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4 DAS SAUDADES VIVAS NO SERTÃO

4.2 BORDANDO ANALITICAMENTE SAUDADES

4.2.3 Para alimentar e para matar a saudade

Esse eixo de análise foi formado a partir da integração de fragmentos narrativos voltados para a forma de vivência da saudade a partir do uso de alguns recursos que ora facilitam alimento para saudade, ora proporcionam sua diluição, como as tecnologias voltadas para comunicação, as fotografias e músicas (Cf Quadro 08, APÊNDICE H).

De acordo com as histórias contadas, enquanto as fotografias e as músicas parecem funcionar como alimento de saudades irreparáveis, a tecnologia voltada para a comunicação, sobretudo a partir do uso das redes sociais, parecem aplacar esse sentimento pois está voltada para as saudades saciáveis. Dona Francyne descreve como a sua vivência de saudade hoje é diferente daquela sentida no passado.

Hoje em dia, a gente sente a saudade, mas já não é como aquela saudade daquele tempo porque tem o meio de comunicação. Todo dia dá para falar e ver as pessoas. A tecnologia está muito avançada. A pessoa tem saudade de estar perto, mas vê, conversa e sente no coração. No tempo da minha juventude, as coisas eram muito difíceis. Era difícil até tirar uma foto. Tem família que não tem uma recordação, uma foto de pai nem da mãe porque, na época, não tinha um fotógrafo, não tinha condição, não tinha nada. Era muito difícil. [...] Eu guardo a roupa de mãe e de pai com todo carinho. Tenho também a foto de uma freira lá do Stella Maris que foi mesmo que minha segunda mãe. Daí eu alimento e mato um pouco a saudade (DONA FRANCYNE)

Nesse sentido, o uso do telefone celular e das redes sociais marcam uma diferença grande sobre a produção de saudade no Sertão. Aos familiares que migraram para outras regiões em busca de melhores trabalhos é possível contato em tempo real seja por chamadas de áudio seja também com vídeo chamadas, de tal modo que as cartas caíram em desuso

É possível pensar, com o apoio de Michel Oliveira (2018) que a fotografia pode ser compreendida como saudade e como suporte para a própria saudade. Isso porque a fotografia trata de um recorte espaço-temporal que já se foi, que já se fez ausente. Contudo, cabe ainda assinalar a dimensão paradoxal da fotografia como recurso voltado para a memória, uma vez relacionada à saudade. Explico: a fotografia ora retrata uma presença, ora funciona como prova de ausência (SONTAG, 2004).

É justamente essa natureza paradoxal da fotografia que mobiliza emoções de prazer e de dor no que se refere à saudade. Ainda segundo Oliveira (2018), a relação entre fotografia e saudade é intrínseca pois, socialmente, o registro de instantâneos foi concebido como substrato-ouro da memória. “Nesse contexto, é possível afirmar que a fotografia – com todas as suas complexidades conceituais – estabelece relação bastante próxima com a saudade, tornando-se suporte ideal para que o indivíduo saudoso realize a transcendência necessária para reavivar simbolicamente a presença do ser amado que já não vive” (OLIVEIRA, 2018, p. 59).

Nesse sentido, as fotografias da família, de casamentos, da infância ou dos filhos são transmutadas em relicários afetivos, como denomina Kossoy (2005, p. 42). Há uma noção social de que as imagens fixadas pelas fotografias têm a potencia de suplantarem sujeitos ou cenas, que podem inclusive serem transportados através do espaço e do tempo.

Não por acaso, na ausência de fotografias, o/as narrador/as lamentam não ter esse recurso, esse substrato de alimento para a saudade, e relatam guardar outras materialidades, como roupas e cabelo de pessoas que estão ausentes, conforme explica Dona Aline:

Eu não tive muitas fotografias. Eu acho que seria uma lembrança que eu desejaria muito até hoje. Então, eu tenho uma foto, que era pequena, mas não bebê. Eu sinto muita falta dessa foto bebê. Eu queria ter tido essa foto bebezinha, e eu dizia pra mainha e ela respondia: “Minha filha, as condições eram outras”. A minha irmã tem uma foto bebezinha e ela diz: “Mas foi a madrinha dela que tirou.” Eu

respondo: “Mas tinha que ter tirado uma”. Aí, você acaba fazendo isso com os sobrinhos. Você tira várias fotos pra não pecar faltando. [...] Eu guardo o cabelo da minha mãe. Eu tenho um pouquinho do cabelo dela guardado comigo. Tenho meu caderninho que eu anotava quando estava acompanhando sua internação na UTI. Quando eu sinto muita falta, eu vou lá. É que nem fosse uma consulta: você ir lá pra ver e sentir. Passei muito tempo com as roupas de mainha. Eu não dei pra ninguém. Inclusive, minhas tias queriam uma peça de roupa pra guardar. Elas também tinham vontade de ter. Eu dei umas coisas dela e elas guardaram. Eu peguei as coisas e guardei no guarda roupa: “Pronto. Vai ficar guardadinha as coisas de mainha”. Porque eu organizei e levou um bom tempo pra mim. Não dizia nada, nem que guardasse e nem que não guardasse. Eu queria que tivesse lá, guardada, preservada. Eu ia lá olhar, dobrar... Não era uma coisa rotineira, mas fazia. Então, esse ano passado foi quando eu consegui. Foi de 2012 pra cá. Foi ano passado que eu organizei e perguntei a minha tia: “Ô, tia, a senhora não quer não algumas coisas de mainha?”. Aí, eu comecei a mexer e ainda tem mais coisa. Já consegui me desprender de certa forma da roupa. Se alguma delas quiser o que ainda tem lá, é tranquilo levar o que tem hoje. Menos o cabelo, essas coisinhas, isso não. Isso eu não dou nem pra irmão. Tá lá comigo guardado. Guardadinho. Era o frizozinho que ela usava no cabelo e tinha uns fiozinhos, aí eu guardei. Isso eu não dou não. É que nem você não quisesse confirmar que aquela pessoa não está mais (DONA ALINE).

As músicas, por seu turno, também se apresentaram como um recurso fecundo para alimentar a saudade, conforme explica Seu Heitor:

Para ajudar a lembrança é mais música. Quando começa a tocar, cantar, falar, a pessoa lembra. Eu não sei se a mulher [esposa] tem um cuidado em mim. Eu não preciso ter cuidado de mulher. Outro dia, eu estava encostado no canto da mesa, passou uma música, eu subi na emoção e saiu água dos olhos. Eu acho que ela ficou cismada, pensando bem que eu estava lembrando de alguém. O ‘cabra’ pode lembrar de alguém, mas não era mais interessado e passou aquele tempo bom (SEU HEITOR)

Nascimento (2004, p.16) aponta o tema da saudade com uma presença forte na Música Popular Brasileira (MPB) em interface com outras categorias como da “infância feliz, da cidadezinha onde se nasceu, da casa no campo, da juventude, da cidade de antigamente, dos bairros que não são mais os mesmos, dos trilhos dos bondes, do tempo em que se ganhava bem e no qual o dinheiro dava, da boemia, dos velhos carnavais, do primeiro amor, do verdadeiro amor, do tempo em que homem era homem e mulher era mulher, da cordialidade”, por exemplo.

Finalmente, não é de se estranhar que o processo de ouvir música traga a reboque uma identificação entre o/a ouvinte saudoso/a e a letra cantada, de modo que

a saudade é reafirmada socialmente a partir dessas produções, ao mesmo tempo que incita cada vez mais produções musicais.