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3.1 Diferentes abordagens do inconsciente anteriores à produção de Vigotski

3.1.6 Schopenhauer e a força da Vontade

Nascido na cidade de Danzig, na Prússia, Schopenhauer foi um filho de comerciante criado para seguir a profissão de seu pai e aos doze anos foi enviado a uma série de viagens para aprender o oficio do comércio. Nesse período, começa as primeiras considerações (em sua maioria pessimistas e melancólicas) sobre a condição humana. Suas viagens pela França, Alemanha, Inglaterra, Holanda e outros países europeus fizeram com que ele visse a realidade da Europa no Capitalismo em princípios de industrialização. Em uma oposição radical a Hegel, ele desenvolveu uma filosofia que deslegitima toda a razão e a coloca como instrumento de uma vontade cega, irracional e inconsciente. A razão, nos diz Schopenhauer, vai ser sempre uma explicação posterior e insuficiente para a verdade absoluta.

Hegel, acabamos de ver, nos havia dito que o em si, o absoluto é a própria razão. Essa razão cria o desejo e, portanto, o desejo está sempre perpassado pela razão e se é inconsciente é tão-somente porque a razão ainda não tomou consciência de si própria. Mas Schopenhauer afirma o oposto: é a Vontade que ocupa esse espaço do ser em si, a vontade é o que há de mais primário, a base sobre a qual se desenvolve todas as coisas. A vontade existiria antes de existir a própria realidade e inclusive a razão. O desejo é inconsciente porque é manifestação da Vontade, que sempre se objetiva e no humano alcança o grau máximo dessa objetivação: é quando a Vontade pode criar uma realidade como representação de si própria. Ou seja, a objetivação da vontade no humano permite o desenvolvimento de representações, de explicações, de um complexo sistema que continua servindo aos desígnios da Vontade, mas que agora pode oferecer explicações e racionalizações dela. Desta forma, a realidade é na verdade um conjunto de aparências, percepções, representações no plano do sensível daquilo que existe em si mesmo como Vontade. Ora, se a razão, o intelecto e todas as suas derivações são manifestações tardias, é necessário que consideremos que na base de cada pensamento, de cada palavra, de cada ação está a própria Vontade, está o querer. Não existe um pensamento

97 ou uma razão puros, destituídos de interesse: o conhecimento está intima e indissociavelmente ligado ao querer.

Outro aspecto importante para nossa análise é a importância que Schopenhauer dá para o corpo humano. Para ele, por ser o grau máximo de objetificação da vontade, o corpo exprime o puro querer: é nele que a vontade pode expressar sua insatisfação, seus desejos, sua essência. A vontade direciona o corpo para os objetos; mas justamente por ser em si, não tem um objeto definido: ela é e sempre vai ser absoluta e

toda satisfação é aparente e o objeto alcançado jamais cumpre o que a cobiça prometia, a saber, o apaziguamento final do furioso ímpeto da Vontade; mais, pela satisfação do desejo apenas muda a sua figura, que agora, o atormenta sob outra forma, sim, ao término, se todos os desejos se esgotam, resta o ímpeto mesmo da Vontade sem nenhum motivo aparente, a dar sinal de si como tormento incurável, horrível desolação e vazio. Tudo o que, em se tratando de um grau comum de querer é sentido apenas numa medida modesta, produzindo também apenas um grau comum de disposição turvada, desperta, porém, na pessoa cujo fenômeno da Vontade atinge a crueldade extrema, necessariamente um tormento interior que vai além de toda medida, uma intranqüilidade eterna, uma dor incurável...(SCHOPENHAUER, 1819/2005, p. 464).

Além disso, há uma íntima relação entre a Vontade e a sexualidade: o que a Vontade mais quer, o seu íntimo, é precisamente a vida, o querer viver, a preservação e a perpetuação da espécie e, como no humano a vontade alcança seu grau máximo de objetificação, é nele que a sexualidade deve ser mais intensa. É no humano que a possibilidade de continuação da existência é mais forte e guiaria absolutamente todas as esferas da vida. Para Schopenhauer não existe qualquer tipo de sentimento que não esteja ligado à sexualidade; acontece que, como no humano também existe a representação, essa vontade primária e original é disfarçada sob a forma de conteúdos culturais que mascaram os desígnios verdadeiros da Vontade. Na verdade, toda a linguagem e toda a cultura girariam em torno dessa sexualidade, normalmente tendo por objetivo ocultar ou distorcer a verdadeira essência do ser.

A teoria de Schopenhauer exprime que existe algo inconsciente e desprovido de qualquer razão que constitui nossa verdadeira essência. É o inconsciente que nos move, que está na base de toda a realidade; e é um inconsciente ligado ao desejo, ao afetivo e que manifesta-se no corpo sob a forma de puro querer. É um inconsciente desejante e que nos coloca em um contínuo movimento que, por nunca encontrar um objeto que lhe satisfaça, cria no humano uma constante sensação de insatisfação e de incompletude. Na

98 filosofia de Schoppenhauer, estamos fadados a ter um desejo que nunca vai ser satisfeito,

estamos diante de um homem que obedece a visões fantasmagóricas ou a um jogo de espelhos. O querer utiliza qualquer pretexto para se fazer parecer uma vez e outra, em um círculo infinito que alterna uma agoniante espera e um falso alcance dos objetivos.

Esse homem seria, então, um Síssifo moderno. Albert Camus (1980) vê em Síssifo o herói do absurdo. Os deuses o haviam condenado a rodar uma enorme rocha até o alto de uma montanha, de onde voltaria a cair até o mundo inferior em um empenho sem fim. Que jogada enganosa teria feito o homem de Schopenhauer a Zeus para ser castigado com tal inutilidade e desesperança? Para Camus, o homem, ao final de tudo, sairia vitorioso,

enquanto para nosso autor não sucede o mesmo. 23 (BARRETO ACEVEDO,

2005, p. 150)

O homem é, irremediavelmente, um instrumento da Vontade. Entretanto, Schopenhauer indica que é possível, por meio justamente das criações culturais, que esse sujeito não seja sempre subordinado aos impulsos cegos dela. Ainda que o intelecto seja sempre subordinado à Vontade é possível que ele desenvolva meios de desviar os instintos dela para outros objetos, é possível que ele crie outras formas de manifestação desta vontade.

Um grande admirador de Schopenhauer cujos postulados também abordam aspectos que nos interessam acerca do inconsciente é Friedrich Nietzsche (1844-1900). Nietzsche foi um filósofo, filólogo, crítico, poeta e que, embora inicialmente tenha se encantado com a filosofia de Schopenhauer, gradativamente afasta-se dela e constrói um sistema filosófico que se caracteriza pelo niilismo, e que apresentaremos agora.