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CAPÍTULO III — AS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DERI-

VADAS DA OBTENÇÃO DE MATERIAL PROBATÓRIO MEDIANTE VIOLAÇÃO DE

4. Para encerrar este capítulo, enfrentemos uma outra questão que,

sendo decorrência do que se expôs, assume inegável relevo prático-jurídico: no domínio específico das escutas telefónicas, será que o desrespeito pelos arts. 187.º ou 188.º conduz à aplicação de um regime sancionatório diverso entre si?

Na verdade, poder-se-á dizer que o primeiro destes incisos assume uma maior importância, dado definir o catálogo de crimes em relação aos quais o uso deste meio de obtenção da prova pode ser autorizado, bem como os demais requisitos cumulativos que analisámos. Trata-se, assim, de uma norma nuclear na matéria e que exprime, de forma mais directa, o difícil (141) Sendo que as nulidades da sentença são insanáveis — cf. o ac. do STJ

de 5-6-1991, BMJ, 408 (1991), p. 404, s.

(142) No domínio da StPO, defende-se uma posição semelhante à expendida em texto

(cf. GÖSSEL, As Proibições…, cit., p. 438). Na nossa jurisprudência, admite-se também a

nulidade do julgamento com a consequente repetição, mas baseada na existência de um «erro notório na apreciação da prova» (art. 410.º, n.º 2, c)) — cf. ac. do STJ de 2-10-1996 (BMJ, 460 (1996), p. 540, s.).

(143) Utilizamos uma expressão já «clássica» no mundo jurídico germânico (cf. GÖSSEL,

As Proibições…, cit. p. 435).

(144) Cf. MAIAGONÇALVES, Código de Processo Penal…, cit., p. 307.

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equilíbrio entre a boa administração da justiça e o respeito pelos direitos fundamentais envolvidos.

Daí que a violação do art. 187.º deva implicar uma sanção mais radi- cal: a «inutilização» do material probatório assim recolhido. Pelo contrá- rio, se é certo que o disposto no art. 188.º também contende com direitos fundamentais, estamos apenas perante matéria «procedimental» que não bole com tais direitos de forma tão intensa. Logo, do confronto desta norma com o regime das nulidades, seria de intuir que estaríamos perante uma nulidade sanável (art. 120.º) (145).

Nem se diga que o art. 189.º, ao estabelecer a sanção da nulidade quer para o art. 187.º, quer para o artigo seguinte, implicaria um regime uni- tário, uma vez que, como já vimos, o termo «nulidade» não é aí usado em sentido técnico-jurídico.

Apesar de reconhecermos a lógica intrínseca a esta posição, mani- festamos em relação a ela a nossa discordância. Em primeiro lugar, a correcta interpretação do art. 189.º, quer com base no elemento literal, quer recorrendo ao elemento lógico, aqui de índole sistemática e teleo- lógica, imporá a conclusão de que o incumprimento do preceituado nos arts. 187.º e 188.º terá de implicar uma mesma sanção processual. De facto, assente que está a especial «danosidade social» das escutas tele- fónicas, tudo aponta para que tenha sido intenção do legislador parifi- car a consequência jurídica a desencadear quer no que concerne aos requisitos essenciais do recurso a este meio de obtenção da prova, quer no que tange aos aspectos, digamos, «procedimentais». Donde, não jul- gamos correcto afirmar a menor «dignidade» do art. 188.º face ao dis- positivo anterior (146). Basta atentar em alguns exemplos: a não apre-

sentação atempada das fitas gravadas e do respectivo auto ao juiz (n.º 1 do art. 188.º); o não cumprimento escrupuloso do procedimento de des- truição do material irrelevante para o objecto do processo (n.º 3 do inciso); o incumprimento do n.º 5 do mesmo artigo, que periga, fron- (145) Neste sentido, vide os acs. do STJ de 29-10-1998 (BMJ, 480 (1998), p. 292) e

de 21-10-1992 (BMJ, 420 (1992), p. 230, s.) e o ac. da RC de 16-8-2001, CJ, XXVI (2001), 4, p. 46, s.

(146) Não se referindo ex professo sobre a questão, encontramos no ac. do TC

n.º 407/97 (de 21-5-1997, BMJ, 467 (1997), p. 199, s.) ponto de apoio para este último argu- mento, dado esse Tribunal ter decidido pronunciar-se pela inconstitucionalidade do art. 188.º, n.º 1, quando interpretado de forma menos exigente, por violar o actual art. 32.º, n.º 8, da Lei Fundamental.

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talmente, com a preparação do exercício do contraditório ou com a igualdade de armas.

Por decorrência, a concepção que vimos de criticar fornece uma tutela incompleta ao direito à inviolabilidade do sigilo das comunicações que está em causa na matéria das escutas telefónicas. Consequentemente, con- sideramos que a sanção elencada no art. 189.º é uma única: a «inutiliza- ção» do material probatório.

CONCLUSÃO

O Direito, enquanto construção humana, apenas pode aspirar a uma pálida imagem da perfeição. E o Direito Criminal, nas suas vertentes substantiva e adjectiva, não só porquanto lida de modo umbilical com as grandezas e fraquezas de cada um de nós, mas também na medida em que mais directamente contende com limitações a direitos fundamentais, é, por excelência, o cenário em que as antinomias da convivência comunitá- ria surgem da forma mais desassombrada.

Essas realidades inter-limitadoras comunicam-se, de modo ostensivo, à matéria das proibições de prova relacionadas com a protecção da esfera pessoal, no seio da qual as escutas telefónicas assumem papel cimeiro. O instituto, assim configurado, reclama-se produto de uma sociedade tri- butária do espírito da Ilustração e que tem na Razão e na Liberdade — essa «possibilidade do isolamento» de que falava PESSOA — lídimos esteios

civilizacionais.

A palavra — igualmente em causa como específico bem jurídico no domínio das gravações como meio de prova (art. 167.º) — é uma das dimensões do «círculo do eu» à qual o legislador entendeu conferir espe- cial protecção.

No domínio de um Estado-de-direito democrático, as proibições de prova que analisámos apresentam-se qual cabeça de JANO: por um lado,

reclama-se uma investigação e punição eficazes, no respeito pelas finali- dades adstritas às reacções criminais e, por outro, afirma-se que tal tarefa não pode ser empreendida à custa de uma intervenção abusiva naquilo que os anglo-saxónicos designam por privacy. Daí que o princípio da concordância prática configure a via menos problemática para o sopesa- mento dos interesses em litígio.

Contudo, não tenhamos ilusões: esta última construção, para além de inegáveis condicionalismos históricos, resulta, sobretudo, do tipo de Socie-

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dade e de Estado pretendidos e que, em última análise, não está dependente de abstractos critérios dogmático-jurídicos, mas de considerações (sempre discutíveis) de política criminal, senão mesmo de «política pura».

No que tange às escutas telefónicas (e meios análogos), é já um cha- vão afirmar, por uma banda, a sua especial danosidade e, por outra, a sua indispensabilidade enquanto meio de obtenção da prova em hipóteses de criminalidade grave ou em que a palavra é utilizada como verdadeiro ins- trumentum. Mais ainda: os seus resultados probatórios, observadas as for- malidades prescritas, têm a qualidade daquilo que é genuíno, porque dito atrás de um aparelho capaz de nos fazer expor as nossas fragilidades ou de nos apresentar o lado hercúleo que julgávamos inexistir.

Atentos estes pressupostos, o ordenamento jurídico português consa- gra mecanismos que, num conspecto geral, equilibram as finalidades inves- tigatórias e o sigilo das comunicações, vincando o carácter judicial, fun- damentado, subsidiário e proporcionado do regime das escutas.

Porém, tal não obsta a que, em circunstâncias precisas, as normas processuais necessitem de ajustamentos que, sem descaracterizar o sis- tema, contribuam para um diálogo menos tenso entre a realização da Jus- tiça e os direitos fundamentais consagrados na Constituição. Bem vistas as coisas, são ambas irrenunciáveis exigências de cidadania a reclamar do jurista um papel atento e interventivo.

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