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CAPÍTULO I FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

1. As potencialidades didáticas das canções “literárias” no ensino-aprendizagem de PLE

1.4 O valor didático da canção “literária”

1.4.2 Para a transmissão de cultura

Como manifestação cultural, a música expressa idéias e ideologias, codificando momentos sociohistóricos e situações da vida humana. Assim, ela pode figurar como mediadora das relações entre língua, cultura e ensino e aprendizagem de LE. (Pereira, 2007, pp.51-52)

Língua, cultura e sociedade são indissociáveis, cabendo à língua o papel de transmissor da cultura e de representação de uma imagem do mundo em que se espelham diferentes realidades. (Grosso et. al., 2011, p.11)

De acordo com o QECRL, “(…) o conhecimento da sociedade e da cultura da(s) comunidade(s) onde a língua é falada é um dos aspectos do conhecimento do mundo.” (QECRL, 2001, p.148), como tal o contacto com as culturas da língua-alvo é fundamental para a aprendizagem da mesma. Segundo Daniel Cassany et al., não existem dúvidas acerca da responsabilidade do ensino em aumentar o nível e a bagagem cultural do aprendente, sendo a aula de língua um lugar privilegiado para a transmissão da cultura de um povo, ou seja, a difusão do conjunto das tradições de uma sociedade e de toda a humanidade. (1998, p.538).

O termo “cultura” não é fácil de definir. Já na primeira vez que o termo foi definido, em 1817, por Edward Tylor, foi destacada a sua complexidade por abarcar realidades abstratas – “conjunto complexo, interdependente e interactuante de conhecimentos, crenças, leis, tradições, artes, costumes e hábitos de um determinado conjunto de seres humanos constituídos em sociedade” (Infopédia2, 2019). Mais tarde, Raymond Firth, reestruturou a definição dada por Tylor, definindo cultura como resultando das relações sociais entre indivíduos numa sociedade, além de ser um modo de estar na vida (Infopédia, 2019). São inúmeras as reformulações deste conceito, o que o tornou ainda mais complexo e impossível de ser abarcado por uma única definição.

Sabemos que a cultura é uma realidade em constante mudança, que tanto pode ser um meio de união, como é o caso das novas tecnologias que tornam o mundo numa “aldeia global”, como de separação, ao criar muros e barreiras cada vez mais altos entre os indivíduos. Apesar dos seus contornos pouco definidos que se vão alterando ao longo dos tempos, podemos englobar no conceito de cultura os hábitos e costumes do dia a dia, ou seja, as “(…) facetas do conhecimento e da tradição de uma sociedade” (Infopédia).

A língua portuguesa é língua oficial de nove países e de uma região administrativa especial3; deste modo a língua é núcleo de uma série de diversidades culturais. A pluralidade de culturas, crenças, valores e costumes das diversas sociedades que constituem o espaço lusófono auxiliam e favorecem a aprendizagem da língua portuguesa na medida em que contribuem para o desenvolvimento da competência sociocultural e da consciência intercultural. A competência sociocultural é uma das componentes da competência comunicativa. Esta abarca as convenções sociais como, “(…) regras de boa educação, normas que regem as relações entre gerações, sexos, classes e grupos sociais, codificação linguística de certos rituais fundamentais para o funcionamento de uma comunidade” (QECRL, 2001, 35). Do ponto de vista sociocultural, a canção “literária” traz muitas vantagens no ensino- aprendizagem de uma língua estrangeira. Esta não só engloba dois dos elementos fundamentais da identidade dos países de língua portuguesa - a canção e a literatura -, como, a partir destes, são divulgadas ideologias, crenças, valores, hábitos e tradições de um povo, neste caso, o povo lusófono. Assim, através do seu caráter híbrido temos, por um lado, os ritmos, a musicalidade, o sentimento e a melodia que refletem diferenças entre diversos países de língua portuguesa e, por outro lado, as letras das canções que constituem valiosos instrumentos culturais no papel da afirmação das culturas dos vários países de língua portuguesa, uma vez que a literatura se compromete com a realidade social e histórica do país do qual é proveniente (Xavier, 2017, p.15). Neste sentido, a mesma autora releva a importância que o texto literário possui na representação da cultura de um povo:

A literatura desempenha papel importante na afirmação de uma cultura. Ela permite a preservação de valores que asseguram a continuidade de uma cultura. De modo subjectivo, representa os valores, costumes, crenças, numa palavra, reproduz a História de uma dada sociedade, de forma estética, e seguindo o princípio da verosimilhança, ou seja, o que é possível de acontecer e não exatamente o que aconteceu. (Xavier, 2017, p.15)

Este tipo de canções constituem também um precioso material para trabalhar a consciência intercultural pois, de acordo com Matilde Martínez Sallés, “las canciones, por la propia naturaleza de su

3 Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Macau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. Contudo, Macau não é um

país independente, mas antes uma Região Administrativa Especial da República Popular da China. Além disso, o uso da língua portuguesa na Guiné Equatorial ainda é muito limitado, pois este país apenas adotou o português como uma de suas línguas oficiais em 2007, fazendo parte da Comunidade de Países de Língua Portuguesa apenas desde 2014.

componente musical, poseen una intrínseca interculturalidad, pues pertenecen no sólo a la cultura de la lengua meta sino también a la cultura del aprendiz. (2002, p.6). A consciência intercultural é resultante de um conhecimento e compreensão das diferenças e semelhanças entre “o mundo de onde se vem” e “o mundo da comunidade-alvo” (idem, p.150), isto é, a capacidade de reconhecer e colocar-se no lugar do “outro”. O QECRL prevê que o aprendente adquira as seguintes capacidades interculturais:

• a capacidade para estabelecer uma relação entre a cultura de origem e a cultura estrangeira; • a sensibilidade cultural e a capacidade para identificar e usar estratégias variadas para estabelecer o contacto com gentes de outras culturas;

• a capacidade para desempenhar o papel de intermediário cultural entre a sua própria cultura e a cultura estrangeira e gerir eficazmente as situações de mal-entendidos e de conflitos interculturais;

• a capacidade para ultrapassar as relações estereotipadas. (QECRL, 2001, p.151)

Assim, para uma comunicação intercultural eficaz, o aprendente tem que ser conhecedor dos valores “(…) partilhados e das crenças dos grupos sociais doutros países e regiões, tais como crenças religiosas, tabus, história comum, etc.,” são essenciais para a comunicação intercultural. (QECRL, 2001, p.31)

Quando levamos para a aula de PLE canções “literárias” provenientes da diáspora lusófona, estamos a colocar o aluno em contacto com as várias culturas que constituem os países de língua portuguesa desde o primeiro momento, visto que a canção é o reflexo e produto da cultura. Quando trabalhamos a fundo essas canções, que muitas das vezes são poemas, estamos não só a contribuir para a melhor compreensão do conceito de lusofonia/comunidades de língua portuguesa, como a dar a conhecer os ambientes políticos, sociais e culturais dos países que partilham a língua de aprendizagem (Xavier, 2017, p.199).

Ao lado de uma perspectiva linguístico-literária, persegue-se toda a gama de informações socioculturais emergentes dos textos, demonstrando assim a importância da leitura e da exploração desse material. Os estudos já realizados têm propiciado o levantamento de estratégias discursivo-textuais inscritas nas letras selecionadas ao mesmo tempo que permitem a identificação da música como documento cultural. (Simões et. al., 2006, p.3)

Para além disso, damos a conhecer músicos, escritores e textos que, se não fosse através da canção, ou seriam realidades desconhecidas ou seriam abordadas de forma convencional e aborrecida, inibindo possivelmente o aluno para a aquisição deste tipo de conhecimento. É fulcral que o aprendente de língua portuguesa perceba que há muito mais para além de Portugal e do Brasil; embora com algumas limitações, é possível trazer para a aula de língua poemas e músicas de quase todos os países que integram a CPLP - dizemos “quase” pois nunca é demais referir o contexto da língua portuguesa na Guiné Equatorial.