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NAS SENDAS DE CRIME E CASTIGO1

Traduzir Crime e castigo era um antigo projeto pessoal, que acalentei durante anos, propus a vários editores, e finalmente pude realizar através da Editora 34, que agora põe o romance ao alcance do público brasileiro na primeira tradução direta do original para a língua portuguesa. Antes eu já enveredara pelos labirintos do discurso dostoievskiano ao traduzir o conto Bobók e transformá-lo em objeto da minha tese de livre-docência, defendida na USP em 1997.

TRADUZIR OU DESCREVER

Há mais de uma tradução de Crime e castigo para o português, dentre as quais a de Rosário Fusco, publicada pela editora José Olympio, é a mais conhecida. Trata-se de um ótimo texto em português, porém, como foi traduzido do francês, ou seja, é tradução da tradução, saiu fortemente marcado por muitos elementos característicos da língua e da literatura francesa e do próprio modo pelo qual os franceses costumam traduzir obras de autores russos. Assim, nas muitas passagens em que o narrador, em plena empatia com a profunda tensão psicológica que envolve a ação romanesca, constrói um discurso em que essa tensão se manifesta através de evasivas, reticências, hesitações, indícios de

1 Prefácio do tradutor: nas sendas de Crime e castigo (fragmento, p. 7-9). In:

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e castigo. Tradução, prefácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2001. p. 7-13. (Coleção LESTE). ©Editora 34 Ltda.

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descontinuidade do fluxo narrativo, o texto de Fusco é fluido, elegante, seguro, afastando a idéia da tensão que contagia praticamente toda a narração. Se isso ocorre no plano da narração, agrava-se sensivelmente no plano do discurso das personagens, particularmente de Raskólnikov e Porfiri Pietróvitch; sem conseguir penetrar o labirinto de suas falas, o tradutor muitas vezes é levado a quase descrevê-las. Mas é bom que se ressalte: o tradutor brasileiro traduziu sob a mediação da língua francesa, fez, parafraseando Platão, uma “imitação de segunda categoria”, isto é, uma “imitação da imitação”, não podendo ser responsabilizado por nenhum daqueles problemas que acabei de mencionar. Com o material de que dispunha, construiu um belo texto em português, ficando os seus deslizes por conta do texto que lhes serviu de fonte. Esse é o problema central das traduções de segunda mão: dependem totalmente da qualidade do texto que lhes serve de fonte, sem meios de penetrar a essência do texto do autor. É isso também que justifica plenamente a tradução direta, muito particularmente quando se trata de ficção.

Toda tradução é a tradução possível, o ato de traduzir, par- ticularmente ficção, encerra uma boa dose de saudável ilusão, na medida em que acreditamos, honestamente, traduzir o que está no texto. Portanto, não podemos enfrentar um texto literário com a pretensão do “dois e dois são quatro”, pois estamos diante de discurso literário com toda a sua carga polissêmica, o que nos obriga constantemente a interpretar o sentido ou os sentidos de uma palavra ou expressão no contexto específico desse discurso e procurar o modo mais adequado de transmiti-los. Para tanto é indispensável, é essencial que o tradutor conheça, e bem, o universo cultural em que se produz esse discurso e os seus referentes vários, somando-se a isso outra questão essencialíssima: a honestidade profissional, o comprometimento ético com a palavra do outro. Isso nos obriga a ir às últimas conseqüências, ao fundo do poço à procura do sentido mais próximo de determinada palavra ou expressão nas circunstâncias concretas da sua enunciação.

Ao traduzir Crime e castigo, procurei manter os elementos de estilo que são peculiares ao do autor. Dostoiévski usa com certa frequência o travessão – ora para enfatizar um pensamento do narrador ou de alguma personagem, ora para inserir outras idéias na discussão etc. –; emprega, e muito, duas (e às vezes até mais) adversativas contíguas, como no, odnako

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AUL

O BEZERRA

je, que traduzimos o mais das vezes como “mas, não obstante”; abusa do

emprego do advérbio vdrug (que chega a aparecer cinco vezes em um parágrafo), que traduzi como “de repente”, “num repente”, “súbito”, “eis que” etc. O discurso dostoievskiano nem sempre prima pela fluência, pela elegância; sua constituição depende do clima social e psicológico em que se desenvolve a narração, da tensão psicológica que envolve as vozes das personagens, do grau de empatia entre o narrador e as personagens. O enredo de Crime e castigo é marcado por uma tensão dramática às vezes até sufocante, que decorre do labirinto discursivo em que se encontram as suas personagens, daí a forma sinuosa que as suas falas assumem. Há também falas empoladas, como a de Razumíkhin, por exemplo, na qual se intercalam expressões que à primeira vista parecem desprovidas de sentido. Procurei seguir de muito perto a maneira pela qual cada personagem se exprime, manter o ritmo das suas falas, a ordem da sua construção, traduzindo-as em vez de descrevê-las, como costuma acontecer na tradução indireta. Amaneirar o discurso de Dostoiévski para torná-lo “mais elegante” e “mais fluido” significaria atentar contra a originalidade de um autor cuja peculiaridade principal é a ruptura com as matrizes tradicionais do pensamento e suas formas de expressão.

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PAULO BEZERRA

ON THE PATH OF CRIME AND PUNISHMENT1

Translating Crime and Punishment was an old personal project that I cherished for many years, proposed to various publishers, and could finally complete thanks to Editora 34, that is now putting the novel within reach of the Brazilian public with its first direct translation from the original to the Portuguese language. I had previously set out into the labyrinths of Dostoyevsky’s language when translating the short story

Bobók, which turned into the subject of my doctorate thesis, defended at

USP in 1997.

TO TRANSLATE OR TO DESCRIBE

There are several translations of Crime and Punishment into Portuguese, of which the best known is the one by Rosário Fusco, published by José Olympio. This is an excellent text in Portuguese, but as it was translated from French, and is therefore a translation of a translation, it came out strongly marked by many characteristic elements of the French language and its literature, and by the particular way in which the French tend to translate works by Russian authors. Thus in many passages where the narrator, in complete empathy with the profound psychological tension that pervades the action of the

1 Prefácio do tradutor: nas sendas de Crime e castigo (extract, p. 7-9). In: DOSTOIÉVSKI,

Fiódor. Crime e castigo. Translation, preface and notes by Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2001. p. 7-13. (Coleção LESTE). ©Editora 34 Ltda.