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o pensamento se submete a uma única autoridade: a dele própria com

No documento Unidade 1: A Filosofi a (páginas 128-137)

As concepções da verdade

7. o pensamento se submete a uma única autoridade: a dele própria com

capacidade para o verdadeiro.

Quando os filósofos antigos e modernos afirmam que a verdade é conformidade ou correspondência entre a idéia e a coisa e entre a coisa e a idéia (ou entre a idéia e o ideado), não estão dizendo que uma idéia verdadeira é uma cópia, um papel carbono, um “xerox” da coisa verdadeira. Idéia e coisa, conceito e ser, juízo e fato não são entidades de mesma natureza e não há entre eles uma relação de cópia. O que os filósofos afirmam é que a idéia conhece a estrutura da coisa, conhece as relações internas necessárias que constituem a essência da coisa e as relações e nexos necessários que ela mantém com outras. Como disse um filósofo, a idéia de cão não late e a de açúcar não é doce. A idéia é um ato intelectual; o ideado, uma realidade externa conhecida pelo intelecto.

A idéia verdadeira é o conhecimento das causas, qualidades, propriedades e relações da coisa conhecida, e da essência dela ou de seu ser íntimo e necessário. Quando o pensamento conhece, por exemplo, o fenômeno da queda livre dos corpos (formulado pela física de Galileu), isto não significa que o pensamento se torne um corpo caindo no vácuo, mas sim que conhece as causas desse

movimento e as formula em conceitos verdadeiros, isto é, formula as leis do movimento.

Uma outra teoria da verdade

Quando estudamos a razão, vimos os problemas criados pelo inatismo e pelo empirismo. Vimos também a “revolução copernicana” de Kant, distinguindo as estruturas ou formas e categorias da razão e os conteúdos trazidos a ela pela experiência, isto é, a distinção entre os elementos a priori e a posteriori no conhecimento.

Com a revolução copernicana kantiana, uma distinção muito importante passou a ser feita na Filosofia: a distinção entre juízos analíticos e juízos sintéticos. Um juízo é analítico quando o predicado ou os predicados do enunciado nada mais são do que a explicitação do conteúdo do sujeito do enunciado. Por exemplo: quando digo que o triângulo é uma figura de três lados, o predicado “três lados” nada mais é do que a análise ou a explicitação do sujeito “triângulo”. Quando, porém, entre o sujeito e o predicado se estabelece uma relação na qual o predicado me dá informações novas sobre o sujeito, o juízo é sintético, isto é, formula uma síntese entre um predicado e um sujeito. Assim, por exemplo, quando digo que o calor é a causa da dilatação dos corpos, o predicado “causa da dilatação” não está analiticamente contido no sujeito “calor”. Se eu dissesse que o calor é uma medida de temperatura dos corpos, o juízo seria analítico, mas quando estabeleço uma relação causal entre o sujeito e o predicado, como no caso da relação entre “calor” e “dilatação dos corpos”, tenho uma síntese, algo novo me é dito sobre o sujeito através do predicado.

Para Kant, os juízos analíticos são as verdades de razão de Leibniz, mas os juízos sintéticos teriam que ser considerados verdades de fato. No entanto, vimos que os fatos estão sob a suspeita de Hume, isto é, fatos seriam hábitos associativos e repetitivos de nossa mente, baseados na experiência sensível e, portanto, um juízo sintético jamais poderia pretender ser verdadeiro de modo universal e necessário.

Que faz Kant? Introduz a idéia de juízos sintéticos a priori, isto é, de juízos sintéticos cuja síntese depende da estrutura universal e necessária de nossa razão e não da variabilidade individual de nossas experiências. Os juízos sintéticos a

priori exprimem o modo como necessariamente nosso pensamento relaciona e conhece a realidade. A causalidade, por exemplo, é uma síntese a priori que nosso entendimento formula para as ligações universais e necessárias entre causas e efeitos, independentemente de hábitos psíquicos associativos.

Todavia, vi mos também que Kant afirma que a realidade que conhecemos filosoficamente e cientificamente não é a realidade em si das coisas, mas a realidade tal como é estruturada por nossa razão, tal como é organizada,

explicada e interpretada pelas estruturas a priori do sujeito do conhecimento. A realidade são nossas idéias verdadeiras e o kantismo é um idealismo.

Vimos também, ao estudar a Filosofia contemporânea, que o filósofo Husserl criou uma filosofia chamada fenomenologia. Essa palavra vem diretamente da filosofia kantiana. Com efeito, Kant usa duas palavras gregas para referir-se à realidade: a palavra noumenon, que significa a realidade em si, racional em si, inteligível em si; e a palavra phainomenon (fenômeno), que significa a realidade tal como se mostra ou se manifesta para nossa razão ou para nossa consciência. Kant afirma que só podemos conhecer o fenômeno (o que se apresenta para a consciência, de acordo com a estrutura a priori da própria consciência) e que não podemos conhecer o noumenon (a coisa em si). Fenomenologia significa: conhecimento daquilo que se manifesta para nossa consciência, daquilo que está presente para a consciência ou para a razão, daquilo que é organizado e explicado a partir da própria estrutura da consciência. A verdade se refere aos fenômenos e os fenômenos são o que a consciência conhece.

Ora, pergunta Husserl, o que é o fenômeno? O que é que se manifesta para a consciência? A própria consciência. Conhecer os fenômenos e conhecer a estrutura e o funcionamento necessário da consciência são uma só e mesma coisa, pois é a própria consciência que constitui os fenômenos.

Como ela os constitui? Dando sentido às coisas. Conhecer é conhecer o sentido ou a significação das coisas tal como esse sentido foi produzido ou essa significação foi produzida pela consciência. O sentido, ou significação, quando universal e necessário, é a essência das coisas. A verdade é o conhecimento das essências universais e necessárias ou o conhecimento das significações constituídas pela consciência reflexiva ou pela razão reflexiva.

Na perspectiva idealista, seja ela kantiana ou husserliana, não podemos mais dizer que a verdade é a conformidade do pensamento com as coisas ou a correspondência entre a idéia e o objeto. A verdade será o encadeamento interno e rigoroso das idéias ou dos conceitos (Kant) ou das significações (Husserl), sua coerência lógica e sua necessidade. A verdade é um acontecimento interno ao nosso intelecto ou à nossa consciência.

Para Kant e para Husserl, o erro e a falsidade encontram-se no realismo, isto é, na suposição de que os conceitos ou as significações se refiram a uma realidade em si, independente do sujeito do conhecimento. Esse erro e essa falsidade, Kant chamou de dogmatismo e Husserl, de atitude natural ou tese natural do

mundo.

Uma terceira concepção da verdade

Quando falamos sobre Filosofia contemporânea, fizemos referência a um tipo de filosofia conhecida como filosofia analítica.

A filosofia analítica dedicou-se prioritariamente aos estudos da linguagem e da lógica e por isso situou a verdade como um fato ou um acontecimento lingüístico e lógico, isto é, como um fato da linguagem. A teoria da verdade, nessa filosofia, passou por duas grandes etapas.

Na primeira, os filósofos consideravam que a linguagem produz enunciados sobre as coisas – há os enunciados do senso-comum ou da vida cotidiana e os enunciados lógicos formulados pelas ciências. A pretensão da linguagem, nos dois casos, seria a de produzir enunciados em conformidade com a própria realidade, de modo que a verdade seria tal conformidade ou correspondência entre os enunciados e os fatos e coisas.

Essa conformidade ou correspondência seria inadequada e imprecisa na linguagem natural ou comum (nossa linguagem cotidiana) e seria adequada, rigorosa e precisa na linguagem lógica das ciências. Por isso, a ciência foi definida como “linguagem bem feita” e concebida como descrição e “pintura” do mundo.

No entanto, inúmeros problemas tornaram essa concepção insustentável. Por exemplo, se eu disser “estrela da manhã” e “estrela da tarde”, terei dois enunciados diferentes e duas pinturas diferentes do mundo. Acontece, porém, que esses dois enunciados se referem ao mesmo objeto, o planeta Vênus. Como posso ter dois enunciados diferentes para significar o mesmo objeto ou a mesma coisa? Um outro exemplo, conhecido com o nome de “paradoxo do catálogo ”, também pode ilustrar as dificuldades da teoria da verdade como correspondência entre enunciado e coisa, em que a correspondência é uma “pintura” da realidade feita pelas idéias.

Se eu disser que existe o catálogo de todos os catálogos, onde devo colocar o “catálogo dos catálogos”? Isto é, o catálogo dos catálogos é um catálogo catalogado por ele mesmo junto com os outros catálogos, ou é um catálogo que não faz parte de nenhum catálogo? Se estiver catalogado, não pode ser catálogo de todos os catálogos, pois será necessário um outro catálogo que o contenha; mas se não estiver catalogado, não é o catálogo de todos os catálogos, pois em tal catálogo está faltando ele próprio.

O que se percebeu nesse paradoxo é que a estrutura e o funcionamento da linguagem não correspondem exatamente à estrutura e ao funcionamento das coisas. Essa descoberta conduziu a filosofia analítica à idéia da verdade como algo puramente lingüístico e lógico, isto é, a verdade é a coerência interna de uma linguagem que oferece axiomas, postulados e regras para os enunciados e que é verdadeira ou falsa conforme respeite ou desrespeite as normas de seu próprio funcionamento.

Cada campo do conhecimento cria sua própria linguagem, seus axiomas, seus postulados, suas regras de demonstração e de verificação de seus resultados e é a

coerência interna entre os procedimentos e os resultados com os princípios que fundamentam um certo campo de conhecimento que define o verdadeiro e o falso. Verdade e falsidade não estão nas coisas nem nas idéias, mas são valores dos enunciados, segundo o critério da coerência lógica.

A concepção pragmática da verdade

Os filósofos empiristas tendem a considerar que os critérios anteriores são puramente teóricos e que, para decidir sobre a verdade de um fato ou de uma idéia, eles não são suficientes e podem gerar ceticismo, isto é, como há variados critérios e como há mudanças históricas no conceito da verdade, acaba-se julgando que a verdade não existe ou é inalcançável pelos seres humanos.

Para muitos filósofos empiristas, a verdade, além de ser sempre verdade de fato e de ser obtida por indução e por experimentação, deve ter como critério sua eficácia ou utilidade. Um conhecimento é verdadeiro não só quando explica alguma coisa ou algum fato, mas sobretudo quando permite retirar conseqüências práticas e aplicáveis. Por considerarem como critério da verdade a eficácia e a utilidade, essa concepção é chamada de pragmática e a corrente filosófica que a defende, de pragmatismo.

As concepções da verdade e a História

As várias concepções da verdade que foram expostas estão articuladas com mudanças históricas, tanto no sentido de mudanças na estrutura e organização das sociedades, como quanto no sentido de mudanças no interior da própria Filosofia. Assim, por exemplo, nas sociedades antigas, baseadas no trabalho escravo, a idéia da verdade como utilidade e eficácia prática não poderia aparecer, pois a verdade é considerada a forma superior do espírito humano, portanto, desligada do trabalho e das técnicas, e tomada como um valor autônomo do conhecimento enquanto pura contemplação da realidade, isto é, como theoria.

Nas sociedades nascidas com o capitalismo, em que o trabalho escravo e servil é substituído pelo trabalho livre e em que é elaborada a idéia de indivíduo como um átomo social, isto é, como um ser que pode ser conhecido e pensado por si mesmo e sem os outros, a verdade tenderá a ser concebida como dependendo exclusivamente das operações do sujeito do conhecimento ou da consciência de si reflexiva autônoma.

Também nas sociedades capitalistas, regidas pelo princípio do crescimento ou acumulação do capital por meio do crescimento das forças produtivas (trabalho e técnicas) e por meio do aumento da capacidade industrial para dominar e controlar as forças da Natureza e a sociedade, a verdade tenderá a aparecer como utilidade e eficácia, ou seja, como algo que tenha uso prático e verificável. Assim como o trabalho deve produzir lucro, também o conhecimento deve produzir resultados úteis.

Numa sociedade altamente tecnológica, como a do século XX ocidental europeu e norte-americano, em que as pesquisas científicas tendem a criar nos laboratórios o próprio objeto do conhecimento, isto é, em que o objeto do conhecimento é uma construção do pensamento científico ou um constructus produzido pelas teorias e pelas experimentações, a verdade tende a ser considerada a forma lógica e coerente assumida pela própria teoria, bem como a ser considerada como o consenso teórico estabelecido entre os membros das comunidades de pesquisadores.

A verdade, portanto, como a razão, está na História e é histórica.

Também as transformações internas à própria Filosofia modificam a concepção da verdade. A teoria da verdade como correspondência entre coisa e idéia, ou fato e idéia, liga-se à concepção realista da razão e do conhecimento, isto é, à prioridade do objeto do conhecimento, ou realidade, sobre o sujeito do conhecimento. Ao contrário, a concepção da verdade como coerência interna e lógica das idéias ou dos conceitos liga-se à concepção idealista da razão e do conhecimento, isto é, à prioridade do sujeito do conhecimento ou do pensamento sobre o objeto a ser conhecido.

As concepções históricas e as transformações internas ao conhecimento mostram que as várias concepções da verdade não são arbitrárias nem casuais ou acidentais, mas possuem causas e motivos que as explicam, e que a cada formação social e a cada mudança interna do conhecimento surge a exigência de reformular a concepção da verdade para que o saber possa realizar-se.

As verdades (os conteúdos conhecidos) mudam, a idéia da verdade (a forma de conhecer) muda, mas não muda a busca do verdadeiro, isto é, permanece a exigência de vencer o senso-comum, o dogmatismo, a atitude natural e seus preconceitos. É a procura da verdade e o desejo de estar no verdadeiro que permanecem. A verdade se conserva, portanto, como o valor mais alto a que aspira o pensamento.

As exigências fundamentais da verdade

Se examinarmos as diferentes concepções da verdade, notaremos que algumas exigências fundamentais são conservadas em todas elas e constituem o campo da busca do verdadeiro:

1. compreender as causas da diferença entre o parecer e o ser das coisas ou dos erros;

2. compreender as causas da existência e das formas de existência dos seres; 3. compreender os princípios necessários e universais do conhecimento racional; 4. compreender as causas e os princípios da transformação dos próprios conhecimentos;

5. separar preconceitos e hábitos do senso comum e a atitude crítica do conhecimento;

6. explicitar com todos os detalhes os procedimentos empregados para o conhecimento e os critérios de sua realização;

7. liberdade de pensamento para investigar o sentido ou a significação da realidade que nos circunda e da qual fazemos parte;

8. comunicabilidade, isto é, os critérios, os princípios, os procedimentos, os percursos realizados, os resultados obtidos devem poder ser conhecidos e compreendidos por todos os seres racionais. Como escreve o filósofo Espinosa, o Bem Verdadeiro é aquele capaz de comunicar-se a todos e ser compartilhado por todos;

9. transmissibilidade, isto é, os critérios, princípios, procedimentos, percursos e resultados do conhecimento devem poder ser ensinados e discutidos em público. Como diz Kant, temos o direito ao uso público da razão;

10. veracidade, isto é, o conhecimento não pode ser ideologia, ou, em outras palavras, não pode ser máscara e véu para dissimular e ocultar a realidade servindo aos interesses da exploração e da dominação entre os homens. Assim como a verdade exige a liberdade de pensamento para o conhecimento, também exige que seus frutos propiciem a liberdade de todos e a emancipação de todos; 11. a verdade deve ser objetiva, isto é, deve ser compreendida e aceita universal e necessariamente, sem que isso signifique que ela seja “neutra” ou “imparcial ”, pois o sujeito do conhecimento está vitalmente envolvido na atividade do conhecimento e o conhecimento adquirido pode resultar em mudanças que afetem a realidade natural, social e cultural.

Como disseram os filósofos Sartre e Merleau-Ponty, somos “seres em situação” e a verdade está sempre situada nas condições objetivas em que foi alcançada e está sempre voltada para compreender e interpretar a situação na qual nasceu e à qual volta para trazer transformações. Não escolhemos o país, a data, a família e a classe social em que nascemos – isso é nossa situação -, mas podemos escolher o que fazer com isso, conhecendo nossa situação e indagando se merece ou não ser mantida.

A verdade é, ao mesmo tempo, frágil e poderosa. Frágil porque os poderes estabelecidos podem destruí-la, assim como mudanças teóricas podem substituí- la por outra. Poderosa, porque a exigência do verdadeiro é o que dá sentido à existência humana. Um texto do filósofo Pascal nos mostra essa fragilidade-força do desejo do verdadeiro:

O homem é apenas um caniço, o mais fraco da Natureza: mas é um caniço pensante. Não é preciso que o Universo inteiro se arme para esmagá-lo: um vapor, uma gota de água são suficientes par a matá-lo. Mas, mesmo que o Universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que

aquilo que o mata, porque ele sabe que morre e conhece a vantagem do Universo sobre ele; mas disso o Universo nada sabe. Toda nossa dignidade consiste, pois, no pensame nto. É a partir dele que nos devemos elevar e não do espaço e do tempo, que não saberíamos ocupar.

Unidade 4

Capítulo 1

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