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CAPÍTULO 2 PELOTAS E SEU CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO: ALGUNS

2.2 Pelotas do século XX ao XXI: Processos históricos de configuração do município

No início do século XX, Pelotas era um importante centro econômico para o estado do Rio Grande do Sul e para o Brasil e recebeu as inovações características dos processos de modernidade social. A evolução das ideias higiênicas no município, desde as primeiras iniciativas, até a realização de planos gerais de reforma e melhoramentos urbanos, tiveram impactos significativos na morfologia urbana e na ordem socioespacial da cidade. Apesar do discurso higienista, muitas regras higiênicas não eram cumpridas, concluindo que o saneamento da cidade se caracterizou tanto como um instrumento de controle da ordem social, como um projeto considerado inovador pelo Estado (SOARES, 2000). Sob essa perspectiva

Na cidade de Pelotas, estado do Rio Grande do Sul, o pensamento higienista foi difundido a partir das discussões sobre o saneamento da cidade, debate iniciado justamente na transição do final do século XIX e início do século XX. Inicialmente divulgado pelos discursos de técnicos municipais e políticos, tendo como base a problemática sanitária da cidade – que se industrializava e crescia em importância econômica e complexidade social –, a questão foi avançando até envolver aquele que foi o maior engenheiro sanitarista brasileiro, Francisco Saturnino Rodrigues de Brito, que no final da década de 1920 realizou a fase final do plano de melhoramentos e saneamento da cidade, projetando parte de sua expansão urbana posterior (SOARES, 2000, p. 2).

O autor argumenta que na década de 1880 Pelotas se caracterizava pelo momento econômico que vivia, como uma produção inserida nos fluxos internacionais de circulação de capital. Porém, também vivia uma transição de uma sociedade escravista para uma sociedade considerada capitalista. Assim, ao mesmo tempo que a elite local atenta às transformações internacionais importa um modo urbano de organização, ainda possui relações e formas de pensar baseadas na “antiga” sociedade. Para Soares (2000), as “reformas urbanas” realizadas no final do XIX e nas primeiras décadas do século XX podem ser caracterizadas como operações radicais de superação da forma urbana colonial e de produção da forma

urbana capitalista nas cidades brasileiras. Soares (2000, p. 4) reitera que

Pelotas era também uma cidade de modernidade aparente e incompleta, onde o sustento e o fausto da frondosa arquitetura dos palacetes e dos teatros era a crueldade e a desumanidade da escravidão das charqueadas. Na cidade os pobres estavam segregados nas várzeas, nas baixadas e nos subúrbios. Cabeça “na Europa”, mãos na chibata: assim viviam os baronetes pelotenses. A modernidade aparente chegou ao início do século XX com as obras do porto, a chegada do telefone, os bondes, as caixas d’àgua e os chafarizes importados da França e as reformas dos jardins e praças do centro da cidade (SOARES, 2000, p. 187).

A efetiva industrialização de Pelotas ocorreu nas décadas de 1880 e 1890. Nesse período a cidade contava com diversas fábricas que atraíam as pessoas para o “centro” urbano. Dentre as indústrias da época, estavam a Fábrica Lang de sabões e velas (1865), o Engenho de Arroz do Coronel Pedro Osório, a fábrica Rheingantz de chapéus, as cervejarias Haertel e Ritter (1880 e 1890), Fábrica de Fiação e Tecidos Pelotenses, além de algumas charqueadas, frigoríficos e pequenas empresas (SOARES, 2000).

Devido à industrialização e à aglomeração na região que foi caracterizada como o espaço da “urbe” e da influência europeia através da elite local, ideias e políticas higienistas caracterizaram o início do Século XX. Soares (2000, p. 5) reforça que a “ação do poder público para com a higiene, além da função de defender a salubridade da população dirigia-se, sobretudo, a manter a estabilidade social”. Nesse período, o município possuía um total de 62 mil habitantes e em torno de 36 mil na urbe. No espaço destinado à urbanização, entre outras iniciativas, foi realizada a construção de uma vila operária, com casas salubres e higiênicas, além de isenção de impostos para as indústrias que promovessem moradia para seus trabalhadores (SOARES, 2000). “É evidente que a prevenção de situações consideradas de subversão social estava subjacente nessa política de construção de casas para operários” (SOARES, 2000, p. 9).

Durante o desenvolvimento da cidade, diversos projetos de saneamento e de organização urbana foram apresentados. Alguns deles foram reconfigurados antes de ser implementados, outros nem chegaram a ser de fato efetivados. A característica comum entre esses projetos, baseados na perspectiva higienista, era a segregação geoespacial, que visava especialmente o assentamento da elite em locais considerados mais valorizados (na época a zona norte) enquanto a população operária e outras eram destinados a zonas mais periféricas do município (situadas

na região sul, região do porto) (SOARES, 2000). O autor ainda reforça que

o higienismo na cidade de Pelotas cumpriu funções de garantir a transição da forma urbana em uma cidade que havia sido núcleo de uma economia escravista e agro-exportadora e se transformou em uma cidade capitalista e industrial, mesmo que esta transição pouco tenha alterado a estrutura de poder político local (SOARES, 2000, p. 12).

Dessa forma, Soares (2000) entende que o saneamento da cidade se caracterizou mais por uma atitude das elites visando o controle das classes subalternas, que realmente um amplo e inovador processo caracterizado pelo consenso social, uma das principais características da imposição da modernidade urbana na maior e mais importante cidade do sul do Rio Grande do Sul ao final do século XIX e início do XX.

No início da República, Loner registrou estatísticas que acusavam uma população de cerca de sete mil negros e mestiços, o que correspondia a 30,7% do total dos moradores urbanos. Em 1940, esse percentual se reduziu, pois do total dos habitantes do município, 15.311 eram negros ou pardos, o que correspondia apenas a 14,6% da população (SPOLLE; ANJOS, 2009).

A inserção do negro da sociedade de classes não aconteceu de modo subsequente à abolição da escravidão. Segundo José de Souza Martins, ao analisar essa questão no sudeste do Brasil, o trabalhador imigrante, europeu e depois japonês, substituíram a mão de obra escrava. Além disso, com a publicação da Lei da Terra (1850) não permitia o acesso à terra aos ex-cativos, fazendo com que fosse obrigados a vender sua mão de obra no espaço urbano. No caso de Pelotas, segundo Loner, a indústria de alimentos e o porto foram as atividades que proporcionaram o ingresso de negros no mundo do trabalho formal, na passagem do século XIX para o XX. Porém, entre as décadas de 1980 e 1990, devido às transformações no contexto macro estrutural, com as novas tecnologias e o Estado Neoliberal, ocorreram mudanças significativas que influenciaram a dimensão do trabalho no Porto de Pelotas. Conforme Spolle e Anjos

A modernização portuária implicou em uma transformação no serviço prestado pela categoria dos arrumadores, principalmente os trabalhadores de Pelotas, que estão vinculados a um porto secundário, quase desativado, obrigando-os a redirecionar suas atividades para outros setores de serviços não portuários, mas igualmente desqualificados e relacionados ao esforço físico (SPOLLE; ANJOS, 2009, p. 9).

Para Spolle (2009, p. 10), “essa dimensão do mundo do trabalho sempre foi desprezada em razão de outros fatores, considerados mais importantes para explicar a pobreza no Brasil, e, no caso mais específico, do não desenvolvimento do extremo sul do Rio Grande do Sul”. Além disso, para ele, os estudos sobre o desenvolvimento no estado e o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), normalmente, não levam em consideração a dimensão racial que envolve o contexto local. É por isso que se optou pela contextualização do surgimento do município de Pelotas, e nesse momento, retomar a dimensão racial que envolve a realidade do município.

O último censo do IBGE, realizado em 2010, trouxe que Pelotas possui 328.275 habitantes e densidade demográfica de 203,89 hab/Km². Em relação ao trabalho e renda, em 2016, o salário médio mensal era de 2.8 salários mínimos. A proporção de pessoas ocupadas em relação à população total era de 24,7% (equivalente a 84.749 pessoas). Considerando domicílios com rendimentos mensais de até meio salário mínimo por pessoa, tinha 31,9% da população nessas condições (IBGE, 2010). Em termos de ocupação do espaço, 269.491 pessoas residem no espaço urbano, enquanto 19.493 no espaço rural.

O levantamento sobre o número de habitantes no município, renda, percentual da população com ocupação profissional entre outras informações colaboram para compreender a situação socioeconômica do município, como também para identificar onde os jovens em atendimento de medida socioeducativa e suas famílias se inserem nesse contexto. Nas medidas em meio aberto no ano de 2017, por exemplo, do total de 85 adolescentes atendidos, 37 destes a renda familiar era de até um salário mínimo27.

Ao analisar a categoria raça/cor, Pelotas apresenta uma população maior de brancos de que de negros28, segundo o último levantamento do IBGE, conforme

ilustrado na figura 3:

27 Informação disponível no Relatório do PMASE, disponibilizado na reunião do dia 31/08/2018 no

Ministério Público.

Figura 3 - População de Pelotas por raça ou etnia Fonte: Datapedia em Pelotas – RS

Em relação à ocupação do município, a figura 4 exemplifica a organização e distribuição da população por raça/cor. É possível observar maior número de pessoas brancas do que negras, segundo o último Censo do IBGE (2010). Além disso, é possível visualizar os espaços com maior densidade de população negra (pretos e pardos, identificados pela cor vermelha e verde respectivamente) e brancos (pela cor azul).

Figura 4 - Mapa de Pelotas – Regiões Administrativas por cor/ raça Fonte: Patadata.org

Na figura figura 5 é possível observar as regiões administrativas da cidade:

Figura 5 - Mapa Urbano de Pelotas – RS com as Regiões Administrativas Fonte: Prefeitura de Pelotas

O município de Pelotas está dividida em sete regiões administrativas (Areal, Barragem, Centro, Fragata, Laranjal, São Gonçalo, Três Vendas) conforme III Plano Diretor de Pelotas e seu espaço intra urbano se caracteriza por um centro funcional bem individualizado e uma periferia dinâmica, evoluindo segundo um modelo bem parecido com o das grandes cidades, isto é, através da multiplicação de novos núcleos habitacionais periféricos, bastante dependentes do centro funcional (COLLISCHONN; SILVA; CUNHA, 2017).

A análise de algumas características da área urbana do município como sua densidade demográfica, densidade construída e renda média dos responsáveis pelos domicílios possibilitam compreender algumas dimensões sociais que envolvem a maioria da população que reside no município. No trabalho de Collischonn, Silva e Cunha (2017) “Dimensões espaços temporais dos homicídios na cidade de Pelotas – 2012–2015”, os autores apresentam uma série de gráficos que levam em consideração essas variáveis. Inicialmente são apresentados os locais de maiores densidades construídas, no caso de Pelotas, a área central, conforme pode ser visualizado na figura 6:

Figura 6 - Mapa de Densidade Construída em Pelotas – 2015 Fonte: Dados Prefeitura Municipal de Pelotas (2015)

Em seguida, os autores apresentam os mapas sobre a densidade demográfica (figura 7) e de renda média dos responsáveis por domicílio (figura 8),

conforme segue:

Figura 7 - Densidade demográfica por setor censitário na cidade de Pelotas - 2010 Fonte: IBGE (2010) e Prefeitura Municipal de Pelotas (2013).

Figura 8 - Renda Média do responsável pelo domicílio Fonte: Collischonn, Silva e Cunha (2017)

Conforme os autores discutem e pode ser percebido, os setores que concentram mais população não estão necessariamente nas mesmas áreas que têm as maiores densidades construídas. Os territórios com maior densidade demográfica se concentram em bairros periféricos nas Regiões Administrativas São Gonçalo, Areal, Três Vendas e Fragata. Além disso, os setores que mostram as rendas médias mais baixas correspondem às localidades com maiores densidades demográficas, enquanto as rendas médias mais altas estão presentes no centro da cidade, nas Regiões Administrativas São Gonçalo e Laranjal, na Microrregião do Areal, e no setor mais ao leste (COLLISCHONN; SILVA; CUNHA, 2017).

Outro indicador social relevante se refere à taxa de desemprego da população considerada jovem. Em 2010, enquanto a taxa média de desemprego era de 7,6%, as taxas de desemprego das pessoas entre 10 e 17 era de 26,9% e daqueles entre 18 e 19 anos de idade, 13,3% (COLLISCHONN; SILVA; CUNHA, 2017). Este dado é possível de ser relacionado com os dados da ficha socioeconômica de adolescentes

atendidos no CREAS que encontram-se desocupados (não trabalham e não estudam) ou apenas estudam e que encontram dificuldade de acessar o mercado de trabalho formal. Das 40 fichas socioeconômicas que foram coletadas informações29,

15 adolescentes informaram estar trabalhando (12 sem carteira assinada) e 18 não estavam trabalhando30. Dos 18 que não estavam trabalhando, 13 deles também não

frequentavam a escola. Essas condições também foram apontadas por diferentes entrevistados, tanto da Rede Socioeducação como do Sistema de Justiça, como um fator que colabora para a práticas de ato infracional e o envolvimento com a criminalidade urbana.

Esses bairros (ou micro-regiões) também estão indicados por dados do relatório e diagnóstico dos serviços de atendimento, como os que têm os maiores índices de homicídio entre os anos de 2012 e 2015, especialmente vinculados ao tráfico de entorpecentes. As Regiões Administrativas com maior número de homicídios entre 2012 e 2015 são: Areal (Dunas); Três Vendas (Pestano e Getúlio Vargas) e São Gonçalo (Navegantes)31.

Os bairros onde os atos infracionais praticados pelos adolescentes que cumpriram medida socioeducativa em meio aberto, entre o período de 2014 a 2017, correspondem a 111 (36%) na região do Centro; 64 (20,8%) na Região Três Vendas; 61 (19,8%) no Areal e 46 (14,9%) no Fragata32. No ano de 2018, dos 103 atos

registrados no CREAS, 29 (28%) ocorreram no Centro; 23 (22%) no Areal e 23 (22%) na Região Administrativa Três Vendas. Em relação à medida socioeducativa de internação, entre o mesmo período os atos infracionais registrados, em sua maioria, ocorreram na região das Três Vendas, 43 atos infracionais (34,6%) e 39 no Areal (31,4)33.

Por meio da relação das regiões com maior número de homicídios, da prática do ato infracional e das regiões de moradia desses jovens, pode-se perceber que a maioria deles reside em locais com alto índice de violência. Além disso, a presença do tráfico nesses bairros recorrentemente abordado pelos interlocutores da pesquisa.

29 Dos atendimentos realizados no ano de 2018, no CREAS, responsável pelas medidas em meio

aberto (Liberdade Assistida e Prestação de Serviço à Comunidade).

30Em 7 fichas essa informação não constava.

31 Ver: COLLISCHONN, E; SILVA, G.D; CUNHA, J, V. Dimensões espaço temporais dos homicídios

na cidade de pelotas – 2012-2015. Disponível em <https://revistas.fee.tche.br/index.php/boletim- geografico-rs/article/view/3944/3831>. Acesso em 30 jan 2019.

32Durante o período de 2014 a 2017 o diagnóstico do CREAS informou 307 atos infracionais.

33No bairro Areal foram agrupados Dunas, Bom Jesus e Jardim das Traições e no bairro Três Vendas

Desse modo, é possível identificar que o contexto de vida desses jovens, seja onde residem, seja onde praticaram os atos, também são as regiões da cidade em que apresentam maiores índices de criminalidade.

As estatísticas esboçadas não devem reforçar estereótipos de marginalização e estigma em relação aos moradores dessas localidades, mas auxiliam na análise sobre a dimensão da organização e a estrutura social da cidade, assim como os problemas urbanos decorrentes da desigualdade social e racial, vividos no modo de habitar, no direito à cidade e no acesso aos direitos sociais no Brasil.