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4.2 Categorias de análise

4.2.3 Papel sagrado (discurso cúmplice)

Por ser um Estado teocrático, a maternidade em Gilead é representada também como um ato divino. Esse papel sagrado construído através da crença imposta pelo governo é uma outra forma de justificar a violência sofrida pelas mulheres, e além disso culpar elas mesmas pela sua opressão, isentando a culpa dos governantes. Na história, as Aias, únicas mulheres férteis de Gilead, aprendem que elas foram “escolhidas” por Deus para gerar filhos, e portanto é dever delas seguir esse papel, com todas as suas regras e imposições.

Apesar de ser claramente uma desculpa para dominar as personagens femininas, o papel sagrado acaba criando uma cultura onde a maternidade é vista como algo desejado por todas as mulheres por ser uma raridade considerada como um “presente de Deus”. Dessa forma, ao invés de utilizar a violência física, nessa classificação utilizam-se rituais simbólicos para manter as mulheres como uma classe subjugada que deve servir ao governo.

Assim como na série, o discurso religioso também interfere na vida das mulheres na realidade a partir do momento em que ele é utilizado como justificativa para não garantir o direito ao aborto seguro e legal, como é o caso aqui no Brasil onde mulheres só podem abortar em situações de estupro, anencefalia do feto ou quando a gravidez apresenta um risco à sua vida. Dentro das justificativas que impedem a garantia do direito pleno de autonomia corporal feminina estão as imposições religiosas, que atuam com força no governo e na cultura brasileira. Essa discussão esteve em alta em 2018, principalmente durante o mês de Agosto, quando o Supremo Tribunal Federal

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realizou uma audiência pública para decidir como agir perante uma ação proposta pelo partido PSOL que pedia “para que os artigos 124 e 126 do Código Penal brasileiro que

criminalizam o aborto sejam considerados incompatíveis com a Constituição de 1988”3

Durante esse período de debate no STF, as discussões sobre autonomia corpo-ral aumentaram na mídia e muitos veículos apontaram as consequência da interferência religiosa em um Estado que supostamente deveria ser laico, como consta na constitui-ção. Segundo Felipe Betim do El País:

“Em 2015, a bancada evangélica conseguiu aprovar em uma comissão da Câmara o Projeto de Lei 5069/13, de autoria do preso e condenado Eduardo Cunha (MDB), que dificulta o atendimento médico das mulheres vítimas de estupro. Os contrários a interrupção da gravidez se baseiam em questões morais e religiosas e argumentam que vida começa na concepção e que cabe protegê-la.”4

Portanto, assim como na série, o discurso religioso que supostamente seria “pró-vida” é utilizado para reprimir as mulheres, impedindo-as de possuir autonomia corporal para decidir quando, como e se querem se tornar mães. No mundo distópico

de The Handmaid’s Tale, esse discurso se mistura ao autoritarismo do governo, que

diferente do nosso não alega laicidade, e é reforçado pela baixa taxa de natalidade que cria ainda mais argumentos para controlar os corpos femininos. Mas, mesmo com essas diferenças, ainda é possível traçar um paralelo direto entre a ficção e a realidade, pois em ambos a religião é deturpada para naturalizar a violência de gênero.

Esse paralelo foi visível no mês de Agosto quando feministas brasileiras se

organizaram no movimento “Nem Presa Nem Morta”5em Brasília durante a audiência

do STF para lutar pela descriminalização do aborto, e algumas utilizaram os figurinos da série como símbolo de resistência:

3 “>El País.“Existem fundamentos legais para que o Supremo legalize o aborto no Brasil”. Disponível em:

<https://brasil.elpais.com/brasil/2018/08/03/politica/1533291491_643952.html>

4 “>El País.“Existem fundamentos legais para que o Supremo legalize o aborto no Brasil”. Disponível em:

<https://brasil.elpais.com/brasil/2018/08/03/politica/1533291491_643952.html>

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Figura 4 – Intervenção em Brasília na frente do STF durante o início da audiência pública da ADPF 442

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Figura 5 – Manifestantes do movimento “Nem presa nem morta” durante o “Amanhecer #PelaVidaDasMulheres”

Fonte: Instagram (@nempresanemmorta)

Essa identificação das mulheres brasileiras com a personagem June Osborne de-monstra como o discurso religioso ainda está extremamente presente na naturalização e manutenção da opressão feminina. Apesar de não estarmos na distopia de Margaret Atwood, a religião ainda é usada como desculpa para controlar nossos corpos e assim manter o sistema patriarcal funcionando. Por isso, movimentos feministas como esse,

e outros como “Católicas pelo direito de decidir”6que lutam pela autonomia corporal

feminina, este último mostrando que é preciso desconstruir a ideia de que a religião deve ser oposta aos direitos das mulheres, são de extrema relevância em um cenário de política nacional que se mostra cada vez mais opressivo contra minorias.

Na história da série, o papel sagrado é utilizado também para fazer com que as personagens mulheres que pertencem a classes mais altas, e realmente acreditam no discurso religioso de dever e salvação, controlem as Aias. Dessa forma, o sistema de Gilead pode continuar funcionando sem precisar usar a violência direta, pois a religião valida os discursos e não há espaço para questioná-los dentro de um Estado autoritário que obriga todos a seguirem a mesma fé. Portanto, apesar de colocar a maternidade como um milagre divino nessa categoria podemos perceber que esse endeusamento

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fica restrito apenas ao nascimento do bebê, e não ao corpo feminino que continua sendo desumanizado e objetificado.

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