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Patriarcalismo, capitalismo burguês e moralidade psiquiátrica: o sofrimento psíquico feminino

CAPÍTULO II O SOFRIMENTO PSÍQUICO FEMININO SOB A ÓTICA DAS

2.1 Patriarcalismo, capitalismo burguês e moralidade psiquiátrica: o sofrimento psíquico feminino

Historicamente, o estabelecimento da propriedade privada pelas sociedades agrícolas e o reconhecimento da paternidade como fator primordial na continuidade geracional e usufruto dos direitos de herança exigiram novas configurações sociais, familiares e nas relações de trabalho, onde o homem foi adquirindo certas vantagens em relação à mulher. Tais acontecimentos são tidos como marcos na construção do chamado patriarcalismo, sistema organizacional e de pensamento social que procurou firmar o poderio masculino sobre o feminino (Narvaz & Koller, 2006; Santos & Oliveira, 2010; Silva, 2012).

Na estrutura patriarcal original, a figura central no seio família era ocupada pelo pai (pater familiae) que detinha todo o poder sobre as mulheres, filhos, escravos ou vassalos, possuindo, inclusive, direitos de vida e morte sobre eles (Silva, 2012). Este poder assumido pelo pai estendia-se, portanto, ao marido, ao senhor. Tal padrão de poder, no entanto, como assinalou Silva, não era universal, sendo assimilado de diferentes formas pelas diversas culturas, a depender do grau de contato entre os povos. Mas, de maneira geral, segundo a autora citada, essa nova organização social procurava legitimar o domínio dos homens sobre as mulheres.

Assim, durante anos, contando com a influência da religião – em especial, o Cristianismo no período que compreendeu a Idade Média - o ideal patriarcalista de superioridade masculina dominou o pensamento e comportamento das sociedades ocidentais, atribuindo maior valor às atividades e aos papeis desempenhados pelos homens em detrimento aos das mulheres (Lemos, 2007; Narvaz & Koller, 2006, Silva, 2012). Nesse ínterim, a imagem construída sobre as mulheres sofreu grandes transformações, sendo esta vista muitas vezes de forma antagônica, ora tratada como pecadora e demoníaca, ora como santa, o que segundo Hernandez e Barbosa (2013) e Lemos (2007) pode ser observado nas imagens, representações e relatos bíblicos

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associados às figuras de Eva, Maria Madalena e da Virgem Maria. Tais representações, segundo Hernadez e Barbosa (2013) remetiam a um discurso moralizador que, sob o olhar patriarcal, aludiam à ideia da obediência e servidão incondicional das mulheres aos homens e suas leis. No mundo ocidental, os dogmas cristãos patriarcais constituíram-se para os autores citados, como uns dos primeiros instrumentos de controle sobre as mulheres e como elementos fundamentais na estruturação das desigualdades de gênero.

Com a Modernidade, a ideia de supremacia masculina ganha novos contornos. O iluminismo renascentista e a revolução capitalista ocorridos entre os séculos XVII e XIX foram responsáveis por uma série de mudanças nas sociedades ocidentais, com profundo impacto no processo social, cultural, político e econômico. Mas se por um lado, tais acontecimentos foram responsáveis pelo declínio da estrutura patriarcal tradicional, segundo Araújo (2011) também deram margem ao fortalecimento da classe burguesa que diante suas necessidades de autoafirmação e busca pelo poder procurou redefinir o lugar e o papel assumidos por homens e mulheres. Neste sentido, com o objetivo de manter a nova ordem e fortalecer o desenvolvimento econômico, o ideal burguês, segundo o autor citado, instituiu outras formas de sociabilidade, hábitos e costumes, tendo por foco a família enquanto principal receptora e reprodutora destas normas, reutilizando para tal, pensamentos e práticas da estrutura patriarcal. A imagem da família burguesa, segundo Araújo (2011), ainda era constituída por um casal (pai e mãe) e filhos, organizada de maneira hierarquizada com base em uma rígida divisão de papéis – sexuais e reprodutivos – que reforçou a separação entre homens e mulheres, já existente, no âmbito público e privado. O pensamento econômico capitalista que se desenvolvia à época, de acordo com Alves (2012), forneceu evidências para a expansão dessa divisão ao substituir o lugar de produção da casa (utilizada pelos artesãos) para a fábrica (utilizada a partir de então pelos operários). Com base na visão patriarcalista, esta estrutura econômica se apropriou da ideia de inferiorização e subordinação feminina para desqualificar o trabalho das

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mulheres (no caso, das mulheres da classe abastada) ou oferecê-las condições ainda mais precárias de trabalho (no caso, das mulheres da classe operária) (Nogueira, 2010; Santos & Oliveira, 2010, Silva, 2012).

À época, também mostrava ser de grande importância para o capital o lugar assumido pela mulher na esfera doméstica, uma vez que esta seria não só responsável pelo cuidado, mas também pela garantia da reprodução de novos trabalhadores, ou seja, de novas forças de trabalho (Nogueira, 2010). Estabelecia-se então, o lugar e o papel que homens e mulheres deveriam ocupar na sociedade capitalista. De forma geral, reforçou-se o espaço público como o lugar do homem e seu papel de provedor, sendo responsável pela proteção e sustento da família. Enquanto à mulher ficava cada vez mais confinada à esfera privada, com responsabilidade pela gerência familiar, pela procriação e os cuidados com o lar, com as crianças e com o marido. Apesar desta estrutura organizacional familiar envolver de maneira mais efetiva as famílias de classe abastada, logo seus ideais foram transferidos para a classe popular e por ela introjetados.

Essa desigualdade de territórios e papeis ocupados por homens e mulheres deu margem à propagação de ideias relacionadas a supostas naturezas biológicas e psíquicas, atribuindo-se às mulheres uma condição intelectualmente inferior e emocionalmente instável (Garcia, 1995; Tarso, 2009; Vieira, 2008). Relacionada especificamente ao campo reprodutivo, a imagem construída em torno das mulheres foi a de um ser criada por e para o homem. Maternidade, monogamia, obediência, amor incondicional e inibição da sexualidade foram alguns dos aspectos ligados a esta representação (Fávero, 2010; Garcia, 1995; Hernadez & Barbosa, 2013). Assim, a ideologia patriarcalista de inferiorização feminina veio servir perfeitamente a hegemonia do capital e a articulação destes dois sistemas, segundo Saffioti (2015), veio solidificar a condição de subserviência e opressão das mulheres. Como forma de legitimar o pensamento moderno do ser homem e ser mulher, o ideal burgûes passou a contar, a partir do

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século XIX, com uma importante aliada: a ciência, em especial, a Medicina Social, sob o seu olhar higiênico e psiquiátrico (Del Priore, 2009; Vasconcellos & Vasconcellos, 2007; Zanello & Bukowitz, 2011).

No final do século XVIII e início do século XIX, a ciência positivista estava em seu apogeu e seu discurso atravessava os muros acadêmicos, ganhando espaço em meio à sociedade. No tocante a Medicina, esta foi responsável por um fenômeno que ainda hoje é de grande interesse para os estudiosos da saúde: a medicalização da vida. Esta, segundo Vieira (2008), consiste em transformar aspectos da vida cotidiana em objetos de estudo e de intervenção médica de forma a assegurar a conformidade com as normas sociais. Tal atitude foi bastante difundida em meio à medicina psiquiátrica, apresentando traços desta visão até os dias de hoje. Uma rápida explanação sobre a representação da loucura é necessária para se entender melhor essa realidade.

Na obra “História da Loucura na Idade Clássica”, Foucault (2012) vai mostrar como os discursos e a representação da loucura e do louco sofreram modificações ao longo do tempo até virem a servir como imposição a lógica capitalista burguesa vigente. Antes do século XIX, segundo o autor, a loucura foi retratada de diferentes formas. Até a Idade Média, por exemplo, foi vista sob o olhar mítico-religioso, portanto, atribuída à castigos divinos e/ou possessões demoníacas. Nesse período, os loucos vagavam em meio às outras pessoas, de cidade em cidade, em busca de paz e redenção. Com o racionalismo científico, loucura virou expressão de desrazão e, portanto, segundo Foucault, enquadrada no quadro das demais condições marginalizadas e excluídas da sociedade livre e pensante como a pobreza e a libertinagem. Trancafiada nos asilos, a loucura ganhou um caráter de moralidade, sua expressão ultrapassava os limites da normalidade racional, por isso devia ser controlada e disciplinada. É somente no século XIX, com o nascer da medicina psiquiátrica que a loucura ganha um olhar diferenciado e assume o status de doença, de alienação mental.

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Isto posto, a ciência psiquiátrica em seus primórdios apresentava um duplo objetivo: de um lado cuidar da insanidade – objetivada agora enquanto doença, portanto tratável e curável - e de outro servir de controle moral das pessoas (Birman, 1978; Foucault, 2012; Garcia, 1995; Vasconcellos & Vasconcellos, 2007). Isto porque, segundo Birman (1978) e Garcia (1995), ao tentar consolidar um padrão burguês de comportamentos e normas sociais impostos à época, o discurso psiquiátrico pregava que muitos dos distúrbios psíquicos estavam ligados a fatores de ordem moral. Por causas morais, os autores citados fizeram referência ao desvio do comportamento socialmente aceitável, o que, segundo eles, bastava para enquadrar na definição de loucura qualquer atitude e/ou comportamento considerado atípico para o padrão burguês.

Assim, para Vasconcellos e Vasconcellos (2007), quando não era possível encontrar referenciais materiais e simbólicos que justificassem determinada atitude e/ou comportamento de uma pessoa ou quando esta não conseguia se manter dentro dos padrões de normalidade estabelecidos, a sociedade tendia a caracterizá-la como louca. Cabia, portanto, segundo estes autores, ao Estado, à ciência médica e à família unir “forças” (no sentido literal e figurativo da palavra) para que esta sanidade fosse (re)estabelecida. Deste modo, no início do século XX, atendendo ao sistema patriarcal-capitalista, as teorias do controle moral ganham status de ciência sob a égide da medicina psiquiátrica. Todavia, mas do que a preocupação e/ou cuidado com o sofrimento do outro, estas teorias tentaram mostrar a importância de se reforçar os bons hábitos e reeducar as pessoas a fim de tornarem-nas bons cidadãos e trabalhadores, dentro da ordem e moral vigentes (Birman, 1978; Garcia, 1995, Vasconcellos & Vasconcellos, 2007).

No caso das mulheres, este pensamento trouxe algumas repercussões para suas vidas. A busca pela normalidade foi responsável pela reclusão aos asilos de um número considerável de mulheres que não se enquadravam nos modelos de feminilidade patriarcais tradicionais, em especial os de filhas obedientes, boas esposas e mães. Nestes casos, a loucura, como bem

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colocou Garcia (1995, p. 16) aparecia como “uma penalidade por serem mulheres e por ousarem não serem mulheres”.

Na verdade, o interesse da Medicina pela mulher evidenciava as ansiedades que o ser feminino despertava no meio médico, ora trazendo admiração pela capacidade de gerar vida, ora envolvendo uma sexualidade que, por contrariar as normas, precisava ser controlada (Del Priore, 2009; Tarso, 2009). Com foco principalmente na reprodução, reforçando o papel natural de ser mãe, o discurso médico psiquiátrico logo relacionou a causa das enfermidades psíquicas femininas ao seu corpo, especificamente, aos seus órgãos sexuais e ciclos reprodutivos (Del Priore, 2009; Garcia, 1995; Vasconcellos & Vasconcellos, 2007). Vigorava a ideia, de acordo com Machado e Caleiro (2008), de que as transformações físicas e psíquicas trazidas pela puberdade afetavam o humor das mulheres, sendo responsáveis pela apresentação de uma série de comportamentos desviantes, que podiam incluir desde pequenos delitos até casos considerados mais graves como a erotização exarcebada e o suicídio.

Deste modo, para Garcia (1995) e Tarso (2009), a ligação entre o sistema nervoso feminino e o sistema reprodutivo, atestava a visão de que a mulher, por sua natureza biológica, era mais vulnerável às doenças mentais que os homens. Segundo as autoras, tal crença teve grandes repercussões sociais à época, servindo de justificativas, por exemplo, para o desemprego feminino, para a negação dos direitos políticos das mulheres e a razão para mantê-las sob o controle masculino. Para aquelas que ousaram transgredir esta suposta natureza, viver segundo sua vontade e desejos, ou mesmo expressar sua capacidade intelectual e criativa, coube o diagnóstico de louca, alienada (Couto-Oliveira, 2007; Garcia, 1995; Machado & Caleiro, 2008; Tarso, 2009).

Tal controle nem sempre foi totalmente aceito pelas mulheres e muitas desafiaram a ordem imposta. Dentre os principais comportamentos transgressores apresentados pelas mulheres a essa normativa médica e também os mais coibidos pela sociedade burguesa estavam os de

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natureza sexual (Garcia, 1995; Machado & Caleiro, 2008). A sexualidade feminina permitida era apenas aquela concebida dentro do casamento e com fins reprodutivos. Assim, a insatisfação sexual era causa de “nervosismo” em muitas mulheres, sendo que muitas delas, segundo Garcia (1995), se utilizavam deste nervosismo como estratégia de defesa ou mesmo como transgressão às condições de vida e de opressão. A prostituição, as relações fora do casamento ou qualquer forma de manifestação da sexualidade pelas mulheres eram tidas, segundo a autora, como imorais e anormais, e serviam para atestar sua insanidade. As principais doenças psíquicas apresentadas pelas mulheres à época eram a histeria e a anorexia nervosa, ambas relacionadas ao corpo feminino e à privação das paixões (Garcia,1995; Silveira, 2000; Vieira, 2008). Como colocou Garcia (1995, p. 59)

No final do século XIX, histeria e feminilidade se tornaram termos praticamente intercambiáveis… Entre as predisposições, os sintomas e os efeitos da histeria, os médicos citavam o ciúme, a inveja, o capricho, a vaidade, o egoísmo, o exibicionismo, a extravagância, a instabilidade, a fraqueza de vontade, a sensibilidade aguçada, a emotividade, a suscetibilidade, a sugestionabilidade e a impressionabilidade. Todas essas catalogações identificam de forma preconceituosa a natureza feminina, de maneira que a linha que separava a mulher normal da histérica era muito fina e a histeria não era nada mais do que a exacerbação dos papéis tão atribuídos às mulheres em geral.

Já no início do século XX, a psicanálise freudiana vem contribuir com a propagação da ideia da histeria feminina relacionada aos aspectos sexuais reprimidos. Apenas com as mudanças políticas, sociais e sexuais e com o aumento das reinvindicações femininas pelas conquistas de seus direitos ocorridas ao longo do século passado é que o sofrimento psíquico feminino vem ganhar contornos psicossociológicos (Silveira, 2000). Contudo, ainda hoje é

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possível observar crenças e condutas em saúde que fazem referência a concepção da histeria ou do nervosismo (referidas agora como “piti”), enquanto doença ligada à natureza feminina (Azevedo, 2010; Medeiros, 2003; Silveira, 2000). Tal crença constitui-se assim, em um dos principais desafios a serem superados nas práticas de saúde atuais de forma que se possa desenvolver um cuidado verdadeiramente integral às mulheres que padecem de sofrimento psíquico.

2.2 Sofrimento psíquico feminino e relações de gênero na atualidade: velhas expressões e/ou