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A Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire a partir do olhar do T.O de A Boal

CAPÍTULO 2. EM BUSCA DE UM TEATRO POLÍTICO RADICAL

2.1 A Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire a partir do olhar do T.O de A Boal

A Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire surge, na década de 1960, com o objetivo de mudar a escolarização tradicional nos Círculos de Cultura de Pernambuco e no Programa Nacional de Alfabetização de Adultos no âmbito das ações do Movimento de Cultura Popular (MCP) em Angicos, no Rio Grande do Norte. O cerne da pedagogia freireana consiste na superação da visão do estudante-aprendiz como mero repositório de conteúdos descontextualizados, desvinculados da dinâmica entre a linguagem e a realidade (que ele denominou como “educação bancária”).

Essa superação se dá pelo ensino contextualizado enquanto ação de educar para a libertação dos seres humanos, portanto, a educação como processo essencialmente político é o que permite que a sociedade passe da consciência ingênua à consciência crítica, uma prática refletida que provém do movimento da práxis e que leva a outro movimento: o da politização para a transformação social. É o “quefazer” que vincula teoria e prática, reflexão e ação134.

Raciocínio semelhante tem Augusto Boal quando afirma que podemos conceber a educação de duas maneiras: “por meio da educação ou da catequese”, sendo a domesticação o aspecto extremo da catequese:

As classes dominantes não educam, ainda que chamem pelo nome superior de Educação ao processo de assimilação do indivíduo. Catequizar consiste em impor mecanicamente os valores de uma cultura sobre a outra, ou sobre os indivíduos. Os países colonizadores

133

Licko Turle nos explica em seu texto Alfabetização Teatral: o encontro do Teatro Popular com a

Pedagogia do Oprimido que existem duas linhas explicativas para o suposto “nascimento” da pedagogia

teatral de A. Boal, uma primeira que guarda estreita relação entre o pensamento de Paulo Freire e Boal e, uma segunda de que as histórias contadas por Boal a respeito de seus encontros “com um camponês nordestino, um operário do ABC paulista e uma indígena peruana analfabeta o fazem, segundo ele mesmo ‘descobrir’ o método”. E continua: “Flavio Sanctum também recorta estes episódios reforçando a ideia de ‘descoberta’ com o significado de ‘achado’, ‘encontrado ao acaso’”. TURLE, Licko in: MATTOS, Cachalote; SANCTUM, Flávio; SARAPECK, Helen; TRINDADE, Jussara; TURLE, Licko; LIGIÉRO, Zeca. Teatro do Oprimido e Universidade: experimentos, ensaios e investigações. Rio de Janeiro: Metanoia, 2016. P.16-17.

impõem os seus valores sobre os países colonizados, as classes dominantes sobre os dominados, os adultos sobre as crianças. A catequese é indiscutível, inquestionável, impositiva. Como diz Paulo Freire, intransitiva, dogmática. É assim, porque sim. A ditadura brasileira dá o exemplo mais notável de mentalidade catequética, não educadora. Ao justificar o seu plano de alfabetização por meio do sistema Mobral, informa que o objetivo de tal campanha é o de “levar a pessoa humana à aquisição de um vocabulário que permita um aumento de conhecimentos, uma compreensão das orientações e ordens (...) Alfabetiza para assegurar-se da obediência do povo.135 E prossegue:

Educação consiste numa relação dialética em que a sociedade educadora não só permite, mas necessita que o educando atue como sujeito, considerando que este não vai ser assimilado por uma sociedade já feita, não-modificável, mas que vai modificá-la segundo suas próprias necessidades e desejos.

A aproximação entre Boal e Freire dá-se em termos de trajetórias pessoais, construções teóricas e similaridade metodológica.

Paulo Freire, acusado no período da ditadura militar-empresarial de “subverter a ordem instituída” ficou exilado de 1964 a 1980 passando por diversos países da América Latina e Europa, tendo escrito sua obra Pedagogia do Oprimido durante o exílio no Chile. Augusto Boal, após ser preso e torturado, viveu quinze anos de exílio pela América Latina e Europa entre 1971 e 1986 e sistematizou sua obra T.O. e outras poéticas políticas na Argentina.

Após a morte de Paulo Freire, em 1997136, em carta publicada na Revista Pedagógica Pátio, Boal homenageia Freire e o referencia como interlocutor e influenciador em suas obras e teoria:

(...) que para que se escreva em uma página branca é necessário um lápis negro, para que se escreva num quadro negro é necessário que o giz tenha outra cor. Para que eu seja, é preciso que sejam. Para que eu exista, é preciso que Paulo Freire exista. Com Paulo Freire, morreu meu último pai. Agora só tenho irmãos e irmãs...137

A teoria aliada à prática em uma reflexão-ação na pedagogia do oprimido também é cerne do que o T.O. preceitua.

135

BOAL, Augusto. Técnicas latino-americanas de Teatro Popular: uma revolução copernicana ao contrário. São Paulo: Hucitec, 1984. p. 97.

136

A título de curiosidade: ambos morreram no mesmo dia e mês- 02 de maio-, Freire em 1997 e Boal em 2009.

137

BOAL, Augusto. Paulo Freire, meu último pai. Pátio Revista Pedagógica. Porto Alegre, Artes Medicas Sul, 1 (2). p.50. agosto-outubro, 1997.

O oprimido é sujeito central em dois referenciais, nas esferas política, artística e pedagógica, que dialogam e se entrecruzam nas trajetórias e influências. Paulo Freire e Augusto Boal, ao desenvolverem suas metodologias assumiram declaradamente a opção pelo oprimido ao desenvolverem propostas de construção autônoma e livre do conhecimento em processos inseridos no contexto histórico da realidade vivida por ele.

Paulo Freire teve como preocupação principal, ao elaborar sua teoria da pedagogia do oprimido,

(...) buscar mecanismos da inserção crítica dos homens e das mulheres nas suas sociedades ao possibilitar-lhes terem voz, dizerem a sua palavra, biografarem-se. Serem seres-mais. Possibilitando-os serem sujeitos também da história e não apenas objetos da exploração, de servidão a serviço das classes opressoras, assim, essa busca de dignificar os/as oprimidos/as é a luta pelos direitos humanos mais autênticos para os vulneráveis, os esfarrapados, os oprimidos/as138.

O que é a possibilidade de dar voz por meio do processo de libertação intermediado por uma prática pedagógica real e sensível, senão a visibilidade do Outro em uma solidariedade efetiva? Para Augusto Boal e Paulo Freire, não só efetiva como fundamentalmente afetiva na restituição de sua capacidade de ação em toda sua plenitude, afetividade que é conflito posto entre superação da exploração/opressão e emancipação humana.

Nita Freire ressalta a amorosidade sempre presente e radical na obra e práxis de Paulo Freire, assim como a necessidade amorosa de dialogicidade, a ética da tolerância e a necessidade dos sonhos, da utopia e da justiça social139 sempre atreladas à profunda indignação ética em favor do respeito e da vida, de uma vida liberta das amarras da exploração e das opressões.

A libertação do educando de Freire é muito similar, e por que não afirmar, concomitante, a libertação do espectador de Augusto Boal, espectador esse “sobre quem o teatro se habituou a impor visões acabadas do mundo”140, espectador que também é educando.

138

FREIRE, Ana Maria Araújo. Acesso à justiça e pedagogia dos vulneráveis. O pensamento de Paulo Freire e sua relação com o Direito como prática para a libertação. In: SOUSA Junior, José Geraldo et al (orgs). O Direito Achado na Rua volume 8: Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação. Brasília: FAC Livros, 2017. p.69.

139

SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. [et al]. op.cit., 2017, p.75

140

BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. p.236.

Uma nova educação, uma nova pedagogia para a construção de um mundo novo, uma educação popular para libertar e permitir a emancip-ação. Arte, pedagogia e política. Teatro, pedagogia e política comprometidos com a formação-ação coletiva, na conscientização sobre direitos enquanto espaços de nos reconhecermos como seres humanos livres não para vendermos nossas respectivas forças de trabalho, mas livres a medida que “o humano não se oculte na aparência e a necessidade e o desejo se tornem o termo de equivalência”141.