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CAPÍTULO 1 O PAPEL DO ESTADO E DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

1.3 Participação e cidadania

Ao abordar a questão das políticas participativas, Benevides (1996) auxilia-nos a compreender o conceito “participação” como política que se desenvolve por meio de canais institucionalizados que são criados com a finalidade de garantir a intervenção direta do cidadão em sua formulação, implementação, monitoramento e avaliação.

Por sua vez, participação, para Melucci (2001), significa “tomar parte”, agindo de forma a promover interesses e necessidades de um ator social. Significa também “fazer parte”, reconhecendo-se como parte de um sistema mais amplo, que possui interesses gerais da comunidade.

Em busca de maiores elementos sobre a origem da participação, Dagnino (2004) esclarece que desde os anos oitenta lutava-se pela expansão da cidadania e aprofundamento da democracia, sendo a Constituição de 1988 o marco formal do processo de construção democrática no Brasil, que consagrou o princípio de participação da sociedade civil. Não obstante, este projeto democratizante e participativo emerge da luta contra o regime militar empreendida por setores da sociedade civil, dentre eles os movimentos sociais que desempenharam papel fundamental.

No percurso deste projeto, dois marcos significativos: reestabelecimento da democracia formal (com eleições livres e reorganização partidária) e o confronto/antagonismo que haviam marcado profundamente a relação entre Estado e sociedade em décadas anteriores cedendo lugar para uma aposta de ação conjunta para o aprofundamento democrático. Por consequência, foram implementados Conselhos Gestores de Políticas Públicas e Orçamentos Participativos que tiveram ampla repercussão e significado.

Posto isto e, não obstante, entendemos que o processo de construção democrática enfrenta hoje no Brasil um dilema cujas raízes estão na existência de uma confluência perversa entre dois processos políticos distintos, o primeiro fruto de um processo de alargamento da democracia expressa na criação de espaços públicos e na crescente participação da sociedade civil nos processos de discussão e de tomada de decisão relacionados com as questões e políticas públicas (TEIXEIRA; DAGNINO; SILVA, 2002). Já o segundo, tendo como base a eleição de Fernando Collor de Mello - 1989, que apresenta emergência em um projeto de Estado mínimo e que, por consequência, se isenta progressivamente de seu papel de garantidor de direitos, através do encolhimento de suas responsabilidades e sua transferência para a sociedade civil.

Portanto, “a última década é marcada por uma confluência27 perversa entre esses dois projetos” (DAGNINO, 2004, p. 96). Tal perversidade, segundo a autora, está no fato de que ambos os projetos requerem uma sociedade civil e propositiva, porém, apontando para direções opostas e até mesmo antagônicas. Sendo assim, “a disputa política entre projetos distintos, assume então o caráter de uma disputa de significados para referências aparentemente comuns: participação, sociedade civil, cidadania, democracia” (DAGNINO, 2004, p. 97)28.

Visto este panorama, eis o dilema atual: por um lado, a constituição dos espaços públicos de participação da sociedade civil na gestão representa o saldo positivo das décadas de luta pela democratização. Por outro lado, o processo de encolhimento do Estado e da progressiva transferência de suas responsabilidades sociais para a sociedade civil, tem caracterizado os últimos anos.

As constatações da autora com relação a esta perversidade tem base nas avaliações dos movimentos sociais, de representantes da sociedade civil em conselhos gestores, de membros de entidades não governamentais que vivenciam a experiência de atuação apostando no papel democratizante que eles teriam, realizando os seguintes questionamentos ao identificarem tal dilema: “o que estamos fazendo aqui?”, “que projeto estamos fortalecendo?”, “não ganharíamos mais com outro tipo de estratégia que priorizasse a organização e a mobilização da sociedade, ao invés de atuar junto com o Estado?” (grifos da autora).

Percebemos assim, conforme exposto por Dagnino (2004, p. 4), que

27 O que essa confluência determina é um obscurecimento dessas distinções e divergências, por meio de um

vocabulário comum e de procedimentos e mecanismos institucionais que guardam uma similaridade significativa (DAGNINO, 2004, p. 99).

28 Segundo a autora, as noções de sociedade civil, participação e cidadania mantem entre si uma estreita relação

e foram escolhidas por que são vistas como elementos centrais desse deslocamento de sentidos, enquanto mecanismo privilegiado na disputa política que se trava hoje ao redor do desenho democrático da sociedade brasileira.

o risco —real— que elas percebem é que a participação da sociedade civil nas instâncias decisórias, defendida pelas forças que sustentam o projeto participativo democratizante como um mecanismo de aprofundamento democrático e de redução da exclusão, possa acabar servindo aos objetivos do projeto que lhe é antagônico. Tais reflexões nos fazem perceber a imensa complexidade desse processo que deve resistir a análises simplistas, envolvendo outras tantas questões que não analisaremos aqui e que perpassam a ideia de conferir maior peso explicativo a noção de projeto político, às relações Estado – sociedade e a clivagem de imagens criadas, do tipo: “nem a sociedade civil é um polo de virtudes democratizantes e nem o Estado é o obstáculo fundamental à participação e à democratização” (DAGNINO, 2004, p. 98).

Não obstante, o crescimento acelerado do papel das Organizações Não-Governamentais, a emergência do Terceiro Setor e das Fundações Empresariais, com ênfase em uma filantropia indefinida (FERNANDES, 1994; LANDIM, 1993; ALVAREZ, 1999, PAOLI, 2002; SALAMON, 1997) e a marginalização dos movimentos sociais, evidenciam o movimento de redefinição da noção de sociedade civil, resultando na crescente identificação entre sociedade civil e ONG, onde o significado da primeira se restringe apenas a designar cada vez mais essas organizações quando não em mero sinônimo de terceiro setor (ALVAREZ, 1999).

Assim, para Dagnino (2004, p. 102), se

[...] por um lado, a re-significação da participação acompanha a mesma direção seguida pela reconfiguração da sociedade civil, com a emergência da chamada

participação solidária e a ênfase no trabalho voluntário e na responsabilidade social,

tanto de indivíduos quanto de empresas.

Ao que parece, acaba ocorrendo a adoção de uma perspectiva privatista e individualista, capaz de substituir o significado coletivo da participação. Não obstante, identifica-se também a ideia de solidariedade, que, segundo a autora, é despida de seu significado político e coletivo. Por consequência, tende a ocorrer a despolitização da participação, pautada também pela não utilização dos espaços públicos nos quais ela pode ter lugar, comprometendo o seu significado político e potencial democratizante por formas estritamente individualizadas de tratar questões tais como desigualdade social e pobreza.

Por outro lado,

[...] em grande parte dos espaços abertos à participação de setores da sociedade civil na discussão e formulação de políticas públicas com respeito a estas questões, estes se defrontam com situações onde o que se espera deles é muito mais assumir funções e responsabilidades restritas à implementação e execução de políticas públicas, provendo serviços antes considerados como deveres do estado, do que compartilhar o poder de decisão quanto à formulação dessas políticas (DAGNINO, 2004, p. 103). Portanto, o significado da participação é redefinido e reduzido à gestão, contrariando o projeto concebido, marcada pelo objetivo da partilha efetiva do poder, entre Estado e sociedade civil (DAGNINO, 2004), por meio do exercício da deliberação no interior dos espaços públicos.

Por fim, a noção de cidadania, também conhecida como “nova cidadania” ou cidadania ampliada, “começou a ser formulada pelos movimentos sociais que, a partir do final dos anos setenta e ao longo dos anos oitenta, se organizaram no Brasil em torno de demandas de acesso aos equipamentos urbanos como moradia, água, luz, transporte, educação, saúde, etc.” (DAGNINO, 2004, p. 10).

Inspirada na sua origem pela luta pelos direitos humanos, baseada em características de sociedades contemporâneas, considerando o surgimento sujeitos sociais, bem como de direitos sociais de um novo tipo, com ampliação do espaço da política. Esse projeto, para a autora, reconhece o caráter intrínseco da transformação cultural com respeito à construção da democracia.

Um primeiro elemento que surge é a concepção de “um direito a ter direitos” que envolve tanto provisões legais (ao acesso a direitos definidos), quanto a criação de novos direitos. Buscando situar melhor o leitor a respeito, como exemplo desse novo direito: aquele que não inclui somente a igualdade, mas o direito à diferença, que amplia o direito à igualdade. O segundo elemento repousa sob a perspectiva de que a nova cidadania requer a constituição de sujeitos sociais ativos, também conhecidos como agentes políticos, definindo e lutando pelo o que definem ser seus direitos. O terceiro e último elemento, diz respeito a ideia de que a nova cidadania ultrapassa concepções do tipo: luta pelo acesso, inclusão, participação e pertencimento a um sistema político. O que está em jogo, de fato, é o direito de participar da própria definição desse sistema, ou seja, a criação de uma nova sociedade.

Percebe-se a importância que essa noção adquiriu na emergência de experiências participativas, como o caso dos Orçamentos Participativos, em que os setores populares e suas organizações lutam para abrir um canal que leve ao Controle Democrático do Estado, mediante a participação ativa dos cidadãos no poder (coparticipantes em governos locais).

Sendo assim,

O processo de construção de cidadania como afirmação e reconhecimento de direitos é, especialmente na sociedade brasileira, um processo de transformação de práticas arraigadas na sociedade como um todo, cujo significado está longe de ficar limitado à aquisição formal e legal de um conjunto de direitos e, portanto, ao sistema político- judicial. A nova cidadania é um projeto para uma nova sociabilidade: não somente a incorporação no sistema político em sentido estrito, mas um formato mais igualitário de relações sociais em todos os níveis, inclusive novas regras para viver em sociedade [...] (DAGNINO, 2004, p. 12).

Portanto, esse projeto significa, mais do que nunca, considerando a conjuntura política em nosso país (fruto do somatório de suas vivências), uma reforma tanto moral, quanto intelectual, que requer sujeitos mais ativos.

Ao nosso ver, tais reflexões aprofundadas possuem pertinência, especialmente nesta etapa do estudo, por entendermos que não se pode pensar em avaliação de políticas sociais, sem antes definir o arcabouço teórico que lhe dá sentido e direção.