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partiu para o Senhor O leão, naquele dia, por uma disposição de Deus, não estava na laura Retornou algum tempo depois e buscou o monge Ao vê-lo o discípulo do

No documento Padres Do Deserto (páginas 191-200)

monge lhe disse: "Jordão, nosso monge nos deixou órfãos. Partiu para o Senhor.

Mas vem aqui e come". Mas o leão não queria comer. Não parava de girar os olhos

para todos os lados para ver Gerásimo. soltando grandes gemidos. Vendo-o, os

outros Padres lhe acariciavam o dorso e lhe diziam: "Gerásimo partiu para o Senhor

c nos deixou". Mas Jordão redobrava seus gritos e seus queixumes e mostrava, com

sua voz, seu aspecto, seus olhos, a mágoa que sentia de não mais ver o monge.

Finalmente, o discípulo de Gerásimo levou-o ao lugar onde haviam enterrado o

monge. Fica a meia milha da igreja. O discípulo se ajoelhou sobre o túmulo e disse ao

leão: "Eis onde está nosso monge". Então, Jordão bateu violentamente a cabeça

contra a terra e. num grande rugido, morreu imediatamente sobre o túmulo do

monge.

De todos os leões do deserto, são manifestamente os do Jordão os que dão prova dos maiores dons em matéria de gentileza e de polidez. Numa trilha estreita, ao longo do rio, certo leão se deita por conta própria num arbusto de espinhos para deixar passagem a um anacoreta. Um outro, indo ao rio beber, avistou em seu caminho habitual um monge deitado de través (trata-se de um monge que não encontrara nada melhor para expiar um pecado senão deixar-se devorar por um leão) e, "erguendo-se sobre as patas traseiras, saltou por

A CARNE DOS ANIOS

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Visto que esse conheceu tentações e realizou milagres, ninguém, no deserto, pode tornar-se um santo se não conhecer também tentações e não cumprir milagres idênticos. A vida no deserto é uma repetição simbólica da vida de Cristo, até e

sobretudo na sua Crucifixão, como testemunha esse tema do Monge

crucificado

que

retorna tão freqüentemente na literatura ascética e mística do deserto. Pois a solidariedade nos milagres implica uma igual solidariedade nos sofrimentos.

Isso posto, os diferentes milagres realizados pelos santos do deserto diferem às vezes bem profundamente dc seus modelos evangélicos. É que, nesse ínterim, o meio cultural mudou, os coptas do século IV não são os judeus do século I. É nesse sentido que todo milagre é um fato "histórico": por mais que o episódio milagroso permaneça o mesmo, seu sentido e seu alcance variam. Tomemos um exemplo: os milagres de ressurreição dos mortos. Nos Evangelhos, a ressurreição da filha de Jairo e a de Lázaro são milagres "em estado puro", no sentido de serem apresentados de saída como tais, para provar ao povo judeu a maior glória de Deus (o de Lázaro, pelo menos). Na literatura do deserto, ao contrário, as ressurreições dos mortos nunca são operadas por si mesmas, mas sempre por razões secundárias e práticas: fazer falar algum cadáver para que denuncie um criminoso, ou para que forneça uma informação preciosa suscetível de salvar um vivo. A própria ressurreição torna-se um epifenômeno, uma espécie de último recurso ao qual o santo é obrigado a lançar mão para alcançar o objetivo buscado. A tal ponto que, uma vez obtida a informação, ele deixa, no mais das vezes, o "ressuscitado" mergulhar dc novo na morte e não se importa muito com isso!

Assim, na Vida

de Macário o Antigo

, vemos Macário ressuscitar um

cadáver para confundir um herege que nega a ressurreição dos mortos. De outra feita, ele salva a vida de um inocente, acusado de ter assassinado alguém, interrogando o morto que lhe responde do fundo de seu sepulcro e inocenta o réu. E como a multidão, a um só tempo estupefacta e furiosa, suplica a Macário que pergunte ao morto quem é então o verdadeiro culpado, o santo responde: "Isso não farei. Basta-me livrar um inocente sem me meter a fazer conhecer o culpado!" Vemos aqui a que ponto a ressurreição propriamente dita é um fenômeno secundário: nem sequer ocorre a Macário a idéia de "aproveitar" a ocasião para deixar o ressuscitado com vida! Evidência mais nítida

PADRES DO DESERTO

199

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João Mosco também cita numerosos casos de imobilização a distância. Santo Adolas, por exemplo, aquele recluso que vivia na Meso-potâmia, no oco de um plátano, imobiliza um bárbaro que se preparava para atacá-lo. Também esse relato, sóbrio e simples, de um sarraceno:

Eu tinha partido para a caça na montanha do

apa

Antônio. Caminhando, avistei

um monge, sentado, na montanha, lendo. Aproximei-me para despojá-lo, talvez

para matá-lo. Cheguei perto dele. Então, ele estendeu a mão direita na minha

direção dizendo: "Pára!" Fiquei dois dias e duas noites nessa posição, sem poder me

mexer. Ao cabo desse tempo, eu lhe disse: "Pelo. teu Deus, livra-me!" Ele me

respondeu: "Vai em paz!" E eu parti.

Assinalemos, enfim, toda uma série de milagres menos espetaculares, mas que não podemos deixar de encontrar no deserto e que pertencem àquilo que se chama nos dias de hoje os fenômenos parapsicológicos: telepatia, sonhos premonitórios, profecias sempre realizadas etc. Todos esses fenômenos são evidentemente moeda corrente na vida no deserto, tão corrente que mal são considerados milagres, sendo mencionados no mais das

vezes incidentalmente ou por acaso4.

4A respeito desses fenômenos parapsíquicos, de que os textos do deserto citam numerosos

exemplos, remeiamo-nos ao melhor conhecedor das religiões e das técnicas religiosas orientais, Mircea Eliade. No capítulo "Percepção extra-sensorial e poderes paragnòmicos", de seu livro

Mythes, Rêvc et Mysière (Gallimard, p. 1 1 7 a 128), Mircea Eliade. apôs ter estudado iodos os

depoimentos dos pesquisadores e dos etnólogos sobre as capacidades extra-sensoriais dos xamàs e dos magos, conclui, como Ernesto de Manino, que estudou in loco ceno número desses poderes, na realidade de faculdades paranormais de conhecimento entre os xamàs Os casos estudados por Ernesto de Manino (clarividência, leitura do pensamento, clarividência profética) se encontram idênticos nas Vidas dos Padres do deserto. Mircea Eliade escreve então: "Para nosso propósito, o importante é sublinhar a perfeita continuidade da experiência paranormal dos primitivos até nas religiões mais evoluídas. Nem um só milagre xamânico há que não seja atestado tanto nas

tradições das religiões orientais quanto na tradição cristã". Isso vale sobretudo para as

experiências xamânicas por excelência: "vôo mágico" e o udominio do fogo" (p. 320). Um pouco

mais adiante, ao falar do sentido dessas experiências xamânicas e desses poderes aos olhos

daqueles que os possuem, Mircea Eliade assume exatamente os pontos de vista dessa obra e das de Aldous Huxley quando escreve: "A Yoga, o budismo, tanto quanto os métodos

No documento Padres Do Deserto (páginas 191-200)