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A VIDA PELAS ÁGUAS AMAZÔNICAS

CENÁRIO DE INVESTIGAÇÃO: CONTEXTO DE TERRAS E ÁGUAS

2.1 A VIDA PELAS ÁGUAS AMAZÔNICAS

Nesta seção, refletimos sobre o cotidiano ribeirinho na Amazônia. O município de Belém é formado principalmente por áreas insulares, como veremos adiante. Com isso, podemos dizer que o contexto das águas dos rios da Amazônia permeia o cotidiano desse município. Com base nisso, abordamos sobre o viver entre os rios amazônicos.

Correa (2003) diz que os ribeirinhos são homens, mulheres, jovens e crianças que nascem, convivem e habitam as margens dos rios. Os estudos de Carvalho (2006) e Paixão (2009), ao tratarem sobre o cotidiano ribeirinho, enfatizam as vivências desses sujeitos na relação com a natureza. A partir dessa relação, os ribeirinhos organizam suas vivências e estruturam suas atividades. Tal dinâmica ocorre seja por demanda de necessidades de subsistência próprias, seja por demandas externas (da sociedade, do mercado) de recursos naturais ou produtos alimentícios.

A relação dos ribeirinhos com a natureza expressa igualmente a temporalidade do cotidiano, que é dinâmica, e proporciona a esses sujeitos combinar suas vivências no tempo ecológico e com o tempo mecânico, estratégias de produção para auto-consumo e para a comercialização. Isto mostra que nesse contexto há coexistência da tensão, do conflito e da complementaridade (LOPES, 2006).

A apropriação da natureza pelos ribeirinhos resulta igualmente do processo de territorialidade. Pereira (2007) constata que a territorialidade ocorre pelo conhecimento local sobre o uso dos ambientes, nas formas de apropriação dos recursos naturais e nas relações sócio-políticas dinamizadas nesses contextos.

Outros estudos, ao tratarem sobre esse cotidiano, enfocam aspectos como a organização comunitária e movimentos políticos que estão presentes no cotidiano dos sujeitos ribeirinhos. Rodrigues (2006) analisa os processos de organização comunitária dos moradores da ilha do Combu, pertencente ao município de Belém (PA), e aponta que existe desarticulação entre os ribeirinhos e isto implica em menor possibilidade enquanto cidadãos na luta pela garantia de seus direitos. A análise de Cruz (2006) aborda a luta de populações contra o imaginário moderno do processo de apropriação da Amazônia que atribui positividade ao novo e negatividade ao velho, aos aspectos tradicionais do modo de vida das populações locais. Nesse âmbito surgem movimentos sociais que resistem contra esse imaginário e práticas sociais que subalternizam, e afirmam a identidade para valorização e politização de seus modos de vida.

Oliveira Junior (1991) analisa as condições de vida, trabalho, as lutas e resistências de ribeirinhos e roceiros de Gurupá, município paraense. Estes sujeitos possuem no extrativismo dos produtos da água e da floresta a principal base de sua economia, e nesse processo a dominação e a exclusão econômica e política do campesinato gurupaense, ao mesmo tempo em que nascem as lutas dos ribeirinhos contra esta situação. Ainda no âmbito político, Neves (2009) discute que a constituição política de ribeirinhos foi mediada por instituições religiosas, como no Médio Solimões.

Coelho (2006) analisa a migração de moradores de áreas de várzea para a terra firme em Manaus e as modificações que ocorreram no cotidiano dos ribeirinhos, que passaram a habitar um espaço fronteiriço entre o mundo rural e o mundo urbano.

A pesquisa de Correa (2008) aponta mudanças nas vivências de ribeirinhos amazônicos que por possuírem práticas tradicionais e sobrevivência do extrativismo das florestas e rios, passam atualmente por mudanças provocadas por fatores modernizantes, e que exigem dos ribeirinhos uma adaptabilidade entre o tradicional e o moderno. Para esse autor, isso resulta da expansão do capitalismo nessa região.

Diante desses aspectos, as vivências dos ribeirinhos se mostram de forma dinâmica. O dia-a-dia é estabelecido por relações com a natureza, contudo não se esgota nisso. Esse cotidiano pode ser marcado por fatores políticos, de

organização desses sujeitos, por políticas territoriais, por interesses econômicos, e outras interferências. Muitas comunidades ribeirinhas passam por mudanças de habitat em decorrência de migrações, ou por determinações oficiais. O espaço ribeirinho ainda está sujeito a mudanças nas dinâmicas locais devido à modernização e a expansão capitalista. Assim, a identidade ribeirinha pode ser compreendida com base na relação com a natureza, no conhecimento local, e em um ritmo social e cultural dinâmico e diverso.

No contexto das ilhas do município de Belém, Freire (2002, p. 68) revela que “os ribeirinhos belenenses situados nas ilhas, convivem com o modus vivendi que agrega elementos de sociedades tradicionais, numa imbricada relação com a “modernidade” da metrópole”.

Nessa relação do contexto ribeirinho com o meio urbano, os elementos característicos de espaços da cidade podem ser refletidos nos espaços insulares. A relação cidade-rio é um aspecto que se mostra importante no território amazônico, como analisa Souza (2008, p. 113):

No processo de produção do espaço na Amazônia, os rios tornaram- se os meios de circulação de mercadorias e de pessoas, configurando um padrão de organização espacial, na medida em que várias cidades cresciam tomando como referência as águas. O movimento pelos rios da região em conjunto com as atividades produtivas fez emergir núcleos urbanos importantes que mantinham relação com o interior amazônico, como é o caso de Belém e Manaus. Assim, a base econômica, no início da organização espacial das cidades amazônicas, tinha nos rios sua vida, a sua dinâmica comercial e a base para o estabelecimento e o crescimento da agricultura e do extrativismo; atividades que se constituem, em grande parte, como de subsistência para muitas localidades ribeirinhas.

Sousa (2008) mostra que existe uma relação de interdependência da cidade e o território ribeirinho. Os ribeirinhos na relação cidade-rio possuem uma organização espacial que se desenvolve seguindo os cursos naturais e também pelo contato urbano (SOUZA, 2008). Assim, elementos característicos dos espaços urbanos também passam a existir em espaços não urbanos, como os de ilhas de Belém. Estas características integram o cotidiano, e, portanto as identidades dos ribeirinhos.

Segundo Cruz (2008, p. 58), a “identidade ribeirinha é uma identidade territorial, pois é construída a partir da relação concreta/simbólica e material/imaginária dos grupos sociais com o território”. As identidades territoriais são traçadas pelo domínio e apropriação do espaço. Esse autor acrescenta que:

[...] a construção de uma identidade territorial pressupõe dois elementos fundamentais: o “espaço de referência identitária”, que é o referente espacial no sentido concreto e simbólico onde se ancora a construção de uma determinada identidade social e cultural, e a “consciência socioespacial de pertencimento”, que é a construção do sentimento de pertença e do auto-reconhecimento, o que implica nós nos reconhecermos como pertencentes a um grupo e a um território específico (CRUZ, 2008, p. 59).

Para este autor, o “espaço de referência identitária” corresponde ao recorte espaço-temporal onde se realizam as experiências sociais e culturais. A referência da construção identitária pode ser o espaço geográfico em sua dimensão físico-natural, social e simbólica.

Desse modo, para os ribeirinhos o rio se constitui como um espaço de constituição identitária. O rio na Amazônia é uma referência físico-natural já que pode ser utilizado como meio de transporte, como fonte de recursos naturais e temporalidade, por exemplo. Enquanto espaço social “é meio e mediação das tramas e dos dramas sociais que constituem o modo de vida ribeirinho com seus saberes, fazeres e sociabilidades cotidianas” (CRUZ, 2008, p. 59). Como espaço simbólico, o rio agrega o imaginário, as crenças, lendas, cosmologias e mitos ligados à floresta e às águas.

No que diz respeito à “consciência socioespacial de pertencimento”, é construída em uma relação dialética entre o “espaço concebido” e o “espaço vivido”. O “espaço concebido” refere-se ao domínio funcional-estratégico de um determinado espaço, que têm como base os “planos, teorias, imagens, discursos e ideologias dos atores hegemônicos, como o Estado, o grande capital, os cientistas, os burocratas, os políticos, a mídia etc.” (CRUZ, 2008, p. 61). O “espaço vivido” é representado pela apropriação simbólica/expressiva do espaço pelos sujeitos; se expressa a partir da experiência cotidiana no contexto.

Com base nisso, Cruz (2008) indica que, para conhecer as identidades ribeirinhas na Amazônia, precisamos olhar as experiências culturais, os saberes e fazeres cotidianos, mas ainda perceber o conjunto de representações e ideologias concebidas sobre o contexto ribeirinho. A partir da relação desses aspectos, se constrói a consciência socioespacial de pertencimento e as identidades territoriais.

A partir desses estudos, compreendemos que o território ribeirinho tem características singulares e outras que se apresentam nestes locais provenientes das interações com demais espaços geográficos. Nesse contexto dinâmico, se constroem as identidades sociais e significados do ser sujeito ribeirinho.