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Para além de uma hermenêutica jurídica crítica: hermenêutica diatópica

5 A REPARAÇÃO DO RIO DOCE NO MARCO DOS DIREITOS DA NATUREZA

5.3 Para além de uma hermenêutica jurídica crítica: hermenêutica diatópica

Para além de uma hermenêutica jurídica crítica, apresentamos a proposta de Boaventura de Sousa Santos (2007) de estímulo ao desenvolvimento de epistemologias do Sul Global, por meio das sociologias das ausências aliada a uma ecologia dos saberes, bem como uma sociologia das emergências, aliada a uma amplificação simbólica. Deste modo, destacamos o papel que as comunidades tradicionais e seus saberes e seus conhecimentos têm para o desenvolvimento de uma sociedade mais democrática e justa e para que o Direito se torne instrumento de emancipação (ao invés de dominação), por

meio de um processo de tradução, denominado: hermenêutica diatópica (SANTOS, 2007).

A hermenêutica diatópica permite o reconhecimento da incompletude e da necessidade do diálogo intercultural. Santos (1997) demonstra a possibilidade da hermenêutica diatópica enquanto exercício entre duas culturas distintas. Ao fazer esse exercício com o conceito que se tem de direitos humanos, o autor conclui que em uma perspectiva ocidental de direitos humanos a Natureza não possui direitos porque não podem ser atribuídos deveres a ela (SANTOS, 1997, p. 24).

O exposto acima pode ser identificado claramente no caso da BHRio Doce, uma vez que consta na própria sentença ao analisar o status de sujeito de direito, a vinculação entre a condição de sujeito à capacidade de contrair deveres “[é] preciso que haja personalidade jurídica, que instituída pelo Direito, permite aos seres humanos e aos entes por ele criados - com a finalidade de lhes atribuir direitos e deveres – demandarem e

serem demandados em juízo” (BRASIL, 2018, p. 6, grifos nossos).

Assim, Santos (2007) indica que as importações acríticas das racionalidades do Norte poderão causar influências distintas, como a razão metonímica e a razão ploréptica. A razão metonímica é considerada como uma “racionalidade que facilmente toma a parte pelo todo, porque tem um conceito de totalidade feito de partes homogêneas, e nada do que fica fora dessa totalidade interessa” (SANTOS, 2007, p. 26). Desse modo, a razão metonímica “contrai o presente porque deixa de fora muita realidade, muita experiência, e, ao deixá-las de fora, ao torná-las invisíveis, desperdiça a experiência” (SANTOS, 2007, p. 26). Já as razões prolépticas tendem a um alargamento do futuro (SANTOS, 2007, p. 27). Assim, diz-se que a razão metonímica contrai o presente porque ela deixa de fora muitas realidades que não considera como relevantes, em uma perspectiva hegemônica, ela se baseia na simetria dicotômica que encobre hierarquias.

Como as razões metonímicas contraem o presente e as razões prolépticas alargam o futuro, Santos propõe o inverso, ou seja, procedimentos que busquem a dilatação do presente - sociologia das ausências - e a contração do futuro - sociologia das emergências. Para alcançar essas modificações, o autor expõe a necessidade de desafiar e criticar as razões consideradas como universais. Dessa maneira, apresenta formas de produção de ausências na realidade ocidental. Vamos abordar a primeira delas, qual seja: monocultura do saber e do rigor.

A monocultura do saber e do rigor produz, segundo a teoria de Santos, a ausência ou inexistência na forma de ignorância, pois considera que o saber científico é o único

que tem rigor, validade, e assim, contrai o presente e exclui os demais conhecimentos, a diversidade de conhecimentos. Santos (2007) propõe a sociologia das ausências como crítica à ausência e, assim, em sua decorrência a ecologia dos saberes como substituta da monocultura dos saberes. O que se pretende a partir da ecologia dos saberes não é a desqualificação científica, mas, sim, a possibilidade de ampliação dos saberes, para que possa haver um dialógo entre o saber científico e os demais saberes em um “uso contra- hegemônico da ciência hegemônica” (SANTOS, 2007, p. 32). Desse modo entre os saberes e a conservação e proteção da Natureza:

[...] o que vem conservando e mantendo a biodiversidade são os conhecimentos indígenas e camponeses. Seria apenas coincidência que 80% da biodiversidade se encontre em territórios indígenas? Não. É porque a natureza neles é a Pachamama, não é recurso natural: é parte de nossa sociabilidade, é parte de nossas vidas”; é um pensamento antidicotômico. Então o que tenho de avaliar é se se vai à Lua, mas também se se preserva a biodiversidade. Se queremos as duas coisas, temos de entender que necessitamos de dois tipos de conhecimento e não simplesmente de um deles. É realmente um saber ecológico o que estou propondo (SANTOS, 2007, p. 33).

A razão proléptica se refere ao “domínio do futuro sob a forma de planeamento da história e do domínio da natureza” (SANTOS, 2003, p. 3). Ou seja, a partir das ecologias – especialmente a ecologia dos saberes – vamos dilatar o presente com as diversas experiências e ao mesmo tempo deverá haver um exercício de contração do futuro, para que não seja visto como um infinito, ou seja, uma Natureza abundante e infinita.

Assim, a razão proléptica é enfrentada pela sociologia das emergências. Nela deve ser feita uma ampliação simbólica – para a comunidade Krenak o Rio Doce era seu parente, seu avô, que foi atingido e morreu, assim, o Rio é uma entidade viva, um sujeito – deve haver a ampliação simbólica dessa possibilidade e relação com a Natureza, para que se possa ver o futuro também a partir desse conhecimento.

De tal modo, ao ampliar o presente e contrair o futuro pela sociologia das ausências (com a ecologia dos saberes) e pela sociologia das emergências (com a ampliação simbólica) se mostrarão diversas alternativas novas ou invisibilizadas em que será preciso uma produção de sentido. Portanto, de forma complementar às sociologias das ausências e das emergências, Santos (1997, 2003) apresenta como alternativa à teoria geral, o trabalho de tradução, que reflete a impossibilidade de uma teoria geral, tendo em vista a inclumplutude das culturas e a importância da interculturalidade, do dialógo.

A tradução é um processo intercultural, intersocial “é traduzir saberes em outros saberes, traduzir práticas e sujeitos de uns aos outros, é buscar a inteligibilidade sem

canibalização, sem homogeinização. Nesse sentido, trata-se de fazer tradução ao revés

de tradução linguística” (SANTOS, 2007, p. 39). Esse trabalho de tradução incidirá sobre as práticas (e os seus agentes) e os saberes. Nestes últimos, é feito por meio de um processo hermenêutico que é denominado como hermenêutica diatópica, pois “consiste no trabalho de interpretação entre duas ou mais culturas com vista a identificar preocupações isomórficas entre elas e as diferentes respostas que fornecem para elas” (SANTOS, 2003, p. 31).

A hermenêutica diatópica é baseada no princípio da incompletude, uma vez que todas as culturas são consideradas como incompletas e por meio do diálogo e pelo confronto com outras culturas poderão ser agregadas (SANTOS, 2003, p.33). Nesse sentido, admitir que as culturas sejam incompletas resulta em um reconhecimento do “universalismo como uma particularidade ocidental cuja supremacia como ideia não reside em si mesma, mas antes na supremacia dos interesses que a sustentam” (SANTOS, 2003, p. 332). A crítica ao universalismo decorre da crítica da possibilidade da teoria geral. A hermenêutica diatópica pressupõe, pelo contrário, o que Santos designa de “universalismo negativo” uma vez que para o autor é impossível uma completude cultural (SANTOS, 2003, p. 332). Explica que a hermenêutica diatópica “requer, não apenas um tipo de conhecimento diferente, mas também um diferente processo de criação de conhecimento. A hermenêutica diatópica exige uma produção de conhecimento colectiva, interactiva, intersubjectiva e reticular” (SANTOS, 1997, p. 28).

Paradoxalmente – e contrariando o discurso hegemônico -, é precisamente no campo dos direitos humanos que a cultura ocidental tem de aprender com o Sul para que a falsa universalidade atribuída aos direitos humanos no contexto imperial seja convertida, na translocalidade do cosmopolitismo, num diálogo intercultural (SANTOS, 1997, p. 29).

Logo, o trabalho de tradução poderá ocorrer entre saberes hegemônicos e não hegemônicos ou entre diferentes saberes hegemônicos. Assim, temos o direito ambiental que ainda se postula enquanto um direito ocidental, hegemônico, em uma perspectiva antropocêntrica (ainda que seja em um antropocentrismo alargado), incrustada na modernidade em que a Natureza de forma geral é conceituada em uma relação que separa o humano-Natureza. Podemos, assim, dizer que os direitos da Natureza refletem o direito contra-hegemônico (SANTOS, 2003, p. 38).

Dessa forma, os precedentes latino-americanos (reconhecimento do Rio Vilcabamba como sujeito de direitos, bem como as previsões constitucionais do Equador, as previsões infraconstitucionais da Bolívia e a decisão da Corte Constitucional Colombiana que considerou a BH do Rio Atrato como sujeito de direitos bioculturais) devem ser considerados no processo da hermenêutica diatópica em um processo de diálogo, que, como exposto no capítulo terceiro poderá revelar as diferenças e destacar as semelhanças com o caso da BHRio Doce possibilitando uma completude, que sempre se renova.

Há um processo histórico que deve ser considerado e resgatado por meio do pluralismo jurídico. Conforme demonstrado no Capítulo 2, há uma construção social do conceito de Natureza que sofreu transformações ao longo da história, marcado, especialmente, pela colonialidade da Natureza. Assim, o reconhecimento dos direitos da Natureza rompe paradigmas antropocêntricos, históricos e culturais e possibilita a remoção de obscurecimentos que até o momento inviabilizaram os conhecimentos de comunidades indígenas, ribeirinhas, como os Krenacks no caso da BH do Rio Doce. Assim, os direitos da Natureza são um novo direito e se expressam em novos sujeitos.

Concordamos com Lixa (2013) no sentido de que é necessário ir além da hermenêutica jurídica crítica atual e que a hermenêutica diatópica proposta por Boaventura de Souza (2006) possibilia uma construção de uma nova dimensão hermenêutica, pois permite uma transformação quanto à “lógica construída pelo saber colonizador [em que] as condições de possibilidade de compreensão é elaborada com o outro e a partir deste outro historicamente negado e silenciado” (LIXA, 2013, p. 302)

Portanto, ressaltamos a importância de ir além de uma hermenêutica crítica jurídica e recomendamos a hermenêutica diatópica para o processo de construção dos Direitos da Natureza, enquanto resgate de uma perspectiva histórica desconsiderada pela imposição da colonialidade da Natureza, bem como da necessidade de ruptura com o antropocentrismo e adoção do biocentrismo.

5.4 Repercussões Jurídicas a partir do giro biocêntrico no Brasil: alternativas para