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Capítulo III MUDANÇAS, TRANSFORMAÇÕES E EMERGÊNCIAS:

3.1 Pensamento secular

De acordo com o filósofo ENGELHARDT (1998, p. 31), as questões Bioéticas contemporâneas surgem diante de um quadro de fragmentos da perspectiva moral ligados a uma série de perdas de fé e de mudanças na Ética e na convicção ontológica ocidental. Em Fundamentos da Bioética, o autor contextualiza ao fato de que, ao pregar as 95 teses na Igreja de Todos os Santos, Martinho Lutero assinalou a entrada de uma nova era para o Ocidente, marcando uma quebra de supostas possibilidades de uma uniformidade na visão moral religiosa. Esse momento marcaria, então, o fim da crença de que uma sociedade poderia aspirar um ponto de vista moral único, baseado na fé e governado por uma única autoridade moral religiosa suprema (ENGELHARDT, 1998, p. 26).

Esse rompimento anunciava a impossibilidade de a Europa Ocidental aglutinar- se em torno de uma visão cristã única. O progresso da ciência organizava novas dimensões para se pensar o lugar do homem no mundo e no cosmos. A partir de 1543 a cópia da obra de Nicolau Copérnico, Revolutionibus Orbium Coelestium apresentava em seu legado, o próprio sentido de mudança nas idéias, “que deveriam transformar-se em metáfora para dramáticas e profundas mudanças na visão do mundo” (ENGELHARDT, 1998, p. 28). Para o autor, “a revolução foi uma das muitas modificações em idéias e interpretações que deixariam nossa visão secular desprovida de um sentido de perspectiva final ou absoluta: o homem deixava de ser o centro do universo” (ENGELHARDT, p. 28).

O legado de Darwin (publicado em 1859) também é colocado pelo autor como outro complicador, que despojou a visão de um ambiente humano canônico, o Éden. “A espécie humana já não parecia ter sido privilegiada no desenvolvimento da vida, como também já não prevalecia uma interpretação secular da natureza humana como tendo origem unívoca e muito menos divina” (ENGELHARDT, 1998, p. 29).

Cresce o Iluminismo e as esperanças progressistas da razão, de tal forma que sua aspiração buscava descobrir uma moralidade comum, capaz de unir a todos. Seis anos depois da Revolução Francesa, Kant escreve em favor da paz mundial (1795). Essa aspiração, diz Engelhardt, era descobrir, pela razão, uma moralidade comum que unisse a todos e proporcionasse a fundação da paz perpétua. Nas palavras de Engelhardt, em vez de a filosofia ser capaz de preencher o vazio deixado pelo colapso da hegemonia do pensamento cristão no Ocidente, mostrou-se como várias filosofias e éticas filosóficas concorrentes. Fragmentara-se em um “politeísmo de perspectivas, com seu caos de diversidade moral e sua cacotonia de numerosas narrativas morais concorrentes” (ENGELHARDT, 1998, p. 29).

A base da bioética contemporânea, de acordo Engelhardt, seria moldada de “ceticismo, perda de fé, convicções persistentes, pluralidades de visões morais, e crescente desafio das políticas públicas” (1998, p. 26). O autor ancora-se no que ele chamou de “caos moral” para justificar que as sociedades são pluralistas e envolvem as comunidades em uma diversidade de sentimentos e crenças morais que muitas vezes podem estar ocultas para elas. Para Engelhardt, “esse comunalismo tem sido pretendido

por meio da descoberta de uma moralidade canônica, essencial, mais do que continuista, que deveria unir os estranhos morais, os membros de comunidades morais diversas” (1998, p. 31).

Segundo o autor, uma moralidade secular canônica essencial não poderá ser descoberta. “O argumento racional não silencia as controvérsias morais quando o indivíduo encontra estranhos morais, pessoas de diferentes visões” (ENGELHARDT, 1998, p. 35). Ao contextualizar acerca do limite ao acesso de intervenções médicas de custo elevado, a experimentação com fetos e à venda de órgãos, o autor é contundente e afirma que para estas muitas questões existem poucos acordos. Para as mesmas, coloca que há mistura entre entendimento e desentendimentos, separando muitas das visões seculares à interpretação secular da Bioética e das moralidades religiosas tradicionais, que também discordam entre si.

Engelhardt apresenta uma crítica aos que trabalham com a Ética aplicada ou Bioética e que desconsideram as dificuldades que se encontram na raiz do pensamento moderno: “(...) seguem adiante com a tarefa de aplicar a ética como se fosse óbvio qual ética secular deveria ser aplicada (...)” (1998, p. 35).

Talvez se encontre também nesse jogo o que Foucault apresentou como procedimento de exclusão, sendo o mais conhecido deles o da interdição, aquele que indica que nem tudo pode ser dito, ou falado em qualquer circunstância, por qualquer um ou sob qualquer coisa. Nesse sentido o autor dá o exemplo dos discursos da sexualidade e da política, regiões onde “a grade é mais cerrada, onde os buracos negros se multiplicam” (2001, p. 09). Nesse aspecto, Foucault diz que as interdições que atingem os discursos, revelam logo com o desejo e com o poder. Esses discursos não seriam simplesmente aquilo que se manifesta ou oculta, sendo também o objeto do desejo; o poder do qual se quer apoderar (2001, p. 10). Essa interdição estaria vinculada na separação entre o verdadeiro e o falso que atravessou os séculos da história, que rege a vontade de saber, algo como um sistema de exclusão que se desenha.

Foucault apresenta o exemplo dos poetas gregos do século VI, cujo discurso verdadeiro – em sentido forte e valorizado do termo – sob o qual era necessário submeter-se, e que imperava como idéia hegemônica , “(...) era o discurso pronunciado por quem de direito e conforme ritual requerido; era o discurso que pronunciava a

justiça e atribuía a cada qual sua parte; era o discurso que, profetizando o futuro, não somente pronunciava o que ia se passar, mas contribuía para a sua realização, suscitava a adesão dos homens e se tramava assim com o destino (...)”. Tal situação, como sentencia o autor, seria objeto de alteração um século mais tarde, uma vez que “(...) a verdade mais elevada já não residia mais no que era o discurso, ou no que ele fazia, mas residia no que ele dizia: chegou um dia em que a verdade se deslocou do ato ritualizado, eficaz e justo, de enunciação, para o próprio enunciado: para seu sentido, sua forma, seu objeto, sua relação a sua referência (...)” (FOUCAULT, 2001, p. 15).

Para Foucault, a nossa vontade de saber foi assim formada, contudo sem parar de se deslocar. Sob essa perspectiva, as grandes mudanças científicas podem ser lidas como conseqüência de uma descoberta, mas podem também ser lidas como a aparição de novas formas de vontade. Ela se apóia sobre um suporte institucional, sendo reforçada e reconduzida por todo um conjunto de práticas como a pedagogia.

Essa máscara seria a responsável pelo que “(...) só aparece aos olhos uma verdade que seria riqueza, fecundidade, força doce e insidiosamente universal (...)”. Ignorando, portanto, o que Foucault chamou de “vontade de verdade como prodigiosa maquinaria destinada a excluir todos aqueles que, ponto por ponto, em nossa história, procuram contornar essa vontade de verdade e recolocá-la em que questão contra a verdade, lá justamente onde a verdade assume a tarefa de justificar a interdição” (FOUCAULT, 2001, p. 20).

No item intitulado “A Bioética em Ruínas”, ENGELHARDT observa que o que era visto como questões de caráter moral, transforma-se em questão de gosto, que os direitos e obrigações contratuais deslocam aquilo que antes eram ricas linguagens de caráter e virtude. “As instituições morais, separadas das visões morais que sustentavam e lhes davam sentido e significado, persistem como preconceitos, sentimentos de insegurança, tabus e intuições morais isoladas” (1998, p. 43). Conjugando as colocações e Engelhardt e de Foucault, vê-se configurar, na breve história filosófica da Bioética, um ritual onde foram buscados alguns cânones, retirados da Teoria Ética, cuja intenção apóia-se em uma vontade de verdade calcada em instituições morais, em direitos e em obrigações. No entanto, no que se refere à resolução de conflitos, podem persistir vícios e preconceitos, que se tornam perniciosos para as pessoas envolvidas.