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Parte I – Considerações sobre o modo de produção mercantil-capitalista, a cidade e a urbanização

Capítulo 2 A industrialização-urbanização brasileira – uma jornada de continuidades

2.3 O período 1990-2010: o avanço neoliberal

Há elementos de continuidade e algumas rupturas neste período em relação ao que havia se estabelecido até então. Os problemas fiscais e de inflação agora se arrastavam reorientando os esforços nacionais com cada vez mais permissividade de políticas e ideias neoliberais76. O fracasso em superá-los e os interesses internacionais no realinhamento dos sistemas macroeconômicos nacionais em função da estabilidade econômica para os cálculos financeiros desviaram a agenda econômica do crescimento econômico colocando em seu lugar pautas voltadas para a estabilidade de preços e equilíbrio fiscal. Essa mudança de foco não veio acompanhada pela tentativa de se superar as imposições sociais ou os gargalos históricos que sustentavam as diversas faces da desigualdade no país.

A promulgação recente da Constituição de 1988 e a tentativa através dela de se implantar um projeto de sistema de bem estar social foram atacadas ao longo da década de 1990. Fagnani (2005) cita diversos esforços nesse sentido, anulando parte dos avanços conquistados pelos setores progressistas na redemocratização. Nesse mesmo sentido, os esforços de estabilização encontrariam solução na gestão Fernando Henrique Cardoso, através de abertura econômica e flexibilização. A estratégia de choque de oferta, abrindo mercados à competição estrangeira mais estruturada obteve sucesso em ancorar e estancar preços, ao

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Ou seja, prosseguiram as dinâmicas identificadas por Kowarick (1979), mencionadas no tópico anterior. Veremos a questão das localizações em São Paulo em maior detalhe na segunda parte deste trabalho.

76 Laval & Dardot (2016) definem o atual caráter do neoliberalismo como uma racionalidade política que estende

a lógica de mercado a toda sociedade por meio de técnicas, discursos e práticas institucionais, as quais teriam produzido uma subjetividade empresarial marcada pela competitividade. Os autores retomam as raízes e as origens históricas daquilo que consideram como neoliberalismo. “O grande erro cometido por aqueles que anunciam a ‘morte do liberalismo’ é confundir a representação ideológica que acompanha a implantação das políticas neoliberais com a normatividade prática que caracteriza propriamente o neoliberalismo. Por isso, o relativo descrédito que atinge hoje a ideologia do laissez-faire não impede de forma alguma que o neoliberalismo predomine mais do que nunca enquanto sistema normativo dotado de certa eficiência, isto é, capaz de orientar internamente a prática efetiva dos governos, das empresas e, para além deles, de milhões de pessoas que não têm necessariamente consciência disso. Porque este é o ponto principal da questão: como é que, apesar das consequências catastróficas a que nos conduziram as políticas neoliberais, essas políticas são cada vez mais ativas, a ponto de afundar os Estados e as sociedades em crises políticas e retrocessos sociais cada vez mais graves?” (LAVAL & DARDOT, 2016, p. 15)

mesmo tempo em que contribuiu para a manutenção de taxas de desemprego e do salário mínimo. No fronte externo, o câmbio sobrevalorizado exigiu uma estratégia para fechar o balanço de pagamentos que pressupunha abertura das contas de capital e a entrada de capitais estrangeiros. Isso foi facilitado em grande monta pelo processo de privatização que garantiu o influxo de Investimento Direto Estrangeiro. O problema é que a maior parte desse montante restringiu-se a troca de propriedade de empresas e não acréscimo de capacidade produtiva (Carneiro, 2007). Mais grave ainda, num segundo momento esse mesmo movimento ampliaria a saída de capitais através do alargamento das remessas de lucro às matrizes no exterior.

A estabilização da economia brasileira segundo a estratégia neoliberal77, ligada a interesses estrangeiros, lançou mão de taxas elevadíssimas de juros para atração de capitais internacionais, tendo efeitos perversos sobre as taxas de investimento e a atividade econômica, que passou a apresentar um padrão errático, com taxas de crescimento baixas e que se ampliavam dependendo dos movimentos da economia internacional. Segundo Carneiro (2002), parte da estrutura industrial nacional sucumbiu frente à concorrência internacional, resultando em uma “especialização regressiva”, ganhando participação relativa os gêneros intermediários frente a aqueles mais avançados.

Novos desdobramentos viriam depois da crise russa, que abalou o cenário internacional em 1998, obrigando a gestão FHC a abrir mão do seu câmbio fixo. Adicionalmente, utilizou-se a dívida pública para acomodar grupos privados que haviam se endividado em dólar e quebrariam com a desvalorização cambial que se seguiu a reuniões com o FMI, impondo a aplicação de políticas ligadas ao Consenso de Washington para a estabilidade econômica. Essa gestão terminaria tendo obtido sucesso na contenção da inflação e no seu projeto de modernização, mas os custos sociais dos esforços de estabilização e submissão ao modelo internacional seriam fortes (Belluzzo e Almeida, 2002). Instituiu-se um verdadeiro pedágio social pago para ciranda financeira, em que se arrecada através de impostos regressivos e se orienta grande volume de recursos para o pagamento da dívida, mas principalmente seus juros, permitindo ainda rentabilidade elevada em títulos no chamado

overnight. Chega-se ao nível da Lei de Responsabilidade Fiscal fixar dois pagamentos como

intocáveis: os dos salários de servidores e os dos juros.

77 Harvey (2008) reconhece o neoliberalismo como um projeto político conduzido pela classe capitalista

corporativa, que sob intensa ameaçada politica e econômica no fim dos anos 1960, e durante os anos 1970, lançou um projeto político objetivando frear o poder da classe trabalhadora. Ele apresenta diversos aspectos do neoliberalismo como estratégia de retomada de poder por parte das classes dominantes.

Nesse cenário, o planejamento passou a ser tomado por preocupações cada vez mais imediatistas e voltado para o esforço do superávit primário. Os investimentos públicos minguaram e houve alguma regressividade na composição da pauta de produtos industriais com os bens intermediários e de consumo não duráveis crescendo a frente dos bens de capital e bens de consumo duráveis. O que se manteria dos períodos anteriores seria a contenção de salários e ampliação da desigualdade social. Entre 1997 e 2004, o rendimento médio do trabalhador passou por queda constante, amontoando 18,1% de retração no período segundo a PNAD de 2009. Pior, mesmo em 2009 o rendimento mensal do trabalhador, ainda que tenha subido desde 2004, não superaria o atingido em 1996 (quando ainda estava inflado pelo câmbio artificial).

A modernização que acompanhou a abertura econômica e integração mais flexível nos roteiros internacionais de capitais e produção contribuiu para a disseminação da precarização do mercado de trabalho (Dedecca e Baltar, 1997). Avançou a terceirização e com ela as tentativas de se descaracterizar a relação de trabalho fazendo multiplicar os “empresários” e “empreendedores” que mantinham suas funções, mas agora fora da proteção da CLT, contratados a partir de operações comerciais de contratação de serviços. Nesse sentido, disseminam-se as estratégias de sobrevivência de que falamos no tópico anterior, atingindo agora também cargos de colarinho branco.

Depois da eleição de 2002, há alterações relevantes nesse sentido, com alguma melhora a partir de 2004. São algumas variáveis que se comportam de forma diferente, sem, no entanto, propor rompimentos com a tônica mais geral até então. A partir de uma retomada internacional do crescimento, capitaneado pela expansão da economia chinesa, muitos dos segmentos intermediários que cresceram tiveram seus preços ampliados, impulsionando a economia brasileira. Esse movimento foi acompanhado de uma estratégia de dinamização da demanda interna, com incentivos setoriais, ampliação real do salário mínimo, aumento do crédito e maior fiscalização das relações de trabalho, com aumento da formalização dos postos de trabalho (Baltar et alli, 2010). Isso permitiu ao país crescer a taxas médias maiores do que na década anterior, mas o governo progressista do presidente Lula perdeu, mais uma vez, a oportunidade de promover as reformas históricas necessárias para superação substantiva das desigualdades sociais78.

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Souza (2016) mostra que nos anos 2000, se houve tendência de queda do índice de Gini, o oposto ocorreu com a parcela da renda apropriada pelo 1% mais rico, tendo se elevado no mesmo período, mantendo-se no patamar histórico entre 20% e 25%.

Para Cano (2008), prossegue a desconcentração produtiva espúria. Com taxas medíocres de crescimento e a regressão de parte do tecido produtivo, a dinâmica que se desenrola tem taxas ruins para São Paulo e “menos ruins” para o restante do país. As restrições impostas ao investimento e gasto públicos no contexto de flexibilização e maior penetração de interesses internacionais contribuíram para o alastramento das práticas associadas à guerra fiscal, promovendo uma disputa entre lugares pelo investimento privado. Essa lógica é bastante permissiva aos contínuos processos de mercantilização e privatização dos interesses, que passam a nortear a gestão pública e a condução individual de forma monotônica.

Dessa forma, as péssimas condições de vida nas cidades encontram um novo desafio. Há uma maior formalização das amarras à superação dos principais problemas urbanos. Não que o falseamento e escamoteamento tenham se encerrado, mas há mais restrições à capacidade dos diferentes entes federados, caso se decidisse por promover ações nesse sentido. Frente a isso se populariza o discurso empresarial e de mercantilização dos aspectos da vida urbana. Os direitos dão lugar à defesa do consumidor. Dessa forma, são disseminados e consolidados os principais serviços urbanos enquanto mercadorias e, como tal, sujeitos à lógica de valorização de capital antes da lógica de garantia de direitos. É assustador, por exemplo, como o problema da moradia foi equacionado no “Minha Casa Minha Vida” de maneira bastante similar a como vimos durante o período da ditadura militar. Tratou-se de algo muito mais eficaz para sustentação dos lucros na construção civil do que para efetivamente reduzir o déficit habitacional, sendo mais uma vez as faixas mais necessitadas aquelas que menos foram agraciadas. Ademais, salvo algumas exceções, manteve-se a lógica de ocupação de terrenos periféricos mais baratos, imputando à gestão municipal, principalmente, custos de expansão de infraestrutura e alimentando o circuito de especulação imobiliária. Arantes e Fix assim descreveram a iniciativa:

O problema da moradia é real e talvez seja um dos mais importantes no Brasil. Contudo, o "Minha Casa, Minha Vida" o formula falsamente, não a partir das características intrínsecas ao problema, mas sim das necessidades impostas pelas estratégias de poder, dos negócios e das ideologias dominantes – como já afirmou o sociólogo Gabriel Bolaffi em sua interpretação certeira sobre o BNH. Ou seja, o pacote alçou a habitação a um ‘problema nacional’ de primeira ordem, mas o definiu segundo critérios do capital, ou da fração do capital representada pelo circuito imobiliário, e do poder, mais especificamente, da máquina política eleitoral. (ARANTES & FIX, 2009, p. 20)

A empresa de saneamento de São Paulo, a SABESP chegou a abrir capital nas bolsas de São Paulo e Nova Iorque, em mais uma demonstração da confusão entre serviços básicos e oportunidades de valorização, assumindo, dessa forma, o compromisso tácito de ações principalmente na manutenção da lucratividade e da valorização acionária. Há avanços em alguns setores, mas dependeram sobremaneira da disponibilidade de recursos federais, que não deixaram de priorizar os circuitos financeiros.

Se o projeto desenvolvimentista trouxe crescimento econômico elevado através da manutenção das desigualdades sociais, o período mais recente é marcado por precarização das condições de vida, direitos e mercado de trabalho, também com manutenção das desigualdades sociais. Se agora as taxas de crescimento são menores, garante-se a remuneração das elites e a valorização do capital num franco avanço às condições de vida e à reprodução do cotidiano das pessoas. Avança-se sobre a máquina pública e sua rotina com privatizações e a assunção da mercantilização de aspectos da vida urbana. Os serviços urbanos e direitos são contornados ou se corroem dando espaço na sua operação para preocupações de valorização, antes da universalização e do acesso. É possível afirmar que a lógica financeira de aparente auto-valorização se alastra para os diferentes setores econômicos e seus segmentos, seja na produção industrial, na produção agrícola, até mesmo nos serviços informacionais e serviços públicos. A lógica financeira passou a ser o padrão sobre o qual se erigem modelos de negócios, dos mais diversos. É curioso e nefasto como as contradições essenciais do capitalismo acharam uma forma mais segura de avanço da mais valia relativa sobre os sistemas legais de bem-estar social, os serviços públicos e as informações pessoais, em adição às clássicas fórmulas.