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Aspectos próprios da corrosão com eletrólise

1.3. Pequenos Naufrágios

A série Pequenos Naufrágios é composta por objetos ordinários, esquecidos ou abandonados em gavetas, ruas ou espaços mais esvaziados. Em geral, são pedaços de metal em processo avançado de oxidação, esses objetos me remetem as embarcações naufragadas na cidade do Rio Grande. Como o navio Altair encalhado desde junho de 1976 na praia do Cassino (Fig. 31). Este navio foi incorporado à paisagem e é tratado pelos rio-grandinos como um espaço que ativa memórias. Acompanhar a corrosão e o desaparecimento dessa ruína é uma prática comum de visitantes e moradores da cidade.

Percebo que a cidade de Rio Grande produz corrosões constantemente, não somente no sentido material como também imaterial. A região apresenta uma geografia plana com uma longa extensão de água que contorna a cidade. O porto desta cidade favorece a entrada e saída de pessoas e mercadorias, o que reforça a ideia de um lugar em constante movimento. Por outro lado esta característica da cidade que habito, despertou meu olhar para o que é efêmero.

A experiência que proponho compartilhar sobre o meu trabalho plástico se refere, neste momento aos acontecimentos e ações do cotidiano, como acompanhar o deslocamento da água, perceber as marcas deixadas pela intempérie e imaginar as ações e fenômenos que a formaram.

Embarcações em processo de corrosão na beira da laguna ou do mar acabam ativando espaços distantes da cidade. Durante os dois anos de pesquisa existiram momentos que me afastei do atelier de gravura, mas continuava pensando nele e nas questões que originavam-se, desdobravam-se ou descolavam-se dele, na intenção de voltar a frequentar o atelier criei dentro dele alguns naufrágios. Estes eram fragmentos de metais que ficavam submersos em um recipiente com água (Fig. 33). Observava diariamente estes objetos, registrando marcas e manchas criadas pela oxidação do metal.

Figura – 31. Navio Altair (praia do Cassino).

O resultado, em um dos experimentos, foi uma imagem muito semelhante com uma fotografia aérea da região entre as cidades do Rio Grande e de Pelotas (Fig. 32). A região é constituída por terrenos banhados conhecidos como marismas (Fig.: 34). A partir dessas observações, procurei refletir sobre a corrosão, me afastando do sentido pejorativo comumente empregado a esta palavra. Pois o que torna o fenômeno da corrosão positivo ou negativo é o mesmo que torna uma substância remédio

Figura – 33. Registros fotográficos de um

Pequeno Naufrágio inserido no atelier de

gravura em metal. Fonte: acervo do autor, 2013.

Figura – 34. Imagem de Satélite. Banhado próximo ao Km 47 da BR

392. Fonte: Google Maps, 2013.

ou veneno, porém a dose certa está relacionada a questão do uso e da utilidade do objeto ou substância. Cito como exemplo o fragmento de metal apresentado acima, um objeto que foi descartado e de pouco valor comercial. No entanto para um gravador o mesmo pode ser visto como um objeto em potência para a criação de novas gravuras e experimentações.

No universo da gravura, a palavra corrosão pode ser associada à ideia de construção, pois corroer uma placa de metal é construir uma matriz com a potência de reproduzir imagens. Em meu cotidiano percebo a corrosão como um fenômeno que transforma objetos e lugares de forma silenciosa e imperceptível. É um processo que tanto materializa memórias imprimindo marcas, quanto as dissolve modificando sua forma. Na Figura 35 “Fragmento da corrosão (série Pequenos Naufrágios)”, a corrosão apresenta aquilo que os alquimistas chamavam de reflexibilidade, ou seja, é o reflexo de um macro que se projeta em um micro e vice versa. Para Freitas (2013, p. 25), a reflexibilidade que “se expressa nessas relações analógicas pode ser pensada como uma ligação direta entre mundos diferenciados e entre as partes de um mesmo mundo, sem a necessidade de outras mediações e representações para o acesso ao conhecimento dos mesmos”. Um espaço corrosivo contamina um objeto e um objeto corroído contamina um espaço.

Ao extrair os objetos de espaços públicos ou privados, lembro-me dos non-site de Robert Smithson, que são materiais retirados dos sites (um local no meio ambiente) e inseridos na galeria. Procurei manter os objetos metálicos coletados em lugares úmidos tanto no atelier quanto em um espaço expositivo. Este procedimento foi o método que encontrei para manter viva a corrosão que acontecia naturalmente no espaço em que ele estava anteriormente inserido.

O que me motiva a coletar os objetos naufragados são as lembranças do “quartinho” de meu pai e o desejo de criar na minha casa um espaço semelhante àquele. Para a concretização disto foi necessário me apropriar de objetos (com memórias) que encontrava ou extraia na intenção de compor um lugar que se transformava a cada novo objeto recolhido, doado e incorporado ao espaço.

Figura – 35. Pequenos Naufrágios. Fonte: acervo do autor, 2013.

1.4. Céu

“Os olhos voltam-se para o céu estrelado, percorrem os montes, os campos, o mar... “Onde estou?”precede a pergunta “Quem sou?”O “eu mesmo”, o mais próximo de mim, está na verdade mais distante que as estrelas. O homem explorou indagativamente o céu, antes de fazer de si mesmo campo de investigação. A procura de si mesmo começa quando o homem já não sabe que ele mesmo é passo decisivo na história do pensamento.”

“Comecei a procurar-me a mim mesmo. (B 101)” (SCHÜLER, 2001, p. 170)

A imagem Céu, mais que uma semelhança com uma noite estrelada, é o olhar de um eletrogravador sobre o fundo de uma lata de milho (Fig. 37). Céu no ponto de vista de um sonhador é o lugar por onde os elétrons durante uma gravação conseguiram se desprender de todo resto do metal, rumo a um lugar que desconheço e que apenas tento observar ao direcionar esta mesma lata contra a luz. Compondo a série Paisagem Corroída a imagem intitulada Céu (Fig. 38) é uma fotografia realizada no interior de uma lata de milho corroída com eletrólise no processo submerso27. Esta mesma lata era um dos objetos em naufrágio, mas que se transformou em um dispositivo artístico, uma espécie de filtro para o olhar, que nos apresenta a imagem de um céu.

27

Ver pagina 8 deste texto (Fig. 2). Figura– 37. Dispositivo

artístico para ver a imagem de um

Figura – 38. Céu. Fonte: acervo do autor, 2012.