desprezam aqui as teorias da reserva do possível ou até mesmo da
utopia no atendimento pelo Estado da providência imediata para todos aqueles que
demandam um posto de trabalho, uma vaga em creche, um tratamento médico-
cirúrgico de alta complexidade
347. Não se pretendeu aqui divorciar das
conseqüências financeiras, contudo não se pode negar que há plena eficácia aos
preceitos que asseguram a saúde, a obtenção dos medicamentos, atribuindo
titularidade aos cidadãos para demandarem individualmente a fim de restabelecer
seus direitos.
Na esfera judicial constata-se que o Ministério Público tem promovido ações
civis públicas para conferir a efetividade dos direitos constitucionais atinentes às
questões de saúde e medicamentos
348. No desempenho desse controle pode-se
ressaltar a ação civil pública desempenhada pelo Ministério Público Federal do
Município de Marília visando compelir a União Federal a adotar providências para
repassar ao gestor municipal da saúde as verbas do SUS relativas aos
procedimentos médicos realizados pelos prestadores de serviços conveniados
atuantes na Subseção Judiciária Federal de Marília, em função da demanda
existente, vedando a imposição de qualquer limite ou teto físico orçamentário
349.
O Ministério Público Federal, em manual da saúde, já sedimentou o
entendimento de que é possível o controle dos atos que determinam ou não o
fornecimento de medicamento
350.
No âmbito estadual verifica-se que o Ministério Público no Estado de São
Paulo moveu uma ação civil pública contra a instituição, do que se denomina hoje
“dupla porta”, Hospital das Clínicas, autarquia estadual, que estabeleceu, o que tem
sido comum nos hospitais, a desigualdade de tratamento entre o paciente advindo
do sistema único e aquele ligados aos seguros ou planos de saúde, ou seja, para
cada paciente um tipo de acesso aos serviços.
A referida ação civil pública foi julgada improcedente em primeiro e segundo
grau, reconhecendo legal a discriminação desse sistema, pois não se verifica a
348No âmbito federal ADIN 1.646-6/PE requerida pela Confederação Nacional do Comércio contra Lei 11.446/1997 do Estado de Pernambuco; – ADIN 2.999-1/600 ajuizada pela Governadora do Rio de Janeiro, em face da Resolução 322/2003, do CNS; – Representação Gavronski oferecida pelo Procurador da República, PRDC, em Mato Grosso do Sul, Alexandre Gavronski, contra Lei Estadual 2.261/2001 (“Lei do Rateio”); – ADIN 3.320 contra a Lei 2.261, de 16.07.2001, do Estado do Mato Grosso do Sul, por ofensa aos arts. 167, VI, 198, II e § 3.º, I, II e III, da Constituição da República; art. 77, § 3.º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias; – Recomendação 002/03/2003 dos Procuradores ao PGR, solicitando encaminhamento da Recomendação do Presidente da República; – Ofício/PGR/GAB/N.1.386: o PGR encaminha a Recomendação ao Presidente da República. Disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/grupos-de- trabalho/folder.2006-01-30.7566473930>. Acesso em 28 ago. 2006.
349Processo 2005.61.11.001047-3. Disponível em: <http://www.prsp.mpf.gov.br/marilia/acp/acp.htm>. Acesso em: 1.º maio 2006.
350Disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/grupos-de-trabalho/folder.2006-01-30.7566473930>. Acesso em: 10 jan. 2006
violação à Constituição paulista, bem como a garantia de gratuidade prevista no art.
46 da Lei 8.080/1990
351.
Pode-se destacar também a ação civil pública proposta com base no Estatuo
da Criança e do Adolescente que objetivou obter medicamentos junto à rede pública
de saúde para tratamento de um menor portador da doença Distrofia Muscular tipo
Duchunne (distrofia muscular progressiva)
352, doença genética letal que degenera o
tecido muscular esquelético e a musculatura respiratória até a paralisação total da
musculatura do corpo
353e a ação civil pública promovida para a distribuição do
medicamento Interferon Peguilado para os portadores de hepatite C
354.
O Ministério Público também atua na esfera extrajudicial, hipótese em que,
nos termos da Lei Orgânica do Ministério Público, conduz inquéritos civis públicos
(instrumento de procedimento investigatório), apurando a responsabilidade da
Administração Pública nos serviços de saúde, podendo, outrossim, utilizar-se de
351Ação Civil Pública 2.066/99-3, 13.ª Vara da Fazenda Pública da Capital (SP). Autor: MP – Réu: HCFMUSP. 352Ação Civil Pública 002.04.902.333-2 ajuizada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo.
353Foram também propostas as Ações Civis Públicas 008.04.900.545-3 e 002.03.902.561-8, para fornecimento de medicamento a menor, portadora de problemas cardíacos, cujo tratamento exige drogas de custo elevado, não fornecidas pelo SUS. Em outra ação, de igual fundamento, o Ministério Público intentou ação civil pública com vistas a obter o fornecimento de remédios e vagas em creches a menores portadores de epilepsia sintomática dominante com crises febril plus.
354 Na referida ação civil pública o Ministério Público de São Paulo conseguiu liminar que obriga o Governo do Estado a fornecer o remédio Peg Interferon aos pacientes do SUS portadores de hepatite C. A Justiça deu prazo de 15 dias para a compra do medicamento, injetável, que custa R$ 800. A medida vale para todo o Estado. A decisão foi tomada [...] pelo juiz Marco Aurélio Paioletti Costa, da 1.ª Vara da Fazenda Pública. Ele acatou o pedido de antecipação de tutela da ação civil pública proposta pelo Grupo de Atuação Especial da Saúde Pública e da Saúde do Consumidor (Gaesp). O promotor João Luiz Marcondes Júnior explica que pacientes, médicos e associações de portadores de hepatite C procuraram o Ministério Público em maio de 2006. Eles denunciaram que médicos do SUS prescreviam o medicamento porque é mais eficaz no tratamento, mas os pacientes não encontravam o produto nas farmácias da rede, que tem apenas o remédio padrão. Antonio Chastinet. Data de publicação: 06.08.2002. Disponível em:
<http://www.mp.sp.gov.br/pls/portal/docs/PAGE/CLIPPING/PUBLICACAO_CLIPPING/2002/AGOSTO/LI MINAR_GARANTE_REM%C3%89DIO_GR%C3%81TIS_P.HTM>. Acesso em: 25 set. 2006.
A questão da hepatite C também é polêmica e tem gerado muitas discussões, especialmente quanto à distribuição do medicamento Interferon Peguilado, eis que estabelecida política pública para a distribuição estava restrito para os pacientes que necessitavam de retratamento. Nesse ponto, tal violação de direito já foi corrigida pela possibilidade de sua utilização nas hipóteses de retratamento em abril de 2006. São Paulo amplia tratamento a doentes de hepatite. O Governo de São Paulo acaba de baixar duas normas que aumentam o acesso dos doentes de hepatite aos remédios. Os portadores de hepatite C que não se curaram com o tratamento convencional poderão tentar o “retratamento” com o Interferon Peguilado. No caso da hepatite B, a novidade é o Adefovir. Os dois tratamentos adotados pela Secretaria de Estado da Saúde não fazem parte do Programa de Hepatite do Ministério da Saúde. Disponível em: <http://www.mp.sp.gov.br/pls/portal/docs/PAGE/CLIPPING/PUBLICACAO_CLIPPING/2006/ABRIL/NOV A_PAGINA_11_6.HTM>. Acesso em: 25 set. 2006.