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3.1 Diferentes abordagens do inconsciente anteriores à produção de Vigotski

3.1.10 Pavlov e a reflexologia

Iván Petrovich Pavlov (1849-1936) foi um fisiólogo russo, diretor do departamento de fisiologia do Instituto de Medicina Experimental de San Petersburgo. Seus estudos, inicialmente, centravam-se nos processos digestivos animais; foi por seus trabalhos nessa área que ganhou o Prêmio Nobel de Fisiologia/Medicina em 1904. Entretanto, no decorrer destes estudos, percebeu uma reação dos animais que fez com que ele mudasse o tema de sua pesquisa para uma investigação psicológica: o papel do condicionamento na Psicologia do Comportamento.

Há quem diga que foi um acaso que fez com que ele mudasse seu campo de investigação; de nossa parte, preferimos a explicação de que se tratava de um cientista que, diante de uma situação distinta em seu campo de análise, resolveu perguntar-se sobre os motivos que levaram àquele acontecimento. Expliquemo-nos. Pavlov, para seus estudos sobre o processo digestivo, colocou uma cânula na boca de cachorros para obter a saliva que eles produziam antes de uma refeição. Ele era famoso pelo seu rigor teórico e metodológico; por isso, a comida era dada sempre no mesmo horário e, para

109 tentar garantir que o experimento não tivesse muitas variações, era tocada uma sineta no laboratório na hora que deveria ser ministrado o alimento.

Com o tempo, Pavlov percebeu que o animal começava a salivar quando tocava a sineta, mesmo antes de ver o alimento. Ora, perguntou-se Pavlov, porque ele saliva se não está diante da comida? Diante dessa pergunta, passou a analisar as condições do laboratório e percebeu que um reflexo incondicionado (como o fato dos animais iniciarem a digestão salivando diante de um alimento) pode ser, com o tempo, associado a um reflexo condicionado qualquer, desde que devidamente emparelhado ao reflexo incondicionado (de tanto tocar a sineta antes de apresentar a comida o cachorro começou a salivar com a sineta). Isso fez com que ele mudasse a área de sua investigação para concentrar-se nos estudos dos reflexos condicionados, tema que daria um impulso à Escola Reflexológica e pelo qual sua produção seria mais conhecida.

A necessidade de desenvolver uma psicologia baseada nos princípios marxistas, atrelado a uma compreensão do psiquismo como centrado em seu aspecto material e pautado exclusivamente por processos fisiológicos, levou a reflexologia a ser considerada a única abordagem psicológica aceitável na URSS. Ainda que houvesse diversas escolas de Psicologia, em 1921 Lenin assinou um ato concedendo a Pavlov privilégios especiais; o que permaneceu durante o período stalinista (BOTTOMORE, 2001). É importante destacar que não se trata de uma escolha injustificada: ademais do forte caráter materialista, extremamente valorizado e exigido nas ciências russas pós- revolucionárias, o Nobel de Pavlov também servia como uma importante propaganda ideológica para o Regime.

De acordo com Bechterev (1973, p. 171 apud CARVALHO et. all. 2010),

A ciência que denomino Reflexologia consiste no estudo da atividade correlativa do organismo no sentido amplo da palavra, e por atividade correlativa denomino todas as reações inatas e adquiridas individualmente, começando pelos reflexos inatos e reflexos organizados-complexos até os reflexos mais complexos adquiridos que no homem começam nas ações e condutas e incluem sua conduta característica.

Grosso modo, a reflexologia significa estudo dos reflexos. Em que pese os seus diferentes autores, a preocupação central desta escola era o mecanismo fisiológico que culminava no comportamento. Ou seja, a escola reflexológica busca a compreensão de como as conexões neurais, particularmente as que resultam no comportamento, se estabelecem. Os teóricos desta escola compreendem que é possível estudar o

110 comportamento e os reflexos em animais e estender os comportamentos para os humanos porque a relação nervosa temporal é

um fenómeno fisiológico universal no mundo animal e na vida humana. É, ao mesmo tempo, um fenómeno psíquico, aquilo a que os psicólogos chamam uma associação, quer se trata de combinações de acções, quer diga respeito a impressões, letras, palavras ou pensamentos. (PAVLOV, s.d., p. 31-32)

Para compreender as explicações sobre o inconsciente para esta escola, é necessário que nos detenhamos nos seus pressupostos sobre a consciência. Para Pavlov (apud JUNIOR, 1966), a consciência configura-se como a possibilidade de associar a coisa à representação dela. Os animais e as crianças mais novas têm a sua disposição apenas as imagens que permitem que elas estabeleçam os mecanismos reflexos que guiarão seu comportamento. Esses mecanismos reflexos são o que Pavlov denomina o primeiro sistema de sinais, comuns aos animais e aos homens: trata-se do estabelecimento de condicionamentos, com base em emparelhamento de estímulos. O condicionamento pode se dar em formas complexas, bastando para isso que haja uma estrutura cerebral que receba o elemento exterior, para estabelecer-se a relação.

Entretanto, há uma distinção no que tange ao comportamento humano: a linguagem. À medida que vão dominando as palavras, as crianças passam a denominar a realidade por meio da abstração e este processo possibilita a construção da consciência do ambiente circundante. Trata-se do Segundo Sistema de Sinalização:

O segundo sistema de sinalização, exclusivamente humano, constituído pela palavra em suas múltiplas variações e formas gramaticais, é uma abstração da realidade, e, como tal permite a sua análise não-imediata, e em crescentes graus de generalidade (conceitos abstratos). Ambos os sistemas [o primeiro e o segundo sistema de sinais] mantêm relações recíprocas, obedecendo às leis gerais do funcionamento da atividade nervosa superior, da qual são aspectos especiais. (JUNIOR, 1966, p. 84, grifos no original).

A palavra representa algo que não está disponível ao sujeito e por isso possui a capacidade de conectar-se a conceitos gerais e independentes da experiência imediata. Ele constitui um sistema de sinais de segunda ordem e justamente “aquilo que permanece sem passar ao segundo sistema de sinais constituiria o inconsciente, no conceito pavloviano” (JUNIOR, 1966, p. 85-86). Portanto, a reflexologia afirma que o inconsciente caracteriza-se pela ausência de uma significação, de uma palavra que permitiria a abstração de um determinado conteúdo da realidade. Ou seja, o inconsciente como a ausência de linguagem.

111 Entretanto, a mais importante contribuição da escola reflexológica para o estudo do inconsciente foi a consideração dos aspectos materiais do psiquismo. Ao apontar as relações neuronais que constitui a transmissão de reflexos eles retiram definitivamente a consciência do reino do idealismo e a apresentam com uma base material, concreta. O inconsciente acompanha esse percurso e deixa de ser um conceito eminentemente metafísico para se ligar a uma explicação materialista (embora ainda mecanicista).

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Estas não são as únicas produções a tratar do tema do inconsciente; entretanto, nelas já estão presentes a maior parte dos conteúdos que serão retomados e aprofundados por Vigotski. A síntese que Vigotski faz contém elementos de todos esses autores que analisamos aqui: a relação que Leibniz faz entre inconsciente e apercepção será abordada sob a forma da diferença existente entre nervos aferentes e eferentes; a relação apontada por Kant de uma espécie de marca daquilo que vivemos permanece, de forma inconsciente, em nosso psiquismo; a luta entre os diferentes sistemas, presentes desde a filosofia de Herbart; a relação entre inconsciente e arte/vivência estética, presente em Schelling. Também está presente a dialética (já “sob seus próprios pés”) e também a concepção aprofundada em Hegel da existência de motivos inconscientes que só serão conhecidos quando as ações atingirem os seus objetivos. Schopenhauer e Nietzsche também estão presentes na síntese de Vigotski: o primeiro ao indicar a existência do que poderemos apontar como sendo um tônus afetivo, ou seja, um direcionamento anterior às explicações racionais e também o germe da noção de que na base de cada palavra tem um aspecto afetivo-volitivo que a explica; o segundo, com a concepção de inconsciente e linguagem e com a crítica da cultura.

Também Wundt está presente em Vigotski quando este indica a necessidade de considerar o fenômeno psíquico (entre os quais o inconsciente) como simultaneamente material e social, sem que nenhum dos dois aspectos seja desprezado ou sobreposto. Freud, ao trazer o inconsciente ao primeiro plano das discussões, possibilitou que este conceito fosse tratado como uma instância do psiquismo; Pavlov, por sua vez, além de reafirmar a ligação do inconsciente com a linguagem e apresentar experimentalmente as bases materiais dos sistemas transmissores de reflexo, possibilitou a retirada definitiva do idealismo inerente à maioria dos estudos sobre este conceito e apresentou as bases

112 materiais que o sustentam. Entre todos os autores analisados, o fato do inconsciente atuar no comportamento, fazendo com que cada ato possua também conteúdos e motivos que escapam ao nosso conhecimento e controle.

Neste ponto não estamos afirmando que Vigotski (necessariamente) teve acesso a todos esses autores; mas as teorias deles já estavam presentes no contexto no qual Vigotski produziu. Eram significados e como tais estavam cristalizados sob a forma de conhecimento de determinado aspecto da realidade, socialmente aceito e reproduzidos e, portanto, seja sob forma direta ou indireta, Vigotski (ainda mais por ser reconhecido pelo seu vasto interesse pela leitura) teve acesso a estes significados.

O inconsciente já era um tema de destaque na ciência psicológica; mas a própria ciência estava em crise e Vigotski não foi o único a apontar isso. Já apontamos que Vigotski destacava que para superar essa crise, cujo cerne era a ausência de uma correta orientação metodológica, a Psicologia não deveria ser abandonada, mas reestruturada:

as pedras fundamentais foram, essencialmente, bem colocadas e também foi traçada com correção a avenida principal, pavimentada durante muitas décadas. São também adequados o objetivo e o plano geral e inclusive é correta, embora incompleta, a orientação prática que se nota nas correntes atuais. Mas a próxima via, os passos imediatos, o plano de trabalho, padecem de defeitos: percebe-se neles a falta de análise da crise e uma correta orientação da metodologia. (1927:2004, p. 397)

Portanto, para a superação desta crise seria necessária a “criação de uma psicologia geral cujos conceitos se formulem em dependência direta da dialética geral, porque essa psicologia nada seria além da dialética da psicologia(...)”.(VIGOTSKI, 1927:2004, p. 392).

É essa correta orientação metodológica que permitirá compreender o inconsciente como uma parte integrante do psiquismo, na dialética com a consciência e em constante e dramática relação com as demais funções e processos psicológicos e determinado pelo contexto e pelas relações que os sujeitos particulares estabelecem em seu cotidiano.

Este é um dos motivos pelo qual compreendemos que, longe de ser um tema marginal em sua obra, o Materialismo Histórico Dialético é o esqueleto sob o qual sua obra se sustenta e, portanto, cujos postulados terão influência direta sob a concepção de inconsciente dele. Mas Vigotski não foi o único a analisar o inconsciente sob a influência dos postulados da obra de Marx e Engels. Analisar alguns dos autores que fizeram caminho semelhante pode nos dar alguns direcionamentos e indicativos que nos

113 auxiliem a compreender melhor o inconsciente, sua ontologia e suas implicações na vida psíquica. É a isso que nos dedicaremos agora.