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Busquei na análise apontar não de forma exaustiva, mas a partir de uma perspectiva parcial, modos como a Parada da Diversidade em Pernambuco torna possível a emergência de um campo de ação política híbrido, constituído pela militância, pelo mercado e pelo Estado. Esse campo, apesar da precariedade no que diz respeito fragilidade institucional da própria militância, a segmentação do mercado entre públicos distintos, a marginalização de seus agentes no Estado, tem sido eficaz na produção de um grupo ou população LGBT, que é seu efeito e também instrumento, ao possibilitar a criação de estruturas administrativas no interior do Estado, a afirmação das demandas da militância traduzida na conquista de direitos e a publicização dos estabelecimentos comerciais voltadas a esse público específico.

No entanto, como coloca Butler (2003), a construção desse campo de ação produz zonas claramente políticas e obscurece outras. O choque de sistemas classificatórios “oficiais” de categorias sexuais com outros utilizados para dar conta das relações pessoais parece reiterar uma dicotomia entre público e privado cujos efeitos são imprevisíveis, mas que anunciam o risco de sujeição de uma ética sexual a uma ordem jurídica, produzindo novas hierarquias sexuais. Além disso, a abjeção do carnaval pela política colocada em jogo na Parada da Diversidade faz supor que as estratégias de governo que apontam para um reconhecimento do Estado admitem apenas “problemas sérios” como objeto dessa política, deixando de fora outras possibilidades que dizem respeito ao simples gozo, ou exercício do prazer.

O que eu gostaria de apontar ao final dessa dissertação não é a necessidade de remeter esse exercício do prazer a um reconhecimento do Estado, mas de colocar em questão esse reconhecimento como horizonte de uma política. Não para deslegitimar as estratégias de governo colocada em jogo a partir do esforço de seus próprios organizadores na construção Parada da Diversidade. Que, como eles próprios parecem concordar, são insuficientes. Mas radicaliza-las naquilo que as Paradas produzem, ainda que de forma tímida. Afirmar o que nela se recusa, ou com o que nela se busca deslegitima-la, que é a própria possibilidade de carnavalização da política.

Abrir caminho para, quem sabe, recolocar a abjeção do carnaval como horizonte dessa política. Assumindo-a no que ela é capaz de produzir de lúdico, de criativo e de gostoso. Não apenas ao que se coloca como sério, útil, ou importante.

Radicalizar o prazer como fundamento do seu exercício, recusando ordens, opressões e hierarquias. Inverter a necessidade de reconhecimento pelo Estado, para torna-lo progressivamente desnecessário e obsoleto. Permitir, enfim, a emergência de estratégias de governo que pouco se pode imaginar, mas das quais muito se pode desejar. Tais estratégias, apesar de parcas e pontuais, não são de todo absurdas. Por exemplo, no que diz respeito a prevenção das DST/Aids, o carnaval brasileiro tem sido já a algum tempo um campo fértil para ações e formas de intervenção. Em Recife, o bloco do Laço Branco e o “Nem com uma flor” tem sido realizados anualmente para promoção da equidade de gênero. O que a Parada aponta, entretanto, não é apenas para o carnaval como campo de intervenção, mas para uma carnavalização da política cujos efeitos parecem por em questão o modo como se dá o exercício racional dessa mesma política, de sua regulação.

É nessa oscilação entre um governo carnavalizado e um carnaval governado que parece se constituir o campo de ação política da Parada da Diversidade de Pernambuco. Essa tensão, que não busco aqui resolver ou apontar saídas, parece abrir caminhos de investigação que não puderam ser trilhados com maior afinco no percurso dessa dissertação e produzir efeitos cujos alcances escapam em boa medida as possibilidades dessa análise. Entretanto, espero com isso não exaurir, mas dar continuidade a um processo de diálogos capaz de fornecer argumentos mais robustos para o redirecionamento e/ou consolidação desse mesmo campo de ação política.

Um processo de diálogos que não à toa foi possível iniciar numa pós- graduação em psicologia, cujos integrantes – alguns deles, ao menos – esforçam-se por ir além de uma ciência que naturaliza problemas sociais, que produz modos sutis ou nem tanto de regulação dos corpos e possibilidades de existência, numa política que se desdiz política quanto mais produz seus efeitos deletérios. Contra essa forma de produzir ciência, é que se busca nessa psicologia, a partir de uma série de abordagens teóricas quase nunca harmônicas entre si, outros modos tanto mais válidos, na minha opinião, quanto mais guiados por desejos imprecisos e pouco conceitualizáveis como o que eu sugiro ao fim dessa dissertação, de uma política que adote o prazer como seu horizonte. E mais fortes quanto mais compartilhados.

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