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Política Nacional de Saúde Mental e cuidado nas cidades rurais: um diálogo necessário

CAPÍTULO III CIDADES RURAIS: ACESSO AOS SERVIÇOS, PRÁTICAS DE

3.2 Política Nacional de Saúde Mental e cuidado nas cidades rurais: um diálogo necessário

Desde meados dos anos 70-80, e assim contemporâneo ao Movimento Sanitário, procura-se implementar no Brasil a chamada Reforma Psiquiátrica (RP). Com origem inscrita em um contexto internacional e inspirada na experiência italiana de desinstitucionalização da

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loucura, este movimento tem por finalidade a superação da exclusão e violência (física e simbólica) oriunda da internação manicomial aos que padecem de sofrimento psíquico, substituindo-as por serviços que resgatem a cidadania e que sejam de base comunitária (Brasil, 2005). Pautada nos princípios da RP, a atual Política Nacional de Saúde Mental (PNSM) propõe a realização de ações e serviços de atendimento aos usuários para além do modelo sintomático e medicalizante, devendo estes, para os casos considerados mais graves, serem realizados em serviços substitutivos aos manicômios e, para os menos graves, nos serviços primários, transferindo o foco da atenção da cura para a intervenção em saúde (Brasil, 2005). Nesta ótica, servem como diretrizes para a prática dos profissionais de saúde, segundo Hirdes (2009), o falar não mais em doença, mas sim em saúde, não em tratamento, mas em projetos terapêuticos, não mais em exclusão, mas em cidadania, reabilitação e reinserção social e, sobretudo, em projetos de vida. Para fazer valer tais objetivos a PNSM propõe que o tratamento seja feito em serviços de base comunitária, estabelecendo como espaços de cuidado os Centros de Atenção Psicossocial, as Residências Terapêuticas (RTs), maior disponibilidade de leitos em Hospitais Gerais em substituição aos leitos psiquiátricos para os momentos de crise e os cuidados integrais na Atenção Básica (Brasil, 2005). Embora esteja clara a importância destes novos espaços para a construção de um novo fazer em saúde mental, a PNSM ainda encontra muitos obstáculos para sua consolidação.

Um destes obstáculos refere-se a própria cobertura assistencial dos serviços substitutivos, onde a distribuição espacial ainda reflete as desigualdades estruturais entre e intrarregiões brasileiras, permanecendo os grandes centros urbanos como os principais beneficiários (Brasil, 2012). Autores como Bezerra Jr (2007) já apontava a dificuldade de se construir, num país de dimensão continental e grande diversidade cultural como o Brasil, um modelo assistencial em saúde mental que fosse igualitário em toda sua extensão. Para o autor citado, seria preciso rever as noções de rede e território, centrais às proposições da PNSM, não

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podendo ser estas pensadas e aplicadas de forma idêntica em contextos socioculturais tão diferentes como nos pequenos municípios do Norte/Nordeste e nas grandes megalópoles da Região Sul/Sudeste. Não levar isso em consideração, ainda segundo o autor, pode colocar em questão, por exemplo, a importância e a efetividade do processo de territorialização/municipalização como já discutido, uma vez que ainda é comum, para a maioria dos usuários da saúde mental, em especial, das cidades rurais, o deslocamento de sua cidade (ou mesmo estado) para outra de maior porte na tentativa de receber atendimento adequado e eficiente. Movimentos conservadores, sobretudo, da categoria médica psiquiátrica tradicional, tomam essas evidências como elementos de desassistência, em especial em situações de atenção à crise e tecem críticas ferrenhas as fragilidades e eficácia desta rede e serviços (Vasconcelos, 2010).

Todavia, o que mais preocupa os defensores da PNSM são as questões de ordem sociocultural, especialmente, no tocante às crenças e práticas arraigadas em saúde. Sem desconsiderar a importância que os serviços substitutivos representam para as pessoas com transtornos mentais e seus familiares (Kantorski et al., 2012), estudos mostram, por exemplo, que as práticas dos profissionais nestes novos espaços ainda representam o saber biomédico e medicalizante, estando aquém do que apregoa os pressupostos da RP (Bichaff, 2006; Jorge, Almeida, Sales, Pinto & Sampaio, 2010). Como propõe a PNSM, o processo de trabalho a ser desenvolvido nestes serviços deve propiciar a reabilitação psicossocial em ações multi e interdisciplinares, de maneira a envolver o usuário de forma integral e assim promover sua autonomia (Brasil, 2005). Para tanto, faz-se indispensável a utilização de dispositivos e ferramentas como acolhimento, vínculo, corresponsabilização do usuário e de seus familiares, bem como a própria resolubilidade dos serviços, seja do ponto de vista da oferta como do fluxo de atendimento e capacitação profissional (Jorge et al.; 2010).

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Na Atenção Básica, os cuidados das pessoas com transtornos mentais vêm se apresentar não só como uma estratégia para reforçar a importância deste nível de atenção enquanto porta de entrada aos serviços, como também o consolidar como um importante ponto de apoio a rede de saúde mental, pois muitas das demandas referentes, especificamente, ao TMC e às relacionadas ao uso de substancias psicoativas são ali identificadas (Brasil, 2013). Para atender estas demandas, os profissionais dos serviços primários contam com o auxílio de uma série de instrumentos de intervenção e cuidado, como a visita domiciliar conjunta, a interconsulta, a formação de grupos operativos e/ou de terapia comunitária e atividades integradas aos diversos serviços como reforço às redes de suporte social (Brasil, 2011; 2013). Contudo, como já colocado neste estudo, muitas são ainda as dúvidas e os receios que os profissionais que atuam neste nível de atenção possuem com relação a estas demandas. Isto porque, na atenção primária, os profissionais apresentam dificuldades em diferenciar, por exemplo, o que seja um sofrimento psíquico comum - que necessita de acolhimento, escuta e suporte - e aquele sofrimento mais grave com necessidade de ampliação do tratamento, uso de terapias medicamentosas e intervenções psicoterápicas mais especializadas (Brasil, 2011).

Deste modo, salvo algumas experiências exitosas, o que prevalece no cotidiano dos serviços (seja substitutivos ou de cuidados primários) são práticas conservadoras - com a figura do psiquiatra/médico generalista aliada a prescrição e uso de medicamentos como os principais atores do processo, em especial, em casos de crise. Tais práticas ainda são constantemente reforçadas no processo de formação de muitos destes profissionais e alimentadas pelas precárias condições de trabalho a que as equipes estão expostas (Alves, Dourado & Côrtes, 2013; Vasconcelos, 2010). Assim, ainda é desafio para a PNSM fazer com que seus pressupostos ultrapassem o mundo do discurso apreendido e se torne realidade concreta no dia a dia dos serviços.

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A educação permanente em saúde mental é uma estratégia que se coloca no sentido de sanar esta problemática promovendo espaços de trocas de saberes e experiências que favoreçam a construção de “novos saber-fazer” a partir da articulação entre o conhecimento dos profissionais e sua prática cotidiana com os princípios e diretrizes da PNSM (Brasil, 2005; 2011). Para tanto, estimula o conhecimento e o diálogo interdisciplinar e intersetorial, de maneira a garantir uma maior efetividade das ações, reconhecendo a complexidade e multidimensionalidade dos problemas e dos caminhos para se atingir a integralidade do cuidado. Dispositivos como a supervisão clínico-institucional e o apoio matricial constituem- se intervenções possíveis adotadas neste contexto (Brasil, 2005; 2011; Campos, 1999; Campos & Domitti, 2007).

A primeira tem por objetivo sustentar a responsabilidade compartilhada da prática clínica pela equipe a partir do auxílio de um supervisor, que procura facilitar o diálogo entre os profissionais de maneira que as diferentes e inúmeras demandas que surgem nestes espaços possam ser trazidas para discussão e debatidas de forma crítica entre todos, sem deixar de levar em conta os desafios inerentes ao cotidiano do trabalho coletivo (Silva, Beck, Figueiredo & Prestes, 2012). O apoio matricial, por sua vez, constitui-se em um arranjo organizacional proposto por Campos (1999) cuja finalidade é levar assistência técnico-pedagógica especializada aos profissionais que compõem os serviços primários, como a ESF, em casos que para eles são de difícil manejo, como é o caso da saúde mental. Para este autor, o apoio matricial objetiva aumentar a resolubilidade dos serviços primários e produzir maior responsabilização dos profissionais com os diversos tipos de demandas, rompendo, assim, a lógica dos encaminhamentos indiscriminados. Sua implicação é promover um modelo tecnoassistencial que se aproxime de práticas mais consistentes à ideia de cuidado, ampliando o olhar sobre a clínica, por meio da construção de uma diversidade de ofertas terapêuticas, o que pressupõe mudanças não só na gestão, como também no cotidiano dos serviços (Vasconcelos et al, 2012).

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A técnica do matriciamento na saúde mental pode ser desenvolvida tanto por profissionais dos CAPS, se existente no município, como pelas equipes que compõem o Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF). O objetivo é ampliar o olhar e as intervenções sobre as diversas demandas encontradas nos cuidados primários. O trabalho destes profissionais conjuntamente com os profissionais da ESF tem por foco a promoção de saúde e o atendimento integral dos usuários, contribuindo para o aumento da resolutividade e efetividade da rede de cuidado (Brasil, 2014b). É possível observar no dia a dia dos serviços, estigmas e preconceitos relacionados à loucura ainda presentes, seja de forma explícita ou sutil, o que contribuiu para que houvesse um aumento considerável de profissionais especialistas na saúde mental como os psicólogos nestes espaços. O aumento no número de profissionais bem como a abertura de cursos de graduação em Psicologia no interior dos estados, está levando ao que autores como Bastos, Gondim e Rodrigues (2010) e Macedo e Dimenstein (2011) colocam como o fenômeno da interiorização da profissão. A criação dos NASF permitiu que muitas equipes básicas de saúde pudessem contar com a presença cada vez maior de psicólogos em seu quadro (Brasil, 2011). Todavia, até mesmo para estes profissionais este cenário se mostra desafiador, pois tende a exigir novas formas de atuação, sendo que muitos deles não se encontram preparados para o que deles se esperam (Freire, 2010; Freire & Saldanha, 2013).

Com relação especificamente aos cuidados em saúde mental nos municípios rurais, há poucos serviços e menor volume de recursos destinados ao diagnóstico e tratamento dos transtornos mentais nestas localidades (Kohn et al., 2007; Lima et al., 2008). O tratamento, geralmente, quando existente, resume-se à assistência medicamentosa ou encaminhamentos para especialistas como psicólogos e psiquiatras, contenção policial em casos que apresentam agressividade e encaminhamento para acompanhamento e/ou internamento nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) ou Hospitais Psiquiátricos localizados em outros municípios, muitas vezes, a distâncias consideráveis (Luzio & L’abate, 2009). Ademais, soma-se a falta de

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interesse político, onde a saúde mental não se constitui uma prioridade para as políticas locais, além da própria organização social que por falta de conhecimento ou, por vezes, dependente do sistema político-assistencialista, não exige seus direitos. Assim, consolidar, uma rede assistencial articulada (entre gestores, técnicos, usuários, familiares, comunidade) para o atendimento às demandas de saúde mental nestas localidades se faz imprescindível, pois esta não se constitui em realidade. Pesquisa realizada por Silva, Dimenstein e Leite (2013) com familiares de portadores de transtornos mentais severos residentes na zona rural do alto sertão paraibano mostrou, por exemplo, que a falta de suporte financeiro, de transporte e de internação se apresentam como empecilhos para o cuidado aos pacientes, sendo motivo de afastamento destes da rede de atenção psicossocial existente, o que leva a afirmação dos autores de que para o cuidado em saúde não basta haver serviços disponíveis se a população não apresenta condições de usufruí-los.

Destarte, é possível perceber as dificuldades que enfrentam as populações rurais para ser obter cuidados em saúde mental. Isso mostra que em termos de acesso e utilização dos serviços de saúde, ainda há no Brasil, situações de iniquidade social que tornam algumas populações e grupos sociais mais vulneráveis ao adoecimento, entre os quais os de natureza psíquica. Diante o exposto, o maior desafio que se coloca a PNSM enquanto uma política promotora de direitos humanos, além de solidificar sua rede de cuidado, é reconhecer os elementos que colocam determinados grupos populacionais em maior situação de vulnerabilidade ao adoecimento mental e tecer práticas e intervenções que levem em consideração tais elementos. Assim, percebe-se que o quadro da Vulnerabilidade se apresenta como uma proposta de análise que permite verificar em que medida a PNSM e a rede de serviço em saúde mental, bem como as condições econômicas, sociais e culturais existentes nas cidades rurais estão assegurando os direitos das pessoas com sofrimento psíquico, entre elas as que sofrem com TMC. Neste sentido, afirma-se que não se pode desconsiderar na análise do

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sofrimento psíquico feminino o conjunto de elementos individuais, sociais e institucionais que permeiam este processo.

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CAPÍTULO IV - QUADRO DA VULNERABILIDADE: UMA PROPOSTA DE