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3.3. A EPISTEME CLÁSSICA

3.3.1. Período clássico: a representação e a ordem

O pensamento clássico, afirma Foucault (1968) desloca a semelhança, outrora forma fundamental do saber, para um espaço em que esta se reduz a um misto ao qual cabe proceder análises em termos de medida e de ordem, de identidade e de diferenças. O conhecimento, doravante, será obtido através da comparação de duas ou mais coisas entre si. A ordem se dá no estabelecimento das identidades e diferenças. As coisas passam a ser enumeradas a partir da distinção e do discernimento, não mais da aproximação entre elas. A ordenação e as operações de medida permitem o conhecimento do mundo através das identidades e diferenças entre os seres. O papel da similitude torna-se simétrico ao da diversidade. Dois requisitos tornam-se imprescindíveis: um deles aponta para a necessidade de haver, nas coisas, possibilidade de semelhança; o outro reivindica que exista, na representação, espaço para a imaginação. Por um lado as coisas se oferecem desordenadas, pedindo e oferecendo similitudes; por outro lado a representação, aberta à imaginação, as mede, ordena, identifica. Duas noções que se

relacionam a esses momentos, e que encontram sua importância na idade clássica são: a 'natureza humana', com a imaginação (uma de suas propriedades, através da qual a primeira se representa); e a 'natureza', que oferece a semelhança como um dos seus efeitos. Natureza humana e natureza permitem, na configuração do saber clássico, o ajuste da imaginação e da semelhança. Conhecer é discernir.

Assim, prossegue o autor, as relações entre as coisas se estabelecem sob a forma da medida e da ordem. A análise, a partir de então, adquire atributo de método universal e seu instrumento específico passa a ser o sistema de signos, estabelecendo-se, nesta ciência da ordem: a gramática geral, a história natural e a análise das riquezas, respectivamente nos domínios da palavra, dos seres e das necessidades.

Os signos, agora, encontram-se “[...] convertidos em instrumentos da análise, marcas da identidade e da diferença, princípio da ordenação, chaves para uma taxinomia” (FOUCAULT, 1968: 85). De outro lado, a semelhança e o parentesco das coisas entre si, sob o pensamento formal, é matéria prima das distribuições ordenadas. Entre esses dois campos, a teoria geral dos signos e o movimento das semelhanças e repetições da natureza, os novos saberes se estabelecem. O signo se estabelece nos séculos XVII e XVIII não mais se apresentando como parte do mundo, desliga-se, doravante, das marcas e do domínio das semelhanças.

Dessa forma, a relação entre significado e significante, presente no interior do conhecimento, define-se como o espaço entre a ideia de uma coisa e a ideia de uma

outra. Na Logique de Port-Royal4 (s/d: citado por FOUCAULT, 1968: 93) verificamos este

conceito: “O signo encerra duas idéias, uma da coisa que representa, a outra da coisa representada; e a sua natureza consiste em animar a primeira com a segunda.” Nessa abordagem, quando olhamos para um objeto como algo que representa um outro, têm-se uma ideia de sinal e esse primeiro objeto recebe, assim, o atributo de sinal. Enquanto o significante tem como conteúdo, função e determinação, apenas aquilo que é representado por ele, o significado encontra-se alojado no interior da representação do signo, sem opacidade. O signo, pois, é a representatividade da representação enquanto representável. Interpenetram-se, dessa forma, a teoria dos signos e a análise da representação. Ideia e sinal são interdependentes. Os signos, agora libertos do mundo, encontram-se “no interior da representação, no interstício da idéia” (FOUCAULT, 1968: 97-98).

A linguagem na idade clássica apresenta-se soberana e discreta, posto que a esta, nesse período, é dada a tarefa e o poder de representar o pensamento, como este se representa a si. Da mesma forma, garante Foucault (1968), a linguagem detém o poder de representar a si mesma e de se analisar. A singularidade da linguagem apresenta-se justamente no que a difere dos outros signos: o fato de analisar a representação segundo uma ordem necessariamente sucessiva. Essa ordem linear possibilita a representação do pensamento, parte por parte, já que os pensamentos se sucedem no tempo um a um. A linguagem, nesse ponto, distingue-se dos signos e da representação por não se apresentar em oposição ao pensamento de uma forma externa a este mas por se apresentar como análise do pensamento, instaurando-o ordenadamente no espaço. Saber torna a ser, nesse período, falar bem, enquanto que “[...] falar é saber o que se pode fazer e proceder segundo o modelo que impõem aqueles que pertencem à mesma estirpe” (FOUCAULT, 1968: 122). Se as ciências são línguas ‘perfeitas’, as línguas, por sua vez, são ciências a serem desbravadas. A língua liberta o campo histórico, permitindo o desenvolvimento de uma história do conhecimento. “A linguagem retira-se do meio dos seres para entrar na sua era de transparência e neutralidade.” (FOUCAULT, 1968: 83). As representações, por sua vez, afirma Foucault (1968) abrem-se num espaço em que se apresenta o sentido. Nessa distância, estabelecida pela representação em relação a si mesma, situa-se a linguagem clássica, no interior da representação, apresentando-se sob a forma dos signos verbais que a manifestam e a convertem em discurso, o qual fixa a discursividade essencial da representação. Portanto, no período clássico o discurso torna- se objeto da linguagem. Para interrogarmos a linguagem já não nos detemos a desvendar os enigmas ocultos sob os seus signos, mas a perguntar-lhe “[...] como funciona: que representações designa, que elementos envolve e recolhe, como analisa e compõe, que jogo de substituições lhe permite assegurar o seu papel de representação. O comentário dá lugar à crítica.” (FOUCAULT, 1968: 112, grifo do autor). A crítica, doravante, interrogará a linguagem como sendo esta pura função: questionando a maneira como está presente aquilo que é dito nas palavras através das quais ela o faz representar; analisando-a em termos de exatidão, propriedade e expressão; questionando sua verdade ou mentira e sua transparência ou opacidade.

Nesse âmbito, “A gramática geral é o estudo da ordem verbal na sua relação com a simultaneidade, que lhe cabe representar.” (FOUCAULT, 1968: 117). O objeto da gramática geral é o discurso enquanto sucessão de signos verbais, uma sucessão de caráter artificial em relação à simultaneidade das representações. Toma, a mesma, duas

direções (em função do discurso interligar suas partes assim como a representação relacionar seus elementos) tratando de estudar tanto

[...] o funcionamento representativo das palavras nas suas relações, o que pressupõe primeiro uma análise do nexo que liga as palavras entre si (teoria das proposições e, em particular, do verbo), depois uma análise dos diversos tipos de palavras e da maneira como elas delimitam a representação e se distinguem entre si (teoria da articulação), [...] (FOUCAULT, 1968: 129)

quanto

[…] a maneira como as palavras designam o que dizem, em primeiro lugar no seu valor primitivo (teoria da origem e da raiz), depois na sua capacidade permanente de desvio, de extensão de reorganização (teoria do espaço retórico e da derivação) […] (FOUCAULT, 1968: 129).

Essas quatro teorias: da proposição ou do verbo; da articulação; da designação, e; da derivação, são descritas por Foucault (1968) e, para o nosso trabalho são de suma importância por constituírem, juntas, o quadrilátero da linguagem, sobre o qual são construídos os quadros esquemáticos apresentados pelo autor, representando as epistemes dos períodos clássico e moderno, os quais nos propomos interpretar para melhor compreendermos tais práticas discursivas.