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PENSANDO NA POSTURA DO JUIZ DIANTE DA CRÍTICA IRONISTA LIBERAL E APELANDO AOS MITOS, COMO É DO GOSTO DE TODO JURISTA.

QUE COLOCA EM EVIDÊNCIA AS CONTINGÊNCIAS, TORNANDO IMPOSSÍVEL IGNORAR O ELEFANTE MUITO BEM VISTO POR

4. REPENSANDO O DIREITO ATRAVÉS DAS LIÇÕES IRONISTAS LIBERAIS:

4.1. PENSANDO NA POSTURA DO JUIZ DIANTE DA CRÍTICA IRONISTA LIBERAL E APELANDO AOS MITOS, COMO É DO GOSTO DE TODO JURISTA.

Destarte, apresentou-se um conceito de justiça aliado à uma noção moral relacional, contextual e histórica. A partir desse ponto, é preciso construir uma teoria de decisão e hermenêutica que seguisse os resultados dessa concepção de justiça.

Nesse sentido, é preciso pensar em Hércules, o juiz mito representante da utopia de Dworkin e entender o que Richard Posner propõe com Odisseu. E recorrer à Prometeu inspiração de Rorty e finalmente à Hermes e à Atena, recordando dos ensinamentos de Heidegger.

Para mudar um pouco e trazer uma lufada de ar novo para um direito já bastante esgotado em termos dworkinianos, pode-se começar tratando da ideia sobre Odisseu conforme alinhavada por Posner.

Esse mito representa para Posner uma consubstanciação das ideias que regem o pragmatismo, possibilitando entender que o pragmatismo pode ser considerado mais uma tradição, uma atitude e um ponto de vista do que um movimento filosófico organizado. E mais, permite entender que a razão do pragmatismo é a de Odisseu e não a de Platão. (POSNER, 2010, p. 20).

Para compreender o que Posner propõe, é preciso entender quem é Odisseu. Em Odisséia, poema de Homero, Odisseu ou Ulisses quer voltar para casa após a guerra de Tróia, aquela guerra que começa por conta de um entrevero de Deusas. 55

O poema começa contando a triste situação de Telêmaco e Penélope, respectivamente filho e esposa de Odisseu que está sendo mantido refém pela ninfa Calipso. (HOMERO, 2017, pp. 149, estrofe 555).

Todos os demais guerreiros que participaram da Guerra de Tróia haviam retornado há muito para suas e casas, como Homero conta: todos que escaparam do abrupto fim

55 A guerra de Tróia mistura mitologia com a história e por isso é difícil separar as esferas. Em resumo, o que se conta é que foi um conflito entre gregos e troianos que acabou se desenvolvendo durante mais de uma década por volta de 11 ou 12 A.C. Começou por causa de Eris, a deusa da discórdia com seu pomo de ouro dedicado “à mais bela”, concurso a ser decidido pelo pastor Páris que comprado por Afrodite lhe oferta o pomo de ouro em troca do amor da mulher mais bela do mundo, Helena, esposa do grego Menelau. Além de pastor, Páris era troiano e irmão de Heitor, quiçá a mais bela personagem de Homero. E assim começou a guerra, com Afrodite do lado dos troianos, Palas Atena do lado dos gregos e vários deuses, deusas e semideuses no meio do entrevero. Se recomenda a leitura de Ilíada, também de Homero, o mesmo poeta que escreveu Odisséia.

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estavam em casa, após escapar da guerra e do mar. Somente Odisseu do retorno privado e da mulher, detinha a augusta ninfa, Calipso. (HOMERO, 2017, pp. 88, estrofe 10).

Assim encontrava-se Odisseu, raptado pela ninfa Calipso que o toma por marido durante sete anos até que um dia, Odisseu recebe de Calipso a maior oferta de todas: a imortalidade.

Esse é um ponto a ser destacado. O que mais une todos os seres humanos é a mortalidade, a única certeza de todos. Sendo imortal, Odisseu deixaria de ser humano, poderia alcançar o absoluto, abandonar as inseguranças e incertezas humanas, incluindo a angústia da morte e da finitude. Poderia tornar-se um deus, ou ao menos um semideus tal qual Hércules.

Todavia, Odisseu não quer a imortalidade. O que ele mais quer é voltar para casa. Odisseu quer voltar mesmo sabendo que os deuses o perseguirão e da dificuldade de escapar do grande limite de agonia que o atinge (HOMERO, 2017, pp. 167, estrofe 289). Ele não quer a paz da imortalidade e do descanso, ele opta pela transitoriedade e pelas vicissitudes, Odisseu prefere ir a chegar, lutar a descansar, explorar a alcançar. (POSNER, 2010, p. 21).

Nesse sentido, compreenda-se a diferença na escolha de mitos pelos dois grandes doutrinadores ora tratados. Posner escolhe Odisseu, o sagaz. Por sua vez, Dworkin escolhe Hércules, filho de Zeus e Alcmena.

Hércules era um semideus, portanto, um ser parte humano, parte divino que quer se unir aos deuses através da superação de trabalhos e angústias. Hércules quer cumprir uma missão pré-determinada e que não foi por ele escolhida. A missão de Hércules foi dada a eles pelos deuses. Uma missão inspirada, portanto, pelo absoluto.

É o buscar de uma presença além do jogo. No mito de Hércules e na sua força, há muito do juiz-profeta-herói.

Já em Odisseu, há uma meta escolhida por ele: voltar para casa. Ele não sabe o que vai enfrentar para chegar lá e por isso tem como traço dominante a habilidade de adaptação.

Odisseu sabe que não pode controlar o mundo e que por isso deve se focar em controlar suas habilidades. Odisseu não sufoca as contingências com pensamentos pré- determinados de base essencialista, ele segue o fluxo e faz o melhor que pode.

Enfim, Odisseu não pode controlar os eventos, mas pode controlar sua reação aos eventos em prol de alcançar o que estabeleceu como meta para si: voltar para sua esposa Penélope e seu filho Telêmaco.

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É diante de todas essas qualidades de Odisseu que Posner o chama de argumentador instrumental (POSNER, 2010, p. 22). Os meios são relativos aos fins, e escolher um fim deve exigir um tipo distinto de raciocínio, diz Posner. E os fins podem ser desde casamento, família, amor até carreira, venda de derivativos e uma sentença judicial que deve ser cumprida. Cabe usar os meios que permitam atingir cada fim:

Um pragmatista prefere começar com o que temos e avaliar propostas para mudança com base em suas consequências do que começar com uma concepção idealizada e perguntar que medidas teriam de ser tomadas para se chegar lá, partindo de onde estamos. É a prioridade do empírico sobre o teórico. (POSNER, p. 34).

É preciso parar um momento e refletir sobre o trecho de Posner: começar com o que temos e avaliar propostas com base em suas consequências. O que temos aqui e agora, utilizar esses recursos que estão presentes, mesmo que não sejam os ideais, mesmo que sejam escassos. E pensar nas consequências porque este é o único modo real de avaliar uma posição. Quando Posner explicita essa noção do pragmatismo aplicado ao direito, realiza o que pode ser chamado de raciocínio consequencialista e focado em resultados.

E é assim que Posner causa desespero, peste, caos, fome e guerra para quem não compreende suas palavras.

Perceba-se: ao unir um raciocínio superficial sobre Odisseu estará formado o caldo do caos: se o foco for apenas a busca por resultados, o que impede que se faça como juízes-heróis-profetas e se decida “realizar” o Estado Democrático de Direito? Nem que seja à força?

Para entornar de vez o caldo do caos, surge a suposta influência de Nietzsche no pragmatismo, segundo citado por Lênio Streck que repete reiteradamente que será Nietzsche quem fornece as bases para o que ele chama de pragmaticismo. Em diversas críticas e escritos, o autor demonstra seu receio sobre as consequências de fundamentar a filosofia e o direito na filosofia do autor de Além do bem e do mal.

Para Lênio Streck, o problema do direito não é o platonismo, mas a incorporação desmesurada do antirracionalismo nietzschiano, raiz do pragmati(ci)smo que assola principalmente o Direito. Portanto, segundo a visão de Streck, o individualismo e autocriação privada de Nietzsche seriam ideais adotados pelos pragmáticos que levariam a desordem completa à interpretação judicial. (STRECK L. , 2013).

De fato, o receio do ilustre professor brasileiro pode ser traduzido como o medo do romantismo, da autocriação privada, um justificado receio em relação à revolta romântica contra o universalismo.

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O que Streck teme é o fato da sociedade democrática ser violentada pela revolta contra a racionalidade que está presente no pensamento de Nietzsche e isso, levado às últimas consequências, poderia acabar com a própria sociedade democrática. Nesse sentido, é pertinente citar que Streck acaba por veicular parte do mesmo temor de Habermas, como conta Crisóstomo:

Habermas enfrenta a necessidade de atravessar a queda da razão prática provocada pela filosofia do sujeito, mas não deseja incorrer em uma filosofia que ele acredita ser irracionalista e por isso procura uma razão intersubjetiva ao invés da negação completa de Nietzsche à razão, indo também em outra via que não a dos desconstrucionistas e pós-modernos como Foucault, Lyotard e Derrida. Habermas erige o ideal de razão comunicativa por receio de que essa completa negação da racionalidade pudesse conduzir a humanidade à irracionalidade e violência. (SOUZA, 2005, p. 22).

Mas Habermas é, ele mesmo, um admirador do pragmatismo. Então há que se compreender com profundidade a crítica de ambos e esclarecer importantes dilemas filosóficos.

Inicialmente, perceba-se que Lênio Streck e Habermas temem é o ideal de autocriação romântico. Aplicado ao direito, o ideal romântico poderia implicar em um juiz que buscasse resolver todos os problemas que lhe fossem apresentados, em um raciocínio focado em resultados, apegado a uma concepção de vida que lhe fosse própria.

Voltando aos exemplos mitológicos, o ideal de autocriação romântico é representado pelo mito do titã Prometeu que desafiou os deuses para dar fogo aos homens e por isso foi punido, sendo amarrado no monte Cáucaso e tendo seu fígado bicado por toda a eternidade.

Heidegger e Nietzsche eram adeptos do movimento romântico alemão que combatia o culto à razão e, portanto, combatia a metafísica. Os românticos celebram a paixão, os afetos e se revoltam contra o universalismo e o idealismo platônico.

Nessa revolta está a suprema importância do movimento romântico, nessa luta inglória contra o padrão de racionalidade universal. Rorty diz que a batalha entre o romantismo e o universalismo pode ser descrita como a batalha entre Nietzsche e Platão, onde se questiona se Platão tinha razão em que os seres humanos poderiam, por meio da busca da verdade, transcender a contingência; ou se Nietzsche tinha razão em que tanto a religião como o platonismo são fantasias escapistas. (RORTY R., 2003a, p. 241).

Foram os românticos que lutaram para mostrar que o universalismo é uma tentativa falha de eternizar costumes e tradições, é o meio de buscar o absoluto e tentar transcender a existência.

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E nessa luta está a grande contribuição romântica para o mundo. Contudo, não deve ser esquecido o pior defeito romântico: a crença de que não precisam justificar, explicar e fundamentar suas decisões e seus paradigmas porque românticos são impetuosos, selvagens, livres e não devem nada a ninguém.

Essa impetuosidade que rege o ideal de autocriação romântica não tem manutenção possível em uma sociedade democrática. Por isso Rorty se coloca contra essa impetuosidade e diz:

(...) quando Cristo é descrito como o caminho, a verdade e a vida, ou quando Heidegger nos diz que Hitler é a realidade presente e futura da Alemanha, a pretensão é de que nossas velhas ideias, nossos velhos problemas, ou nossos velhos projetos, deveriam ser simplesmente descartados, a fim de que nossas mentes possam ser completamente tomadas pelos novos. (RORTY R., 2003a, p. 259).

Isso implica em se engajar apaixonadamente em escolhas que trarão consequências terríveis e não é essa a escolha do pragmatismo. O romantismo combatia a metafísica, tal qual o pragmatismo e tal qual a hermenêutica. Há que se saber separar as coisas e não misturar todas as escolas filosóficas no mesmo caldeirão.

Portanto, se aceita o que há de bom e se recusa o negativo com base na observação de fatos passados. A luta contra o universalismo e o idealismo são bons resultados do ideal romântico, mas eles não podem, de modo algum, servir como únicos propulsores de uma hermenêutica judicial diante da sociedade democrática.

Ressalte-se que há um grande valor nas ideias românticas. Foram os românticos, tais como Nietzsche, que defenderam a imaginação como resposta ao desafio da metafísica. A ideia romântica era desafiar o “paradigma de inferência” da metafísica. Segundo este paradigma, sempre uma resposta tem uma ligação com sentenças anteriores apresentadas, havendo, como o próprio nome diz, inferência de um conceito através do outro.

A tessitura de crenças ocorreria paulatina e seguramente, sempre mediante a assunção da crença anterior, assim o espaço lógico se mantém fixado e assim paradigmas de inferência são adicionados a colunas de figuras, ou percorrem rapidamente um leque de opções, ou derrubam um fluxograma. (RORTY R., 1997a, p. 134).

Os românticos defendem a quebra desse paradigma através da defesa da necessidade de aquisição de atitudes disruptivas frente a candidatos a possuir valor de verdade. O que os românticos pedem é coragem de novas respostas e a criação de sentenças diante das quais não se tinha previamente nenhuma atitude, nenhuma

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preconcepção. Enfim, românticos defendem o que se denomina como “paradigmas de imaginação” que dizem respeito à uma recontextualização perspicaz com um toque de imaginação. (RORTY R., 1997a, p. 132).

Ou seja, não seria mais um contar de uma história em que uma resposta está ligada a uma pergunta antecedente. É isso, mas é também algo mais que isso. É isso porque não há como sair do contexto, não há metanível, mas é mais do que isso porque não será apenas uma resposta. É também o devir de um novo contexto.

E isso é importante em uma sociedade fluida, pós-moderna e veloz.

Veja-se que diante do paradigma de inferência, a base é a racionalidade. Há racionalidade, se, à medida que nos atemos ao espaço lógico dado no começo da investigação, e até o ponto em que podemos fornecer um argumento para as crenças sustentadas no fim referindo-nos de volta para as crenças sustentadas no começo. (RORTY R., 1997a, p. 134).

É contra esse paradigma que se insurgem os românticos. Para eles, há que se buscar o infinito de Prometeu, o titã que desafiou os deuses para ajudar os homens. Não se pode imaginar até onde Prometeu irá, com seu castigo eterno de ver seu fígado bicado pouco a pouco, eternamente, por um dia ter desafiado os deuses.

A profundidade desse mito traduz o desespero em querer dizer mais, em querer ter feito mais, mas ter sido obstado pelas circunstâncias.

Não há ponto final.

Prometeu segue tendo seu fígado bicado. Não há solução definitiva e os deuses devem ser desafiados.

É por isso que apesar do temor de Streck e Habermas, há que se defender uma pitada de romantismo na hermenêutica judicial. Há vezes em que os deuses precisam ser desafiados. Não sempre, não rotineiramente, mas vezes há em que o desafio é lançado e a resposta a ser ofertada precisa ser uma resposta nova e ousada.

Traduzindo para linguagem jurídica, não se pode sempre seguir os precedentes, há vezes em que a realidade supera o contexto já estabelecido e é preciso recorrer a Prometeu para que um novo contexto surja, através do desafio aos deuses.

Veja-se que quando se acredita em validade universal e independente do contexto, se acredita na possibilidade de um ponto final definitivo e único. Mas para os românticos, sempre haverá algo a ser dito no futuro. E por isso quem salva a humanidade é quem pode imaginar o que será dito, como Rorty explica que Shelley, ao nos convidar a dar as

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costas ao passado e acreditar que o futuro será diferente. (RORTY R., 2003a, p. 257) realiza ao escrever Prometheus Unbound.56

Os românticos combateram bravamente a tese da verdade por correspondência, contudo, desprezaram a responsabilidade de justificar e contextualizar suas soluções imaginativas, porque o romântico quer autenticidade e não argumentos.

Ao se resguardar contra a autocriação, Rorty é firme em dizer que nunca será possível elevar a autocriação juntamente com a justiça ao nível da teoria. (RORTY R., 1989, p. 15), mas que é possível aproveitar o que há de bom no movimento romântico.

E nesse caminho, é possível reverenciar o grande sacrifício de Prometeu ao ofertar o segredo do fogo e ao mesmo tempo lamentar o seu castigo eterno, e assim, enquanto se aplaude coragem de Prometeu, pode-se pensar se Prometeu poderia, ao invés de roubar o fogo, ter sentado e dialogado com os deuses, fazendo um bom uso de sua razão comunicativa e apelando para Hermes como mensageiro.

Hermes entra junto à hermenêutica, mostrando a importância da linguagem e da transmissão da mensagem. Questionado o dualismo realidade/aparência, cai o paradigma metafisico e exsurge o paradigma da linguagem mostrando que não há como capturar, transmitir e compreender fora da linguagem e assim, doravante, a consciência é tomada como fato linguístico, pois nunca seremos capazes de pisar fora da linguagem, nunca seremos capazes de aprender uma realidade que não seja mediada por uma descrição linguística. (RORTY, 2000, p. 57).

A adoção do paradigma da linguagem permite que sejam abandonados problemas que eram típicos da metafísica e adotado o processo circular de compreensão, com a defesa da pré-sença como guia que possibilita que o homem compreenda o seu ambiente. Mas toda compreensão se realiza em uma interpretação, dado que a vida humana é uma vida hermenêutica, esse é o modo de vida do ser.

56 E em mais um intervalo literário dessa obra cheia de literatura, temos Percy Shelley, poeta magnífico que escreveu dentre diversas obras, um drama lírico em quatro atos, chamado Prometheus Unbound. Prometeu, para Percy, não é a mesma figura que Satã, pois Prometeu tinha coragem, majestade, firme paciência e oposição a uma força onipotente, pois que era perseguido por Júpiter ou Zeus, resultando em castigos e danações eternas. Em suma, o poema trata da luta entre o homem, fraco, contingente, falível e o poder eterno e onipotente, e Percy consegue ofertar uma nobreza à fraqueza, falibilidade e contingência humana. Inspirado na peça de Ésquilo, Prometeu acorrentado, onde Prometeu desiste de seus ideais para dar fim ao seu castigo, Percy imagina um Prometeu que resiste, retomando a força do mito que dessa vez se mostra inquebrantável, não obstante, humano. Percy celebra a insubordinação, e não a reconciliação de Prometeu com o mestre. Rorty celebra a insubordinação intelectual no mesmo sentido de Percy, como força criativa e de renovação, e não apenas como força destrutiva, o que a caracterizaria mais próxima de Satã do que de Prometeu.

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Essa pré-sença, essas estruturas, são compartilhadas por uma comunidade temporal e espacial, em um processo de compreensão contextual, produzindo questões e respostas que são temporárias.

É por isso que a verdade, além de ser um existencial, é contingente. A verdade é agora dessa maneira, mas poderia não ser, poderia ser uma outra verdade, completamente diversa. Não há nada substancial, não há uma essência real, transtemporal que fundamente essa verdade. Como explica Carneiro, Hermes sabe que precisa traduzir e por isso alimenta a abertura dialógica contratextual (CARNEIRO, 2011, p. 273)

Hermes sabe que não pode tratar a vida como teatro do real e por isso ele busca abertura dialógica comunitária, na tentativa de observar outros sentidos possíveis para as perspectivas já assumidas. (CARNEIRO, 2011, p. 275).

Se não há ser sem ente, o ente que está frente a Hermes é o caso concreto e Hermes se abre para a comunidade para identificar o que está atrás do plano apofântico. Para isso ele dialoga com o sistema, com a doutrina, com a jurisprudência e com as partes.

Hermes não deixa qualquer espaço para o solipsismo, ao contrário de Hércules, que muitas vezes personaliza suas decisões quando usa de suas capacidades de imaginação. O acerto não está no procedimento nem na capacidade de imaginação do juiz, o acerto vem de Hermes, um juiz que vive dois mundos, o mundo do direito institucionalizado e o mundo da vida, onde ele experimenta a presença cotidiana do outro. (CARNEIRO, 2011, p. 273).

Portanto, até aqui percebeu-se a importância de Odisseu, Prometeu e Hermes. E através deles que se chega ao apoteótico final: Palas Atena, a deusa da sabedoria e estratégia. Em alguns mitos é tida como a filha de Métis, deusa da justiça e Zeus e em outras, é filha apenas de Zeus. 57

Ela é também a deusa da guerra, mas é a antítese de Ares. Enquanto este é impulsivo e violento desejando alcançar seus fins a qualquer custo, Atenas é estratégica. É ela quem protege as civilizações. Enquanto o impulso de Ares, de ímpeto e violência, serve para modificar e sacudir, ela, a protetora das cidades, instrutora das artes e dos ofícios, protege a vida em comunidade.

É Atena que combaterá o consequencialismo em último grau.

Atena sabe que não é qualquer fim que deve ser perseguido. Para Atena, a guerra deve ser submetida ao intelecto e como conta Richard Martin ao realizar o prefácio da

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obra de Homero, Atena liga-se intensamente a Odisseu, o polimétis (literalmente, “possuidor de grande inteligência astuta”) (HOMERO, 2017, p. 35). Richard Martin explica:

Atena, passará a zelar pelo mortal, que afirma ser seu preferido por assemelhar-se a ela – o que não significa que, no restante do percurso, o herói se eximirá de tomar decisões delicadas ou suportar grande sofrimento sozinho: Odisseu não é apenas astuto, mas resiliente. (HOMERO, 2017, p. 51).

O mesmo louvor de Atena feito por Homero pode ser encontrado em Heidegger, que ao proferir uma bela conferência na Academia de Artes e Ciência de Atenas, sob o título Die Herkunft der Kunst und die Bestimmung des Denkens ou A proveniência da Arte e a determinação do Pensar, explica:

Homero chama a Atena Πoλύμητις, conselheira polifacética. Que significa aconselhar? Quer dizer: pensar e cuidar antecipadamente de algo, conseguindo, assim, que saia bem, que resulte. Por isso, o reino de Atena é o dos homens que