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Ainda que o conceito de governamentalidade ofereça ferramentas valiosas para a análise dos modos como as relações de poder são estruturadas contemporaneamente, algumas limitações foram apontadas por seus críticos. A ênfase no Estado-nação soberano como quadro de referência implícito ou explícito de sua reflexão desconsidera a importância de outras práticas governamentais que não se limitem ao Estado, como organizações internacionais e organizações não- governamentais, só para ficar em outras formas de instituições que exercem formas de governo específicas. Outra crítica se dá em relação “eurocentrismo” de suas

formulações que quase exclui outras formas de organizações políticas em várias partes do globo (Lenke, 2007).

Embora dessubstancialize o Estado e permita pensar o exercício de um governo para além dele, o foco da análise de Foucault deposita-se sobre o mesmo. Talvez, em função da necessidade de responder às criticas que se lhe apresentavam na época de sua formulação. Entretanto, pensar as relações de poder num determinado campo de ação política a partir da noção de governamentalidade não é compatível com sua limitação ao Estado, mas exige que se abarque outros atores/atrizes e organizações que produzem esse campo, como o mercado, os movimentos sociais etc.

Ao invés de pensar a governamentalidade como uma genealogia do Estado contemporâneo, proponho, em seu lugar, pensa-la a partir de uma cartografia de um campo de ação política, que envolve os elementos apontados anteriormente para pensar o Estado. A expressão “campo de ação política” me parece adequada na medida em que evita o inconveniente de denominar um foco ou ponto principal, permitindo descrevê-lo a partir do diversos componentes de um dispositivo, que envolvem inclusive suas agências estatais. Há que se considerar, no entanto, que assim como o que Foucault apontou para uma reflexão sobre o Estado, esse “campo” descrito é uma realidade transicional, algo que não existe, mas também não é ilusório, na medida em que se constitui num complexo de relações que produzem efeitos. A própria institucionalização do Estado, dos movimentos sociais e do mercado, bem como as formas históricas de subjetivação que produzem, podem ser descritas como instrumento e efeito desse campo de ação política.

Nesse sentido, é interessante pensar esse campo de ação à luz dos desdobramentos atuais do conceito de governamentalidade. Um foco dos estudos sobre governamentalidade subsequentes tem sido a transformação do Estado de bem estar social para as chamadas políticas de livre mercado e a ascensão dos projetos políticos neoliberais nas sociedades ocidentais. Diferente de teorias políticas que adotam uma concepção de poder enquanto substância ou jogo de soma zero, em que o exercício de poder por parte de agências não-estatais implicaria em uma diminuição de poder e autoridade por parte do Estado, os estudos de governamentalidade tem caminhado na direção de entender as transformações políticas contemporâneas não como um declínio da soberania dos Estados, mas como uma forma de governo que promove a responsabilidade individual, a gestão

privada, o desenvolvimento das forças de mercado e modelos empresariais em vários domínios sociais (Burdon, Gordon e Miller, 1991).

Numa perspectiva foucaultiana, o desempenho de práticas governamentais por agências não-estatais não significa transferência de poder estatal para outras instâncias. Vale considerar, por exemplo, que diferentes tipos de agências não- estatais são frequentemente encorajadas e financiadas pelos Estados de modo a se conseguir legitimar processos, implantar políticas públicas, avalia-las e monitorá-las. Trata-se, de outro modo, como alguns autores têm apontado, de uma transformação de racionalidade governamental, em que a sociedade civil é redefinida não como um objeto passivo de governo, para ser tomada como uma entidade que é tanto objeto como agente desse governo (Sending e Neumann, 2006).

É o que parece ser o caso, por exemplo, do Fórum LGBT de Pernambuco, cujos grupos não só são financiados pelo Estado (ao menos as que conseguem obter recursos), mas regulados a partir de um marco legal que lhes confere uma personalidade jurídica a partir do seu registro reconhecido por agências estatais. Apenas as organizações não-governamentais possuem direito a voz e voto no Fórum, num modelo de associativismo político que é não só financeira, mas administrativamente dependente de uma formulação estatal. O que não deixa de ser paradoxal na medida em que a maioria das ONGs presentes no Fórum LGBT tem características de grupos informais. Por outro lado, as ações do Fórum tem em grande medida o Estado como objeto de regulação. Vale ressaltar, ainda, que algumas das organizações vinculadas ao Fórum atendem apenas formalmente tais critérios, o que indica não tanto uma fragilidade, mas uma certa fluidez possível nessa relação com o Estado.

Pensar a produção de um campo que envolva tanto agências estatais como não-estatais não implica em disputa ou sobreposição à soberania do Estado. Ao contrário, ambos podem ser compreendidos como produzindo práticas governamentais que ora se somam, ora se contrapõem, gerando tensões e novas formas de governo e mantendo antigas. Mais ainda, significa problematizar os limites entre essas distintas agências e suas respectivas formas de governo.

Se considerarmos, por exemplo, que os órgãos administrativos tanto no governo estadual de Pernambuco, quanto na prefeitura de Recife, que se dirigem especificamente a uma população LGBT são gerenciados por pessoas que foram lideranças do próprio movimento e, que além do mais, a própria criação da

Assessoria Especial da Diversidade Sexual (governo do estado) e da Gerência de Livre Orientação Sexual (prefeitura municipal) foram obtidas a partir de uma demanda dos próprios integrantes do movimento, é possível questionar essas fronteiras estatais tão bem demarcadas.

De modo que, a partir da revisão do conceito de governamentalidade, podemos ampliar nossa pergunta inicial de pesquisa para pensar: como a unidade desse campo de ação política é produzido a partir de um conjunto de forças e práticas discursivas? Como uma variedade de processos e instituições podem ser percebidas como parte de um campo? Como descrever as relações entre as diversas agências (estatais ou não) que compõe esse campo?

Para responder essas perguntas, é necessário antes pensar a própria emergência desse campo político, que não se dá no vácuo, mas a partir de um dispositivo histórico. Em seguida, portanto, traço a constituição desse dispositivo, envolvendo Estado e sociedade civil seguindo os passos apontados pelo próprio Foucault, buscando, contudo, atualizar sua formulação de modo a favorecer a análise dos fluxos e tensões emergentes no cenário atual.