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peças São Paulo: Cosac Naify, 2008, p 334.

173 No site da Companhia do Latão encontra-se a seguinte nota sobre Ensaio para Danton: “Na versão de 1999,

apresentada no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, no Centro Cultural São Paulo, a dramaturgia se distanciou ainda mais da peça original. Nela apareceram novas personagens que ampliam a visão sobre o processo revolucionário. Na busca de maior ressonância social, as modificações fortaleceram a perspectiva coletiva em relação à tragédia pessoal do herói”. Disponível em: <http://www.companhiadolatao.com.br/html/espetaculo/e_danton/apresenta_danton.htm>. Acesso em: 12 de agosto de 2011.

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uma exclusividade do teatro brechtiano. Afinal, a “forma aberta” do texto, assim como “seu sentimento de melancolia diante dos desacertos do tempo”, são interpretações muito próximas dos escritos do crítico alemão. O caminho até o estudo de Brecht pode ter seguido o itinerário sugerido em O Teatro Épico, no entanto é preciso considerar o momento vivenciado pelo grupo. Alguns discursos de Sérgio de Carvalho ressaltam a necessidade do “[...] engajamento de um novo jeito” contraposto a um “teatro voltado para seu próprio umbigo, apenas interessado em questões de linguagem, com espetáculos quase sempre cifrados e herméticos”.174 Considerando o lugar do qual Carvalho expõe seu pensamento e as formulações em torno de Ensaio para Danton, a noção de um “fracasso fundamental da representação” podia funcionar como um meio de refletir sobre as condições para se produzir espetáculos com viés engajado, em que Büchner assumia a função de promover o diálogo entre tempos diferentes, e, principalmente, com a potencialidade de refletir sobre o lugar do teatro em fins dos anos de 1990, abrindo assim um caminho possível, entre vários outros, para a recepção de Brecht no Brasil daquele momento.

Voltando ao prólogo, é preciso ressaltar que a fala da atriz foi escrita a partir de uma passagem do Pequeno Organon para o Teatro, quando Brecht discutia a relevância de encenar Hamlet no seu momento histórico, por volta de 1949, ano em que o Organon foi publicado pela primeira vez e época em que o autor estava exilado na Suíça.175 O sentido de um clássico não está na obra em si, mas nas apropriações que o presente faz do texto. De maneira geral, essa seria a ressalva que o dramaturgo procurava fazer e que, certamente, o Latão aproximou de sua proposta ao rever Büchner, percebendo-se, portanto, do ponto de vista de construção cênica, a influência das considerações de José Antonio Pasta. Além dos apontamentos sobre as palavras daquela que recepciona o público, o espetáculo, ao ser acompanhado pelos espectadores no próprio espaço da encenação, permite, de maneira efetiva, a quebra de todo processo ilusório que possa ocorrer e reforça o ponto de vista narrativo apontado desde o início pela atriz, elemento que será retomado com êxito na montagem de Ensaio sobre o Latão. Os espectadores não assistem ao desenrolar de

174 CARVALHO, Sérgio de. A transformação pela experiência. Entrevista com Sérgio de Carvalho por Uta

Atzpodien. In: ______. (Org.). Introdução ao teatro dialético: experimentos da Companhia do Latão. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 173.

175 Em caráter de informação, para que o leitor perceba o teor das aproximações do Latão com os escritos de

Brecht, segue a passagem do Pequeno Organon para o Teatro que serviu de inspiração ao grupo: “À luz dos tempos sangrentos e nebulosos em que estou escrevendo estas linhas – as criminosas classes dominantes, o abuso constante de uma desconfiança generalizada da razão – creio poder ler essa peça [Hamlet] da seguinte maneira: está-se em tempos de guerreiros”. (BRECHT, Bertolt. Pequeno Organon para o teatro. In: ______.

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específicos momentos da Revolução Francesa, na verdade partilham com os atores um processo narrativo em que as cenas compõem o quadro reflexivo. Não há, portanto, a pretensão de tornar o espetáculo uma simples forma de conhecimento do passado, mas há o sopro de proposições, pois, como estão no palco, todos formam um grupo de “atores”. Na vida que se desenvolve fora dos tablados, são agentes sociais, sujeitos a questionamentos e impulsionados por forças diversas. Poderíamos parafrasear Brecht quando ressalta a importância de uma forma nova de aliar aprendizagem e diversão. Assistir ao espetáculo do palco e ter consciência plena de que a cena teatral faz parte de um contexto narrativo pode significar a recusa da ausência de reflexão, e na verdade é uma forma de intercambiar experiências, percepções e possibilidades. Embora aqueles que assistem não sejam chamados diretamente a opinar ou interferir no espaço da cena, eles fazem parte dela e, por outro lado, a cena não escamoteia os elementos teatrais, portanto se coloca como uma possibilidade, entre várias, de enxergar o processo histórico que naquele instante, pela ótica do Latão, clama pela referência das lutas entre os jacobinos do século XVIII.

É interessante perceber que a “quebra” dos limites convencionais entre atores e espectadores faz parte de diversas propostas cênicas da década de 1990, o que ocorre por interesses variados. O Latão, como grupo que se forma naquele momento, não perde esse viés criativo, porém o utiliza no sentido de dar materialidade para suas propostas estéticas. Sendo assim, esse recurso presente em Ensaio para Danton será retomado em outras encenações do grupo, com destaque para Ensaio sobre o Latão, em que o público também se situa no palco, e para A Santa Joana dos Matadouros, na qual o espaço cênico foi todo redimensionado de acordo com a localização do público. É interessante perceber, portanto, como o grupo começa a configurar a sua noção de arte teatral, ao mesmo tempo que não se desvincula dos eventos mais amplos do teatro brasileiro na época. Büchner permite leituras formais importantes e, em seguida, Brecht assume feições singulares nesse contexto.

Ainda em relação ao prólogo, é preciso lembrar que a frase citada pela atriz ao final de sua fala denominando o primeiro ato do texto – “a felicidade é uma ideia nova na Europa” – foi pronunciada pelo jacobino Saint-Just, em 1794, da tribuna da Convenção Nacional, no sentido de fortalecer o espírito das possibilidades que o processo revolucionário levou à população francesa da época. O que se desenrola a seguir é uma contraposição a essa fala.

No meio de uma praça, onde a multidão aguarda para assistir à execução de Hébert, duas personagens iniciam o desenrolar da trama: Cristininha e Gauché, chamados no texto

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dramático de “mulher e homem do povo”. Os dois percorrem toda a estrutura dramática, fazem o contraponto entre as convulsões sociais e individuais, tendo, assim, um caráter narrativo no interior do texto. Além dessas características formais, é significativo ressaltar que essas personagens recebem tratamento singular na peça. Como “mulher e homem do povo”, eles abrem e fecham o espetáculo, em vários momentos são ingênuos e explicitam as incertezas provocadas pela luta revolucionária de um ponto de vista cotidiano. Em outros termos, eles trazem para a cena elementos como a fome e a miséria de parte da população francesa, a violência como ação corriqueira nas ruas e as incertezas que tornam os limites das leis frágeis ou mesmo inexistentes. A forma como essas personagens são construídas e a importância que assumem no texto produzido pelo Latão demonstram que o foco de discussão do grupo não está centralizado nos destinos pessoais dos expoentes líderes jacobinos, ou exclusivamente nas lutas internas daquele grupo. Ele se localiza em outro espaço e abarca um processo mais complexo e amplo, que é a própria noção de revolução e as condições de sua efetividade.

Hébert, o líder radical dos jacobinos, é executado no início do espetáculo e, ao longo do enredo, os outros dirigentes partilham do mesmo destino. Se o processo revolucionário passa pelo olhar de seus líderes, a população não deixa de sentir, possivelmente de maneira mais pungente, as agruras inerentes a ele. Como tal, Cristininha e Gauché simbolizam diante dos leitores/espectadores não um olhar revolucionário, mas sim a forma como a revolução foi sentida e interpretada pela população. Os grupos populares e suas variadas relações políticas e sociais constituem elementos frequentes nos espetáculos e nos textos do Latão, vindo sempre para o centro do palco e ocupando funções primordiais, “inauguradas” aqui por Cristininha e Gauché. Seguindo esse raciocínio, vejamos algumas características mais pontuais das personagens. Em meio às brigas de um casal cuja causa é a prostituição da filha, promovida e apoiada pela mãe que sustenta a casa com o dinheiro daquele negócio, ocorre um saque num açougue:

CRISTININHA Gauché, o açougue, escancarado.

GAUCHÉ Eu não vou bater no açougueiro, detesto violência.

CRISTININHA Costelas, lingüiças, músculo, chã de dentro, chã de fora... eles estão levando tudo, é um saque!

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CRISTINHA Não é política, Gauché, é carne.176

Em meio aos problemas gerados pela Revolução, o que aciona a ação das personagens é a necessidade de comida. Gauché pensa em seus atos, nega-se a participar do saque porque relaciona tal atitude a uma ação política. Cristininha, sem ouvir e enxergar os outros problemas à sua volta, tem olhos somente para a carne que retiram do açougue. Podemos nos questionar: o que leva as pessoas a assumir posições e pegar em armas em nome de uma causa? Ultrapassando as questões postas no âmbito de atuação dos grandes líderes revolucionários, o olhar aqui volta-se para a população que, assim como suas lideranças, tem interesses específicos para empreender suas lutas e promover ações. O que está em jogo em cenas como essa não é um olhar contrário ao processo revolucionário, mas a crítica ao ideal da Revolução Francesa: “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. Até que ponto a liberdade das pessoas que estão em torno de Cristinha e Gauché significa uma relação fraterna e sobretudo igualitária? Os dois não pensam e não agem por ideais, mas, trilhando um caminho contrário, se movem por interesses imediatos e precisos: no caso, a necessidade de alimentação diária. No contexto da década de 1990, o elemento épico que envolve o espetáculo permitia colocar em questionamento o lugar dos ideais naquela sociedade, o lema da Revolução Francesa era recuperado pelo viés da dúvida, num processo muito parecido com que Pasta chamou de “classicidade contemporânea”.

Momentos depois daquela discussão, Cristininha e Gauché voltam a ocupar a cena e ela discursa sobre um tablado:

GAUCHÉ Desce daí Cristininha, eu não quero ter que bater nessa gente. CRISTINHA Não esqueçam que o casaco de vocês é furado, e eles têm a bunda quente. Vocês têm calos nas mãos e eles nunca trabalham. A nossa barriga vazia e eles arrotam pernil. Não me venham dizer que somos iguais a eles: eu nunca vi um pobre mastigar um bife que não fosse a própria gengiva. [Exalta-se] Por isso vamos derreter a gordura deles e fazer a nossa sopa. Por isso levem tudo e não deixem nada, nem uma lingüiça para contar história. Morte aos que não têm buraco nas roupas.

GAUCHÉ [Toma coragem e sobe na plataforma] Esse é o nome da coisa, igualdade. Igualdade é o nome da coisa.

[...]

Cristininha e Gauché correm com um pedaço de carne na mão.

176 CARVALHO, Sérgio de; MARCIANO, Márcio. Ensaio para Danton. In: ______. (Orgs.). Companhia do

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